1 de dez. de 2015

Produtividade, evolução e sigilo no maior sistema penal do pais por Anderson Lobo da Fonseca


SISTEMA PENITENCIÁRIO

Com as ideias de “evolução” e “produtividade”, os secretários apresentam à população como têm reduzido crimes, controlado a fúria letal das polícias e garantido a ordem no maior sistema penitenciário do país. O fiasco na produção desses dados joga luz sobre a aberração política que São Paulo experimenta
por Anderson Lobo da Fonseca



Observamos em São Paulo a consolidação de um discurso de progresso na “guerra ao crime”. Na última semana de outubro, as secretarias de Segurança Pública (SSP) e de Administração Penitenciária (SAP) lançaram dados para avalizar essa narrativa. Com as ideias de “evolução” e “produtividade”, os secretários apresentam à população como têm, supostamente, reduzido crimes, controlado a fúria letal das polícias e garantido a ordem no maior sistema penitenciário do país, em franca expansão. O fiasco na produção desses dados, explicitado desde a mesma semana pelos meios de comunicação, incita à leitura mais atenta dessas informações, jogando luz sobre a aberração política que São Paulo experimenta nestes setores de repressão e castigo.

“Produtividade” policial
No centro do debate, temos a suposta redução da letalidade policial em 20%, referente à comparação entre o terceiro trimestre de 2015 e o mesmo período do ano anterior[1]. Na mesma semana, uma série de reportagens apontaram a falácia desse dado, decorrente de uma mudança de metodologia no sentido de dividir em duas categorias (mortes ocasionadas dentro de serviço X fora de serviço) o que antes era tratado em conjunto. Assim, não só a letalidade não foi reduzida, como aumentou[2].
Mesmo reunindo as duas categorias, esse dado aperfeiçoado permanece falho ao não incluir as mortes ilegítimas ocasionadas por policiais fora de serviço, como nos casos das chacinas. E a problemática se aprofunda ao analisarmos os dados divididos por mês, onde deveriam constar estes homicídios dolosos (ilegítimos) feitos por policiais, quando se percebe que o governo divulga “zero mortes” em meses em que ocorreram notórias chacinas, que inclusive geraram a prisão de alguns policiais indiciados[3].
Para a Secretaria, estas mortes não são feitas por policiais, mas por bandidos que integram a corporação e, portanto, não devem ser incluídas no cômputo da letalidade policial. Por outro lado, sustenta que, em todos os sistemas jurídicos, mortes por legítima defesa não são entendidas como crime de homicídio, mas esquece que cabe somente ao Judiciário avaliar se essa excludente de ilicitude é aplicável ou se foi uma reação desproporcional . Melhor seria a SSP fornecer dados de forma transparente, a começar por um filtro subjetivo amplo (todas as mortes cujo autor é policial), deixando a cargo da justiça e da sociedade civil a avaliação sobre a legitimidade desses crimes, assim como sua possível vinculação com a corporação.
O desmembramento dos dados entre as mortes causadas por policiais, dentro ou fora de serviço, e os homicídios em geral permite à SSP uma melhoria dos dados como um todo. Nova série de reportagens da Folha de São Paulo, entrevistando membros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstra a fragilidade e falta de transparência na produção destes índices[4]. A adoção da metodologia atual foi defendida pelo governo como sendo um padrão internacional, embora a investigação jornalística tenha verificado que essa alegação não procede. A reiterada defesa da SSP chegou a apontar falhas no levantamento feito pela Folha, mas não nega a separação entre as mortes feitas por policiais, de um lado, e os homicídios em geral, do outro[5].
Sobre o dado fornecido[6], com todas as suas falhas, temos que a PM de São Paulo matou 183 pessoas no segundo trimestre, uma média de ao menos duas pessoas mortas por dia. Este índice é bastante próximo daquele obtido no primeiro trimestre (185), que foi analisado como sendo o maior índice de letalidade dos últimos 12 anos.
A “produtividade policial”, no entanto, não é medida pela SSP apenas pela letalidade, mas também pela quantidade de prisões e abordagens efetuadas. Isso nos faz chegar a índices ainda mais aterradores: no ano de 2014, esta Secretaria teria sido responsável por prender 177.918 pessoas, além de ter feito 15.488.976 abordagens (identificação/revista pessoal), procedimento que por si só já é violador de direitos.
Isso significa a média de uma abordagem a cada dois segundos. Uma prisão a cada três minutos. Duas mortes por dia.
Considerando a população do Estado de São Paulo na faixa de 45 milhões de pessoas, teríamos cada cidadão, de qualquer classe ou idade, sendo abordado ao menos uma vez a cada dois anos e meio. Conhecendo a seletividade do sistema penal, que atinge mais aos homens, pobres, negros, jovens e moradores de periferia, teríamos que esse “público-alvo” seria abordado inúmeras vezes num mesmo ano. Caso esse dado exorbitante fosse uma estratégia de inflar a produtividade da polícia, diríamos que o tiro saiu pela culatra, uma vez que a efetividade da atividade policial pela equação “prisão por abordagem” seria de 0,97% - 1 pessoa presa a cada 103 abordagens, 99% de abordagens sem motivo.

“Evolução” do sistema prisional
Embora o número de abordagens pareça irreal para qualquer pessoa razoável, o número de prisões, infelizmente, não o é. Repercutiu na mesma semana um estudo do Instituto de Segurança Pública, do Rio de Janeiro, relatando que a cada seis minutos uma pessoa foi levada presa a uma delegacia naquele estado[7] – metade do índice paulista. Das pessoas presas no RJ, 53,5% saiu da delegacia com a prisão relaxada, por serem acusadas por crimes de menor potencial ofensivo, e quase metade dos 46,5% restantes foi liberada na primeira audiência judicial. Isso não significa a validade do argumento “a polícia prende e o Judiciário solta”, como se o segundo fosse o problema. O Judiciário prende muito, mais do que devia, mas a polícia prende demais.
O estado de São Paulo contava com 219.053 pessoas presas em Junho de 2014[8]. Este dado é como uma fotografia, registrando o número de pessoas presas em determinado momento estático. No entanto, na prática, o processo é outro: há uma renovação anual de 81% do total de pessoas presas. Dessas, uma parte fica presa apenas por um dia, outra permanece presa provisoriamente por alguns meses e, por fim, temos as que permanecem em cumprimento de pena.  A rotatividade, porém, não tem tamanha “vazão”, gerando crescimento médio de 5,6% da população prisional por ano, sendo 26% de aumento no tocante ao encarceramento feminino. Isso faz de São Paulo o estado que, de longe, mais encarcera no Brasil, concentrando mais de um terço da população carcerária nacional.
O inchaço do sistema, que deveria ser motivo de profundo questionamento político, é entendido pelo Secretário de Administração Penitenciária como motivo de orgulho. Em suas palavras, sua pasta é a “maior e melhor do país”[9]. Gera desconforto ouvir sobre a “evolução” no número de presos e estabelecimentos prisionais sendo tomada como “boa prática” acriticamente pela SAP, no entanto,  para o mercado privado de segurança, a comemoração pode ter fundamento. O fato de o Brasil possuir a 4ª maior população prisional do mundo seria uma janela de oportunidade, até o atingimento do pódio – perspectiva que seria contemplada caso os mandados de prisão em aberto fossem cumpridos, mas que esbarra na própria capacidade do sistema.
É por isso que o Secretário defende que não basta construir novos presídios, mas também se deve investir em penas alternativas, utilizando-as para viabilizar o sistema carcerário, ao invés de promover desencarceramento e questionar a própria cultura punitiva. Estas declarações foram feitas pelo secretário em uma convocação da Assembleia Legislativa de São Paulo para que ele prestasse esclarecimentos. As questões a esclarecer não eram, no entanto, o inchaço do sistema penitenciário e as propostas de desencarceramento, mas principalmente as perseguições aos funcionários da própria pasta que estavam em greve.
Também no final de outubro, a SAP divulgou “pesquisa inédita” em que traça o perfil dos presos no estado de São Paulo[10]. A pesquisa se limita a fazer a relação entre presos e o tipo de crime pelo qual foram condenados, sem ao menos explicitar a metodologia de produção deste dado. O otimismo do discurso oficial, que ressalta as virtudes desta pesquisa, se contrapõe ao fato de que São Paulo foi o único estado que se recusou a responder ao último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), produzido pelo Ministério da Justiça, quebrando uma série histórica de informações sobre o sistema prisional.
Essa recusa tem efeito significativo para fragilizar os dados nacionais, porque, como já dito, o estado concentra mais de um terço da população prisional do Brasil. O levantamento não se limita a produzir informação sobre o tipo de crime pelos quais as pessoas estão presas, como fez a Secretaria em sua última publicação, mas é uma análise abrangente sobre o sistema, o perfil dos presos e dos estabelecimentos prisionais. Também neste caso o governo estadual prefere criar sua própria metodologia de produção de dados do que se adequar aos padrões de transparência.

O tiro pela culatra
Há uma diferença de posturas entre a SAP e a SSP. A primeira adota o silêncio como estratégia preferencial, não produzindo dados além daqueles poucos que lhe interessam, nem respondendo aos diversos questionamentos sobre essa falta de produção e divulgação. A SSP, por sua vez, adota uma postura mais agressiva, de manipulação e defesa aguerrida de seus dados, com grande divulgação dos supostos resultados positivos.
Pelos dois lados, no entanto, temos uma harmonia discursiva no sentido de justificar suas dinâmicas repressivas. A quantidade de abordagens e prisões efetuadas pelas polícias são infladas, natural ou artificialmente, jogando a culpa de uma suposta impunidade sobre o Judiciário e as leis penais. A justificativa desse movimento seria o combate ao crime, que se prova por uma redução dos índices criminais, fora e dentro da corporação. Dentro do sistema penitenciário, a informação que vale é por quais crimes os presos lá estão, ainda que grande parte destes presos seja de provisórios e nem venha a receber uma condenação ou pena de prisão ao final do processo jurídico formal.
Essa é apenas uma versão possível dos dados apresentados, que se torna uma aberração quando comparada ao próprio país como um todo. Afinal, por que São Paulo teria mais de um terço da população prisional do país? Seria mesmo uma maior concentração natural de criminosos no Estado, ou isso reflete uma política governamental de controle e combate aos grupos criminalizados? A postura intransigente do governo em defender sua política, manipulando e escondendo dados negativos a fim de chegar a conclusões favoráveis, acaba por desmontar ao invés de fortalecer a versão oficial.

Anderson Lobo da Fonseca
Anderson Lobo da Fonseca é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP e pesquisador do Programa Justiça Sem Muros, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Le Monde Diplomatique Brasil
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