25 de mai. de 2016

Em crise, Rio de Janeiro abandona seus bens históricos


Cidade tem pelo menos 40 bens culturais em situação de abandono
por Mauricio Thuswohl, para Revista do Brasil  publicado 21/05/2016 10:49, última modificação 23/05/2016 11:01
VITOR MARIGO/TYBA
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O conjunto arquitetônico do Largo do Boticário, no Cosme Velho, é particular e foi posto à venda

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Estátua de João Caetano, no Largo de São Francisco, já foi atacada diversas vezes

Com déficit de R$ 19 bilhões previsto pelo governo para 2016 e em meio a uma crise financeira que culminou com o não pagamento dos salários de 137 mil aposentados e pensionistas do estado em abril, o Rio de Janeiro não tem tempo nem dinheiro para cuidar de seus bens culturais e históricos. 
Passado um ano desde a formação, pela Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa (Alerj), de um grupo de trabalho que reúne órgãos do governo estadual e de outros setores para discutir e propor soluções, ainda não foi executado um único projeto de restauração e preservação em 40 bens que foram identificados em situação de abandono parcial ou total pelo poder público. Tampouco há previsão orçamentária para levar adiante essa tarefa, em uma gestão que acaba de aprovar dotação suplementar de R$ 900 milhões para as obras de construção da Linha 4 do metrô.
A discussão sobre a degradação dos bens culturais e históricos fluminenses veio à tona após a criação, por meio de uma página na rede social Facebook, do movimento S.O.S. Patrimônio­, que reúne museólogos, historiadores, arquitetos e artistas, além de outros interessados na restauração dos equipamentos abandonados. De um levantamento sugerido pelo grupo surgiu a lista inicial com 40 monumentos da capital e do interior que necessitam de cuidados imediatos.
A lista foi entregue em abril do ano passado ao deputado estadual Zaqueu Teixeira (PDT), presidente da Comissão de Cultura. Nela estão itens de grande importância histórica, como o Convento do Carmo, o Museu do Primeiro Reinado e o Museu da Cidade, além de conjuntos arquitetônicos como o Largo do Boticário e o Campo de Santana, entre outros.
O Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural formado na Assembleia tem a participação de representantes do Ministério da Cultura e da Secretaria Estadual de Cultura, além de órgãos como o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (ligado à prefeitura), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e a Fundação Parques e Jardins. De julho a novembro de 2015 foram realizadas cinco reuniões, e a lista de bens abandonados já ultrapassa 200 itens. Existe a previsão de que no segundo semestre sejam retomados os trabalhos para concluir as propostas levantadas pelo GT, com posterior realização de uma audiência pública. Mas, diante da crise financeira e da falta de empenho dos órgãos responsáveis, a expectativa de que alguma melhoria aconteça de fato é praticamente nula.

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Interior do palacete São Cornélio, na Glória...

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... corre sérios riscos de perda total
Água abaixo

“A formação do grupo de trabalho foi uma grande perda de tempo, não foi à frente, não deu em nada. Na prática, nenhum órgão de nenhuma instância se mexeu, não houve nenhum esforço. A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), que seria responsável pela limpeza dos equipamentos, e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que seria responsável pela restauração, nem sequer compareceram às reuniões. Isso é uma grande tragédia cultural, pois estamos perdendo nossa riqueza, nossa história está indo por água abaixo. É muito triste”, afirma o guia de turismo Alberto Cardoso, integrante do S.O.S. Patrimônio e um dos responsáveis pela elaboração da lista de bens abandonados.
Na avaliação de Zaqueu Teixeira, a crise financeira vivida pelo estado e a decorrente imobilidade dos órgãos executivos explicam o insucesso da iniciativa. “As ações de preservação do patrimônio estadual fazem parte dos recursos disponibilizados para a Secretaria de Estado de Cultura, que tiveram cortes em torno de 42% desde o início de 2016, dentro do já parco recurso­. Parte das ações é articulada com o governo federal, que também passa por limitações de apoio. Logo, o quadro para o ano de 2016 é complexo”, diz o deputado.
A Assembleia, segundo Zaqueu, procurou fazer a sua parte. “O trabalho do Legislativo consiste na elaboração e melhoria das legislações e dispositivos legais e na fiscalização das ações do Executivo. O Inepac, no entanto, nos apresentou um quadro do seu funcionamento que é de poucos técnicos, apesar do excesso de vontade”, diz. Já a Secretaria de Cultura tem outra explicação para a falta de resultados do Grupo de Trabalho. “Até agora, o Inepac não recebeu nenhum projeto por parte do GT da Alerj”, afirma a secretária Eva Doris Rosental, por intermédio de sua assessoria.
Assessora especial da Comissão de Cultura, Morgana Eneile aponta a falta de eficiência dos órgãos estaduais como um problema que dificulta a preservação dos bens culturais no Rio de Janeiro. “Uma conclusão a que se chegou no GT é que precisa haver um canal de denúncia que não passe só pelo Inepac. O governo estadual se envolveu, foi a todas as reuniões. Só que o Inepac nem é um instituto de fato, é uma superintendência, não tem uma estrutura própria separada.”
Outro problema, diz Morgana, é a falta de recursos. “O ­Legislativo não pode demandar nada que traga custos para o Executivo. Um projeto de lei que passa, por exemplo, por aumento da estrutura não pode ser iniciativa nossa, tem que ser do Executivo. Ao mesmo tempo, como o Executivo pode demandar a criação de um cargo, um único que seja, para a área do patrimônio numa crise em que ele não consegue sequer pagar os salários dos servidores de carreira?”, questiona.
O S.O.S. Patrimônio, no entanto, considera que o abandono dos bens históricos e culturais do Rio vem de muito antes da crise atual. “O problema não é o déficit, é a falta de vontade pura e simples, é o desprezo pela história e pela cultura”, diz Alberto Cardoso. “Isso é um traço de política de Estado porque a cultura não é contemplada pelo governo. Se a educação, a saúde e o saneamento não são contemplados, a cultura é que não iria ser. No campo cultural o Brasil só não deve ficar atrás do Estado Islâmico. Só eles devem tratar pior os monumentos.”

Novas leis

Considerada fundamental, a adoção de uma nova legislação para garantir uma melhor preservação dos bens culturais e históricos também não prosperou. “Tínhamos a esperança de que, a partir dos trabalhos do GT, saísse um projeto de lei que criasse uma brigada do patrimônio”, acrescenta Cardoso. Este conceito já existe em outros países e funciona como uma brigada de incêndio de uma empresa. 
“São pessoas que passam por um treinamento básico e técnico sobre o patrimônio histórico, ministrado pelos órgãos que cuidam dos bens, e que têm a permissão de fazer intervenções imediatas. Se, por exemplo, existe um patrimônio em risco iminente de desabar, a brigada pode atuar com respaldo legal”, compara. “Hoje em dia, quem limpar um monumento do patrimônio histórico no Rio é incurso no crime de dano ao patrimônio, o que é um absurdo. Então, ninguém cuida, porque se cuidar vai preso. O que a gente está tentando é normatizar essa lei. Essa seria uma vitória, mas para isso é preciso que a Assembleia Legislativa se mexa, e a ­Assembleia não se mexe. No atual momento político, a cultura foi totalmente relegada.”
Uma nova lei geral do patrimônio é outro sonho distante. “Não conseguimos consolidar um projeto de lei. Chegamos ao final do ano passado com a possibilidade de ter um novo texto de legislação patrimonial, mas o Estado foi contra. Isso acabou tomando muito tempo. De certa forma a gente parou no meio do caminho após compilar tudo e atualizar as questões que foram demandadas em uma nova lei do patrimônio”, diz Morgana Eneile. Enquanto a lei não sai, avalia a assessora da Comissão de Cultura, alguns paliativos podem ser adotados. “Um dos resultados que esperamos do GT é aprovar já na próxima reunião um projeto de lei que seja uma espécie de disque-denúncia do patrimônio.”
Segundo o deputado Zaqueu Teixeira, a busca por uma nova legislação prossegue em 2016. “O Grupo de Trabalho se pautou por soluções para além das ações do Executivo, buscando analisar possibilidades de dar visibilidade ao patrimônio e também fazer a revisão das leis existentes. Foi iniciado um debate sobre a revisão da legislação atual, que data da década de 1970, e cogitada a abertura de novas ações, como a intervenção da sociedade civil no cuidado com o patrimônio e na fiscalização deste.”
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Solar dos Abacaxis, no Cosme Velho, um dos mais importantes edifícios neoclássicos da cidade
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Ruínas. Solar do Visconde de São Lourenço, na rua do Riachuelo, foi interditado

Pessimismo

Para Morgana Eneile, “os resultados não se deram necessariamente em relação a um monumento restaurado” porque é preciso uma política pública com a participação efetiva dos diversos atores envolvidos. “Não basta o desejo de um patrimônio público por parte de quem o valoriza. Por isso, o trabalho do GT acabou se tornando tão complexo de resolver. Listamos um conjunto de ações, mas nenhuma delas se tornou concreta não porque não tenha como ser concretizada, mas porque são coisas difíceis de serem resolvidas do ponto de vista orgânico. Isso é um trabalho que vai levar tempo, não vai ser executado no tempo que a gente gostaria”, afirma.
O pessimismo dos envolvidos pode ser medido pelas palavras de Alberto Cardoso. “Desde o início, eu sabia que não seria feito nada. A realidade no Rio é uma tragédia, ninguém se sensibiliza. Uma cidade que constrói uma ciclovia por R$ 45 milhões que mais parece uma pinguela e cai em três meses matando gente mostra o desprezo pelas leis, pela ética, pela vida humana. Nesse contexto, nosso passado não vale nada, a cultura não vale nada. Estão deixando tudo ser destruído porque as verbas públicas vão todas para o lazer e o esporte, mais nada. Quando chegar a Olimpíada, o que nós teremos para mostrar aos estrangeiros em termos de cuidado com o nosso patrimônio?”, indaga.

Exemplos do abandono

Cardoso dá alguns exemplos de como a situação de abandono dos bens históricos e culturais do Rio de Janeiro se agravou nos últimos meses, apesar da criação do Grupo de Trabalho para tratar desse tema na Assembleia Legislativa. “Um dos objetos que nós tanto queríamos preservar – o Palacete São Cornélio, no Catete – está num estado pior do que estava há um ano. Foi invadido, arrancaram as calhas pluviais. O imóvel está hoje em uma situação que, se chover, vai perder totalmente seu interior. Está de pé por um milagre.”
“O Convento do Carmo, na Praça XV, está com as janelas abertas desde um ano atrás”, acrescenta. O prédio teve construção iniciada em 1619, passou por várias reformas na era colonial e foi confiscado por dom João VI em 1808 para alojar sua mãe, Maria I. Em seguida, seria o embrião da Biblioteca Nacional ao receber os primeiros livros vindos da corte portuguesa.
“Nós pedimos ao governo para entrarmos no prédio ou para pagarmos alguém para ao menos fechar as janelas, mas o pedido foi negado. Já fizemos um estudo, houve um compromisso pela restauração, mas as janelas continuam abertas. O vento, as chuvas e os animais estão deteriorando o único prédio joanino da cidade.”
“O monumento ao General Osório, também na Praça XV, está sendo dilapidado vagarosamente”, completa o ativista. “Já arrancaram o gradil, as letras de bronze, a espada do general, as balas de canhão. Já tentaram roubar até os painéis laterais, e nada foi feito pelo poder público.”
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