10 de jun. de 2016

No semiárido, o intercâmbio entre academia e populações tradicionais


Contraria à transposição do Velho Chico, pró-reitora de extensão Lúcia Marisy explica como observações de pescadores artesanais são ponto de partida para pesquisas da Univasf
 
rio são francisco
Falta de chuvas ameaça populações tradicionais que dependem do Velho Chico
Às margens do Rio São Francisco, comunidades tradicionais aprendem a conviver com a seca do semiárido. A mudança de uma perspectiva em que se buscava plantar milho para a valorização de culturas como a alfafa, por exemplo, é fruto de uma intensificação dos laços entre academia e população. De seis anos para cá, professores da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) trabalham juntamente com pescadores artesanais, populações quilombolas, de terreiro e indígenas para não apenas ajudá-los a agregar maior valor à sua produção, como também aprender com eles sobre dinâmicas próprias do bioma.
“A proposta é trabalhar com o pescador artesanal a perspectiva da cidadania, para que ele passe a saber quais são seus direitos, o que a colônia de pescadores tem a obrigação de oferecer, como ele pode garantir a qualidade de seu pescado, a qualidade do rio, fazer a reposição da mata ciliar”, explica Lúcia Marisy, especialista em Educação de Jovens e Adultos e pró-reitora de extensão da Univasf, ao citar em entrevista a Carta Educação exemplos como ensinar os pescadores a transformar o pescado em itens como hambúrguer ou bolinho.
Por outro lado, ela explica, as próprias populações que desenvolveram ao longo dos séculos atividades econômicas ligadas ao Velho Chico compartilham experiências que servem de ponto de partida para pesquisas acadêmicas sobre a região. “Temos nos revitalizado e aprendido muito com esse trabalho. A observação do pescador é um ponto de partida para que nós, na universidade, desenvolvamos pesquisas em cima disso”, explicou Lúcia, que falou na segunda-feira 6 sobre a lenta morte de populações tradicionais que tanto dependem do rio no I Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, organizado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco no campus de Juazeiro (BA) da Univasf.
Carta Educação: Qual a importância das populações tradicionais para a sobrevivência do Rio São Francisco?
Lúcia Marisy: A grande preocupação que a gente tem ao constatar a degradação do rio é a própria degradação das populações tradicionais, ribeirinhas, que englobam pescadores artesanais, quilombolas, indígenas, plantadores de vazante. Esta categoria era importantíssima, eram pessoas que plantavam quando o rio enchia e na região que vazava. Então ali havia um depósito muito grande de húmus, bastante rico, e as pessoas plantavam e retiravam seu sustento dali. Com a construção da barragem de Sobradinho, essa categoria desapareceu, pois não se tem mais uma previsão exata de quando ou quanto de água vem. Os vazanteiros, que eram uma comunidade importantíssima aqui na região, praticamente deixaram de existir. Observamos, cada vez mais, que o grande capital entende o rio como um recurso econômico apenas. E não como um sistema de interligações múltiplas, e que para garantir a sobrevivência desse ecossistema é preciso também que se garante a sobrevivência dessas populações, que historicamente construíram essa região.
Não dá para a gente entender o Rio São Francisco sem a presença dessas figuras: barqueiros, navegadores, ribeirinhos, pescadores artesanais, vazanteiros, e lavadeiras, que são figuras importantíssimas parte dessa paisagem e cada vez mais em extinção, por conta da implantação de grandes projetos que visam exclusivamente ao ganho e o lucro de alguns. Para um projeto ser socialmente justo seria necessário que todos se beneficiassem dele. Mas o que acontece, pelo contrário, é que essa população perde toda a condição que tinha antes da implantação desses projetos.
Quando analisamos o finalzinho da década de 60 e os anos 1970, quando foram implantados os grandes projetos de irrigação veremos uma ampliação absoluta da pobreza e o beneficiamento de um grupo muito reduzido de pessoas que ganharam e continuam ganhando muito dinheiro com o rio: os empresários.
Os antigos proprietários das terras de gleba que foram desapropriadas pela Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e pela Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) para se implantar esses grandes projetos viraram mão de obra alugada dessas empresas. Alugadas porque não são assalariados, não têm carteira assinada, não têm emprego fixo. Eles trabalham nessas propriedades quando há necessidade de maior contingente de trabalhadores na época de plantio e colheita.
Lúcia Marisy, especialista em Educação de Jovens e Adultos e pró-reitora de extensão da Univasf. Foto: Marsílea Gombata
Lúcia Marisy, especialista em Educação de Jovens e Adultos e pró-reitora de extensão da Univasf. Foto: Marsílea Gombata
CE: De que maneira vocês trabalham com a população local em projetos de extensão, em especial dentro de projetos de Educação de Jovens e Adultos?
LM: A Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) tem uma tradição de trabalhar com as populações tradicionais dessa região. Então a gente trabalha muito com agricultores familiares, exatamente nessa perspectiva de dar a eles empoderamento e autonomia, no sentido de dar um significado ao seu trabalho, à sua vida e poder buscar a valorização daquilo que realiza. Temos formado muitos agentes de desenvolvimento ambiental e sustentável. Temos trabalhado muito com os pescadores artesanais, para que possam ter um aprendizado a ser agregado ao seu conhecimento e também ao próprio pescado. Ou seja, fazendo pequenas transformações do produto in natura, para que possa comercializar esse produto a um preço mais elevado, já que o pescador tradicional não dispõe de uma infraestrutura para armazenar esse pescado. Ele não tem câmara fria, não tem barco grande para guardar. Ele vende o pescado retirado do rio pelo preço mais aviltante que se pode imaginar. Trabalhamos com eles, por exemplo, mostrando que podem fazer hambúrguer, bolinho e espetinhos, de modo a agregarem valor ao pescado.
CE: E isso é feito em um curso de extensão da universidade? Como funciona? 
LM: Temos um projeto há mais de seis anos onde trabalhamos com pescadores artesanais em todo o entorno: sertão, São Francisco na Bahia, São Francisco em Pernambuco e também em Itaparica. A proposta é exatamente essa: trabalhar o pescador artesanal a perspectiva da cidadania, para que ele passe a saber quais são seus direitos, o que a colônia de pescadores tem a obrigação de oferecer, como ele pode garantir a qualidade de seu pescado, a qualidade do rio, fazer a reposição da mata ciliar. É aprender a conviver com esse processo e noções de cidadania que temos trabalhado com eles, agricultores familiares, assentados da reforma agrária e, mais recente, com povos de terreiro, quilombolas e indígenas.
CE: E qual o resultado que vocês veem?
LM: Observamos que eles vêm ganhado muito na perspectiva da organização, com foco na economia solidária, no empoderamento e em relação à cidadania, quando eles se reconhecem como sujeitos de direito e passam a poder exigir seus direitos junto aos órgãos públicos.
CE: Como, por outro lado, esses povos ajudam vocês na elaboração de um plano para ajudar na revitalização do rio?
LM: O pescador artesanal tem uma sabedoria muito grande, uma vez que é um grande observador. Do momento em que joga a rede ou o anzol, ele fica em seu barco prestando atenção no que ocorre ao seu redor. Então, ele sabe exatamente qual a região do rio onde há maior concentração de peixe, ele descobre, por exemplo, que debaixo de uma determinada árvore há uma concentração de peixes. Ele pode não saber o porquê daquilo, mas ele observou aquele processo. Depois a gente chega à conclusão que os frutos daquela árvore são alimentos para os peixes. Temos nos revitalizado e aprendido muito com esse trabalho. A observação do pescador é um ponto de partida para que nós, na universidade, desenvolvamos pesquisas em cima disso.
CE: Existe uma pedagogia específica para o semiárido? Por muito tempo houve uma negação da seca e inúmeras tentativas para combatê-la. De um tempo para cá tem havido um movimento de aceitação? Como é isso?
LM: Dos anos 1980 para cá tem havido um trabalho muito interessante aqui na região por parte de organizações não governamentais, como o Instituto Agronômico de Pernambuco, e também da Embrapa e das universidades em prol de um trabalho de convivência com o semiárido. O foco é fazer as pessoas compreenderem que a seca é um fato, ela não vai acabar ou desaparecer. As pessoas podem, então, viver melhor a partir da convivência com ela. Aqui, por exemplo, antes o agricultor insistia muito para plantar milho. E a gente sabe que milho é de uma cultura de clima temperado e jamais será bom para se plantar no semiárido. A gente tem que apontar isso para o agricultor e dizer a ele, que pode plantar outras culturas que tenham resultados bastante semelhantes aos do milho para a alimentação tanto humana quanto animal e sem grandes perdas. Pode plantar, por exemplo, alfafa e outros grãos para substituir.
Com a produção animal passa o mesmo. As pessoas estavam habituadas a entender que uma grande quantidade de caprinos em sua propriedade, ainda que eles fossem todos magérrimos, era importante e dava valor e poder. Muitos possuíam 200 cabeças de caprino, mas não tinha alimento para tudo isso. Então tentamos mostrar que se ele tiver apenas 50 cabeças de caprinos em sua propriedade, terá um rendimento muito maior na hora de vender esses 50 caprinos no lugar de 200, pois vai gastar menos com alimento, terá comida o suficiente para o animal ganhar peso e poderá ter um resultado muito melhor. Então trabalhamos essa questão da sobrevivência não só com os agricultores, mas também nas escolas com os professores. Principalmente nas escolas de Ensino Básico, com professores recebendo capacitação para ensinar a convivência no semiárido. Por exemplo, nos da universidade temos já por anos seguidos um curso de especialização ou de graduação em educação do campo, para que professores que trabalham nas escolas da zona rural possam, ao trabalhar com os alunos, oferecer ensinamentos que melhorem a qualidade de vida da sua família.
CE: Existe alguma política pública via secretaria de educação para incentivar esse ensinamento de convivência com o semiárido?
LM: Pernambuco, de certa forma, conseguiu adotar essa política da convivência nas escolas tanto municipais quanto estaduais. A Bahia conseguiu fazer isso em algumas regiões. Eu acho que hoje está bem disseminado aqui, mas não tanto quanto em Pernambuco.
CE: Quais os impactos da transposição do São Francisco para as comunidades que dependem dele? Como a senhora vê a transposição, que deve ser entregue até o fim de 2016? Ela era necessária, dentro dessa perspectiva de aceitação do semiárido?
LM: Na minha avaliação, ela era completamente desnecessária. Se fizermos uma série de indagações sobre as necessidade, como se a quantidade de água do rio que será transposta é suficiente para atender, vemos que não, não temos água suficiente para isso. Não temos nem para atender as demandas locais, que dirá as que estão surgindo. Havia tecnologias de armazenamento de água da chuva muito importantes e muitíssimo baratas. Essas iriam atender cada família. Poderiam ter colocado uma cisterna, um barreiro, um aproveitamento de água de caminhos, uma barragem subterrânea em cada família. Isso custa muito barato, entretanto, o governo preferiu adotar um sistema que não vai levar água para todas as famílias de forma nenhuma, ou seja, quem não tem água hoje vai continuar não tendo, uma vez que na zona rural da nossa região a espacialidade das habitações é bem espaçada. Então, quem tiver ao lado do canal pode receber água, mas as famílias que estão a dois ou três quilômetros vão continuar sem. A transposição não atenderá essa finalidade de levar água a quem precisa. A transposição vai, sim, atender aos grandes empresários que utilizarão essa água para fazer plantio de frutos para a exportação. Então, vai atender ao grande capital e não à pequena população.
CE: A senhora defende, então, que esses investimentos nunca têm como foco a população local, apenas as grandes empresas?
LM: Não têm e nunca terão. A barragem de Sobradinho está aqui como testemunho. É um grande lago, um dos maiores do mundo. E quando você vai a 1 km de barragem encontra populações morrendo de sede.
Editor - acoplar politicas de desenvolvimento turistico sustentável participativo será de grande valia a toda a região.
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