18 de jun. de 2016

Nosso futuro? 7 anos após golpe “branco”, Honduras ainda não é uma democracia

Nosso futuro? 7 anos após golpe “branco”, Honduras ainda não é uma democracia 

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(O caixão com o corpo de Berta Cáceres, líder indígena assassinada em março. Foto: Jorge Cabrera/Reuters)
Ninguém viu, nestes sete anos que separam o dia em que Manuel Zelaya foi arrancado, de pijamas, da presidência em Honduras, e hoje, qualquer nome da direita brasileira se levantar contra o que se transformou o pobre país da América Central desde então. Em junho de 2009, os reacionários de nosso país e a mídia que lhes dá suporte foram unânimes em afiançar que o que se passou em Honduras foi uma “deposição constitucional” para impedir que Zelaya “se perpetuasse” no poder. Era preciso “salvar a democracia”, diziam. Uma democracia que, quase uma década depois, jamais chegou para os hondurenhos.
Hoje, a direita brasileira se cala diante do título recebido por Honduras de “país mais perigoso do mundo para ser defensor do meio ambiente”, da absurda criminalização dos movimentos sociais e diante das dezenas de assassinatos de jornalistas e de defensores dos direitos humanos. A direita brasileira tampouco protesta contra a mudança constitucional que o atual presidente Juan Orlando Hernández (de direita) quer fazer para –ora, ora, ora– conseguir se reeleger, a exata razão pela qual Zelaya foi destituído. Se calam porque talvez, no fundo, seja este futuro que desejam para o Brasil, alvo de um golpe “branco” como o que ocorreu em Honduras e também no Paraguai.
De março para cá, dois líderes indígenas foram assassinados em Honduras, Berta Cáceres e Nelson García, se somando aos 101 ativistas mortos entre 2010 e 2014. Por que isso está acontecendo? Porque desde que a direita assumiu o poder com o golpe “constitucional” de Zelaya, entregou o país ao agronegócio, às multinacionais, às grandes empresas de mineração e aos projetos de infraestrutura energética -leia-se hidrelétricas. Todos estes “megaprojetos”, como são chamados, incluem o deslocamento de povos originários.
Quem protesta contras estas arbitrariedades é esmagado pelas forças policiais e quem denuncia, morre: apenas entre 2010 e 2014, 20 jornalistas de oposição ao governo foram assassinados e apenas quatro pessoas foram condenadas por estes crimes até hoje. Sob qualquer ângulo que se olhe, Honduras é uma ditadura com verniz de democracia, apoiada veementemente, é claro, pelos Estados Unidos.
O assassinato a tiros da líder indígena Berta Cáceres, de 44 anos, por pistoleiros em sua própria casa, chamou a atenção do mundo para o que ocorre em Honduras. Berta, fundadora da organização não-governamental Copinh (Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras), havia ganhado em 2015 o prestigioso prêmio Goldman de Meio Ambiente por sua atuação contra a represa de Água Zarca, no rio Gualcarque, considerado sagrado pelo povo lenca. Após a pressão internacional, o governo de Honduras apontou os suspeitos pela morte de Berta, e um dos detidos é justamente um gerente da empresa responsável pela obra, Desa (Desarrollos Energéticos).
Antes de os possíveis culpados aparecerem, porém, o governo hondurenho envolveu o sociólogo mexicano Gustavo Castro, da organização Otros Mundos Chiapas, em um enredo kafkiano. Castro tinha viajado ao país para dar cursos de capacitação no Copinh, estava na casa de Berta e escapou por pouco de também ser assassinado. Mas correu o risco de ser apontado como autor da morte da amiga e, impedido de deixar Honduras, teve que se abrigar na embaixada do seu país durante um mês.
Entrevistei o sociólogo, que já está no México, por skype, e fiquei impressionada com o seu relato sobre a situação de Honduras hoje as semelhanças com o Brasil, sobretudo a judicialização excessiva, a perseguição aos movimentos sociais e a total entrega do país às grandes corporações e ao capital estrangeiro. Será este projeto que querem para o Brasil? Leia, é impressionante.
(O sociólogo mexicano Gustavo Castro)
(O sociólogo mexicano Gustavo Castro)
O que aconteceu com Honduras após o golpe de 2009?
Gustavo Castro – Primeiro, os golpistas trataram de transmitir a ideia de que o golpe era constitucional. Deram o golpe porque o presidente estava querendo modificar a Constituição para permitir a reeleição e, no entanto, agora o presidente está mudando a Constituição para permitir a reeleição –ou seja, quando é a direita que faz isso está bem; se é a esquerda faz, é ilegal… Depois disso, tentaram também transmitir a aparência de avanço democrático diante da opinião pública e da comunidade internacional, de que o país ficou melhor, de que graças ao golpe as coisas tinham melhorado. Obviamente, após o assassinato de Berta e a tentativa de me matar, veio abaixo todo esse teatro que montaram. Outro elemento importante é que os golpistas foram os que aprovaram todas as concessões para os megaprojetos que estão gerando mais mortos. Por exemplo, são eles que estão dando as concessões aos projetos na área de mineração e também para as cidades-modelo, o que aqui no México se chamam “zonas econômicas especiais”, que faz duas semanas o presidente Henrique Pieña Nieto aprovou.
O que são exatamente essas cidades-modelo?
G.C. – Há muitos tipos, todos eles incentivados pelo banco Mundial. São como um território para as grandes corporações, inclusive é necessário um visto especial para entrar nelas. É como uma cidade enorme, com seus próprios hospitais, sua própria energia, Justiça própria… E foram os golpistas que aprovaram as cidades-modelo. Obviamente nisso também se reflete o fato de que o golpe foi apoiado e financiado pelos EUA e também pela grande elite, pela oligarquia local e pelas grandes corporações que vão se beneficiar dele.
Por que as lideranças indígenas de Honduras estão sendo ameaçadas e mortas?
G.C. – Entre os megaprojetos que estão sendo aprovados estão as concessões de mineração, sobretudo a céu aberto, e isso, é claro, em territórios indígenas. Muitos projetos de represas para gerar energia hidrelétrica preveem inundações de florestas, de terras indígenas e de camponeses, e o deslocamento de populações. As cidades-modelo também exigem deslocamento de populações para apropriação do território. Há um megaprojeto gigantesco para impulsionar o azeite de dendê, a palma africana, na região dos povos garífunas (grupo étnico cafuzo, mestiço de índio com negro africano), na costa do país. O dono da principal fábrica, Facussé, pertence a uma das famílias mais ricas do país. Para isso, precisou deslocar população e as matanças são incríveis. Sejam minas, sejam represas, seja azeite de palma, sejam cidades-modelo, todos estes projetos implicam em deslocamento de população.
Qual a razão que utilizaram para tentar impedir você de sair do país?
G.C. – Porque o governo não queria chegar ao fundo da investigação sobre o assassinato de Berta,  já que envolvia procuradores, as famílias mais ricas do país, a polícia, o Exército e o próprio presidente da República. Todos eles de alguma maneira estiveram envolvidos. Queriam tirar a corda do pescoço, então tinham que buscar culpados. E eu era um deles. Tentaram fabricar provas para dizer que seria algo interno dos membros do Copinh. Tentaram criminalizar e dividir a organização. E, obviamente, a mim. Para isso, precisavam me manter em Honduras. Eu já havia feito todas as perícias, declarado diante do juiz, feito os exames médico-forenses, acareações, reconstituição dos fatos, tudo. Então, me disseram que podia ir embora, mas depois se arrependeram. Me detiveram no aeroporto, o que eu considero uma espécie de sequestro de Estado –e por isso falei sobre a possibilidade de processar o governo de Honduras diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por essa retenção ilegal e também pelas ilegalidades da juíza, que se sentiu no direito de destituir meu advogado no exercício de sua atividade, coisa que não pode fazer. Uma pessoa não pode deixar de advogar para outra porque a juíza diz que não pode e me deixar sem defesa.
É como um estado de exceção, não?
G.C. – Exato. No aeroporto, eles me detiveram sem nenhuma ordem, não me entregaram nenhum documento, absolutamente nada. Estavam escondidos no aeroporto desde as 6 da manhã e quando cheguei, acompanhado da embaixadora e do cônsul, antes de passar pela aduana, eles apareceram e não permitiram que seguíssemos em frente. O único que me disseram é que eu não poderia ir, que deveria regressar, e quando fizemos intenção de sair, disseram que eu não podia deixar o aeroporto. Um sequestro totalmente ilegal. Quando os procuradores do Ministério Público se deram conta de que eu não iria subir na viatura –não foram violentos, apenas nos impediam o passo– é que houve um momento de apreensão. Neste momento, a embaixadora e o cônsul se deram os braços, me rodearam e disseram: “proteção consular, daqui ele não sai”. A polícia chegou e não tiveram a coragem de tocar na embaixadora nem no cônsul, o que seria um problema diplomático. Nos liberaram e me disseram que estaria em alerta migratório (impedido de sair) por 30 horas. Saímos correndo para a embaixada, como num filme mesmo, os portões abertos da embaixada…
Você ficou preso na embaixada durante quanto tempo até que liberassem sua saída?
G.C. – Todo o mês de março. Cheguei no dia 5 e fiquei até o dia 30.
Estava só com a roupa do corpo ou chegou a levar mala?
G.C. – Não, só o que vestia. Uma das ilegalidades que o governo cometeu foi roubar a minha mala na casa de Berta e nunca quiseram devolver. A maleta era um refém para poder me acusar, podiam colocar armas nela, drogas, uma carta, qualquer coisa que pudesse me incriminar ou relacionar com os assassinos. E houve outras armadilhas: por exemplo, no momento em que eu fazia o retrato falado do sujeito que disparou contra mim, o cara que estava desenhando reproduzia o rosto de um companheiro do Copinh que estavam tentando incriminar e que estava detido como suspeito. Não tinha me dado conta, porque não o conhecia, só descobri depois. Eu falava “mas o rosto não é assim”, ele apagava e tornava a fazer do mesmo jeito… “O cabelo é diferente”, ele mudava duas ou três coisas e deixava igual.
(A líder indígena assassinada Berta Cáceres. Foto: Goldman Environmental Prize)
Como foi o momento do crime?
G.C. – Eu estava no meu quarto, na casa de Berta, quando escuto que ela diz: “quem está aí?” E em poucos segundos empurram a porta do meu quarto e eu vejo, a dois metros de mim, um pistoleiro com a arma apontada para a minha cabeça. Escuto os disparos contra Berta e, antes de sair correndo, ele decide atirar. Por milagre, só atingiu de raspão minha mão e a orelha. Para o pistoleiro, no entanto, foi uma ilusão de ótica: como me viu sangrando na cabeça, achou que tinha me matado. Vinham com o rosto descoberto, pensavam que ela estava sozinha. Não queriam deixar testemunhas.
Com tudo que você passou lá, pode dizer que Honduras vive uma democracia?
G.C. – Não. Querem aparentar uma situação democrática, mas estão muito longe disso. Há muitas instituições democráticas que não estão instaladas. Enquanto houver impunidade e corrupção não há democracia. É um país onde há delitos, assassinatos todos os dias, é um dos países mais violentos do mundo. As pessoas podem portar cinco armas cada uma. Se é uma família com cinco adultos, haverá 25 armas. Isso significa que não há estado de direito, instituições, democracia, sistemas de segurança.  A Organização dos Estados Americanos instalou a Maccih (Missão de Apoio ao Combate à Corrupção e a Impunidade em Honduras) e obviamente que os políticos não queriam, porque todos estão envolvidos na corrupção. Antes de eu chegar lá, eliminaram o Conselho do Judiciário (o nosso Conselho Nacional de Justiça). Por isso a juíza poderia fazer tudo o que quisesse. Não há uma instância que controle a atuação dos juízes. E isso em um país onde há milhares de vítimas todo ano, onde mais de dez pessoas tiveram que pedir medidas cautelares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e foram assassinados, entre eles Berta. O governo não tem a capacidade de proteger as vítimas –claro, porque sabe quem as está matando. O próprio Exército foi acusado de assassinato. Também não tem condições de proteger aos defensores do meio ambiente e aos jornalistas.
Como reage a imprensa de Honduras a isso tudo?
G.C. – A imprensa de Honduras está nas mãos das famílias mais ricas e que disputam o poder entre si. Quando lhes convêm, defendem o presidente. Quando não lhes convêm, o atacam. Aparentemente pode haver uma imprensa crítica, mas que está contra o presidente porque defende outra oligarquia que quer tomar o controle. Nos momentos em que o presidente vai contra os interesses das famílias mais ricas elas o atacam mais fortemente… É interessante ver como muitos destes empresários também têm outros negócios: concessões de mineração, concessões de serviços, empresas construtoras, participação em empresas hidrelétricas… A imprensa tem um papel ambíguo e os meios alternativos são muito perseguidos. Jornalistas de muito renome foram assassinados e se fala de 90% de impunidade em relação a estes crimes. Por isso me refugiei na embaixada, não confiava em estar nas mãos de um governo que não tem condições de me proteger.
Qual o papel dos EUA nisso tudo? Se acusa a USAID de ter uma interferência direta.
G.C. – Para os EUA, Honduras é como o quintal deles. Temos que lembrar que foi, durante muitos anos, um território-chave para a contra-insurgência que o governo dos EUA financiou para combater os movimentos rebeldes na Nicarágua, El Salvador e na Guatemala. Todos os países ao redor de Honduras estavam em processo revolucionário e os EUA usaram Honduras como um território-base para combater estes processos. Está ali a base militar norte-americana de Palmerola, a maior da América Latina (reforçada e ampliada no ano passado).
Ou seja, os EUA têm um interesse geográfico em Honduras.
G.C. – Sem dúvida. Para combater os processos revolucionários e assegurar o controle da região, sendo Honduras um país que está na metade da América Central. Há também outros interesses, hidrelétricas, infraestrutura e, além disso, petróleo. Por isso os EUA põem e destituem os presidentes que querem. A presença dos EUA aí é determinante e naturalmente a USAID (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional) usa seus fundos para aprofundar as divisões nas comunidades. Chega à comunidade, faz projetinhos para ajudar os que estão a favor das hidrelétricas e com isso fortalece essa divisão.
Você está acompanhando as notícias do Brasil? Enxerga alguma semelhança entre o que aconteceu e Honduras e o “golpe branco” que estamos vivendo aqui?
G.C. – Muitas. Eu creio que é uma tendência forte na América Latina, como a direita está se impondo por meio de golpes técnicos. Agora eu sinto que é como uma segunda onda de golpes não pela via explicitamente militar, mas por esta via técnica, constitucional. É como uma nova onda de golpes militares não militarizada, para avançar no aprofundamento deste capitalismo, destes tratados de comércio que eles defendem. Isso implica na total abertura e entrega destes países ao mercado, acabar com a soberania deles. Mas a resistência dos movimentos sociais é forte e por isso essa criminalização seguirá aumentando. Os contratos que as multinacionais fazem implicam que os governos deem garantias sobre seus investimentos, que deem segurança a seus projetos ou terão que ser indenizadas em milhões de dólares. É mais fácil e mais barato criminalizar os movimentos sociais do que pagar as indenizações ao suspender só uma mina dessas. O que antes era uma mobilização pacífica, constitucional, agora é igual a terrorismo, é igual a sequestro, igual a impedir investimento estrangeiro, é igual a impedir o desenvolvimento. E significa cárcere. Claro, isso desmobiliza as pessoas. Não vai ser uma luta fácil a que temos pela frente.

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