30 de jun. de 2016

Refém da iniciativa privada - Lei Rouanet

Refém da iniciativa privada

Pesquisa do Instituto de Economia aponta distorções e contradições na Lei Rouanet

A dinâmica de funcionamento da Lei Rouanet, a partir da sua criação, em 1991, até os dias atuais, imprimiu distorções e contradições nos seus objetivos iniciais, que previam, entre outras finalidades, a descentralização e o estímulo à regionalização da produção cultural, a defesa da autonomia criativa, a priorização das produções originais do país, o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais.
Para o pesquisador da Unicamp Franco Galvão Villalta, que acabou de concluir estudo sobre o tema, na prática, a Lei Rouanet não atende a nenhum destes objetivos. Ele sustenta que a Lei nº 8.313, de âmbito federal, conferiu, por meio de recursos públicos, capacidade de comando da atividade cultural a critérios privados.
O economista Franco Galvão Villalta, autor da dissertação: “A lógica empresarial induziu no campo cultural um processo de padronização da produção artístico-cultural”“Se a decisão de financiamento cultural está subordinada a critérios empresariais de decisão, as manifestações culturais desprovidas de tais características dificilmente conseguirão se viabilizar. Por outro lado, esta lógica empresarial induziu no campo cultural um processo de padronização da produção artístico-cultural, comprometendo a diversidade e a multidimensionalidade da cultura brasileira”, afirma.
Franco Villalta explica que a legislação é hoje a principal política pública de incentivo ao setor no país. Por meio dela, o governo federal concede até 4% de isenção fiscal sobre o imposto de renda e, em troca, as empresas investem em algum tipo de atividade cultural do seu interesse. São concedidos, anualmente, R$ 1.3 bilhões em isenções fiscais à iniciativa privada para o investimento em cultura. Esta cifra é similar ao orçamento anual do Ministério da Cultura (Minc), compara o estudioso da Unicamp.
“Portanto, acaba-se imprimindo uma dinâmica de financiamento da atividade cultural calcada em critérios empresariais, tornam as atividades uma espécie de marketing cultural. As empresas usam a lei e o dinheiro público para promover suas marcas. E elas querem que suas marcas cheguem ao ouvido de que público? Daquele com potencial de maior consumo. Os recursos da lei se concentram no Estado de São Paulo, não porque o Estado produz mais cultura, mas porque é o Estado mais rico, com maior poder de consumo. Estima-se que 40% dos recursos estão centralizados no Estado”, critica.
Ainda de acordo com ele, a legislação não democratiza a cultura no país, tanto sobre o aspecto de quem a produz, quanto do público que a consume. “O Cirque du Soleil, por exemplo, vem ao Brasil por meio da Lei Rouanet. Só que a empresa que ganha subsídio fiscal para trazer o Cirque du Soleil, além de se promover, cobra, em média, R$ 300,00 por entrada. A lei concentra muitos recursos em grandes artistas também. Temos o caso da Maria Bethânia que arrecadou mais de R$ 1 milhão para fazer um blog; o Michel Teló, por exemplo, no ano passado, arrecadou R$ 8 milhões. Tem a Cláudia Leite também. Portanto, estes artistas concentram muitos recursos porque trazem muita visibilidade para as marcas das empresas”, aponta.
A pesquisa de Franco Galvão Villalta foi conduzida junto ao Instituto de Economia (IE) como parte de sua dissertação de mestrado na área de concentração em economia social e do trabalho. O estudo, apresentado junto ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, foi orientado pelo docente José Dari Krein, que atua no Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) do IE.
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) financiou o trabalho, concedendo bolsa de estudo ao pesquisador da Unicamp.  Além de economista formado pelo IE, Franco Villalta é músico, com graduação em andamento junto ao Instituto de Artes (IA) da Unicamp. 
A sua dissertação de mestrado avaliou os impactos das políticas públicas no mercado de trabalho na área cultural no início do século XXI no Brasil. Conforme o economista, o seu objetivo foi tentar compreender a dinâmica que o funcionamento da Lei Rouanet trouxe para a realização das atividades culturais e como estas condições de realização da atividade cultural interferiram nas estratégias de sobrevivência daquele que se denomina um agente da cultura.
“Na medida em que tornam mais seletivas as manifestações culturais que terão acesso ao financiamento, a dinâmica produzida pela Rouanet interferiu diretamente nas condições às quais os agentes da cultura tiveram que se submeter para viabilizar sua sobrevivência. Os produtores que não conseguiram se adequar às exigências da lei foram eliminados desse sistema. E para os que conseguiram se adequar, eles tiveram, em grande medida, que adequar o seu fazer cultural. E a autonomia criativa, um pressuposto básico para a produção cultural, acaba sendo abandonada”, indica.
Neste sentido, complementa o pesquisador, o foco da sua dissertação foi contribuir para que os agentes da cultura tenham maior conhecimento das relações econômicas, “que, de certa forma, influem diretamente sobre as possibilidades colocadas para estes agentes sobreviverem e realizarem aquilo que acreditam.”
NOVO MERCADO
Franco Villalta aponta ainda que o processo de isenção fiscal promovido pela lei criou um novo mercado, o chamado mercado de captação, com elevadas exigências burocráticas e um novo tipo de expertise.  Ele relata que as empresas, para conseguirem a isenção de imposto e a liberação desses recursos, precisam fazer um cadastro no sistema da Lei Rouanet e buscar, no mercado, projetos para apoiar.
Do outro lado, os agentes culturais elaboram suas propostas culturais em formato de projeto e os submetem à aprovação técnica do governo federal. Uma vez licenciados, os agentes da cultura levam seus projetos para o mercado, em busca de empresas que se interessem em apoiá-los.
“As maiores empresas, principalmente os bancos, criaram suas próprias instituições culturais e passaram a autofinanciar seus próprios projetos. É o caso da Itaú Cultural, empresa vinculada ao Banco Itaú, responsável por expressiva parcela de financiamento das atividades culturais. Posteriormente, o autofinanciamento foi proibido pelo governo federal, mas as empresas passaram a realizar financiamento cruzado, ou seja, duas grandes firmas compactuam financiar as empresas culturais subsidiárias uma da outra”, relata.
Já em torno das empresas de menor porte, estruturaram-se, segundo Franco Villalta, “empresas especializadas em captação que ‘organizam’ os recursos das pequenas companhias de uma localidade, bloqueando o acesso pelos grupos aos recursos locais. Para alcançarem esse financiamento, os grupos, subordinados ao intermédio destas empresas de captação, tem que se sujeitar a taxas que atingem 40% do valor total do projeto”, dimensiona.
O economista Celso Furtado, cujas ideias sobre cultura fundamentaram parte da pesquisa de Villalta:  privilegiando a criatividade e a potencialidade humanaFURTADO E A CULTURA
O pesquisador da Unicamp informa que empregou, em seu trabalho, a noção de cultura a partir do pensamento do economista Celso Furtado. Em sua justificativa, Franco Villalta afirma que o marco teórico de Furtado permite entender qual deve ser o papel das políticas públicas neste campo.
“No pensamento de Furtado, a criatividade e a potencialidade humana constituem o espaço em que as políticas públicas culturais devem atuar. Para ele, cultura diz respeito àquilo que é mais nobre no homem, como indivíduo e como ser social; é o seu permanente esforço para enriquecer de valores o mundo em que vive; é a conjugação daquilo que é, enquanto identidade, com aquilo que deseja ser, enquanto potencial criativo. Em suma, o sistema de cultura seria a ótica dos fins, dos desejos, da intencionalidade humana”, fundamenta.
O economista acrescenta que estes conceitos de Celso Furtado estavam presentes nos objetivos da Lei Rouanet e da sua precursora, a Lei Sarney. Ele lembra que Furtado ocupou, entre 1986 e 1988, o posto de ministro da Cultura do ex-presidente José Sarney, sendo um dos principais responsáveis por encaminhar a Lei Sarney.
Conforme o estudioso, Furtado objetivava promover a participação da sociedade brasileira nas decisões da produção cultural, de modo que seu funcionamento possibilitasse, em paralelo com o incremento no montante de recursos, a modificação de duas tendências históricas da realização da cultura no país: o rompimento do papel ideológico exercido pelo Estado, sobretudo o governo militar, e estimulo às iniciativas culturais nascidas no seio da sociedade brasileira.
“Mas, contraditoriamente, a dinâmica de funcionamento da Lei Rouanet, influenciada pela lógica existente no mercado de captação, deu ensejo a um processo de concentração dos recursos nas atividades culturais que melhor atendem aos objetivos do marketing cultural, instrumentalizando os recursos públicos para financiar uma atividade cultural que não possui a cultura como finalidade última”, lamenta.

Publicação
Dissertação: “Os impactos das políticas públicas no mercado de trabalho na área cultural no início do século XXI no Brasil”
Autor: Franco Galvão Villalta
Orientador: Jose Dari Krein
Unidade: Instituto de Economia (IE)
Financiamento: Capes
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