15 de jul. de 2016

O milagre do vinho no São Francisco-BR


Vinhos

O milagre do vinho no São Francisco

Abastecidas pelas águas do Velho Chico, vinícolas investem na qualidade do vinho e promovem o enoturismo no Sertão
por Marsílea Gombata — publicado 11/07/2016 04h43
Zig Koch/Pulsar Imagens
Petrolina
Petrolina, PE: o rio irriga o sonho de um Alentejo nos trópicos


Ao longo dos seus 2.863 quilômetros de extensão, o Rio São Francisco corta cinco estados e carrega em suas águas histórias, contradições, tristezas e também surpresas. Há 40 anos, dificilmente se imaginaria, por exemplo, que o Sertão nos arredores do rio seria um polo produtor não apenas de frutas para exportação, mas também de vinhos de qualidade.
Diferentemente do clima frio que atraiu colonos europeus para o Sul do País, o Semiárido nordestino é dono de um sol incessante que raramente recebe a visita da chuva. Mas é exatamente no clima castigante que reside a força da produção vinífera da região. 
Com sol o ano inteiro e um sistema de irrigação por gotejamento com as águas do Velho Chico, a região do Vale do São Francisco surpreende ao conseguir o dobro de safras que a maioria das vinícolas de clima temperado alcança. 
Em meio à Caatinga e aos bodes, as vinícolas do Sertão chegam a produzir 2,5 safras ao ano, mais do que o dobro de uma vinícola no Sul gaúcho com uma safra anual. 
O desafio, explica o enólogo João dos Santos, é exatamente este: produzir vinho em um lugar antes impensável. Diretor-comercial da Rio Sol, ele conta que a empresa Global Wines chegou à região no começo dos anos 2000, quando uma greve na Receita Federal em 2002 deixou o lote proveniente de Portugal parado quatro meses na Alfândega.
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Com irrigação por gotejamento, o Vale do São Francisco rende 4 milhões de litros à Fazenda Ouro Verde, um terço da produção anual do grupo Miolo (Foto: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo)
“Exportávamos para 43 países, e o Brasil era o nosso quarto melhor negócio. Pensamos que a melhor saída seria passar a fazer um vinho de qualidade aqui”, lembra. Um desafio ao preconceito do próprio brasileiro em relação ao vinho produzido no País.
Santos trabalha na Vitivinícola Santa Maria, que fica em Lagoa Grande, a 53 quilômetros de Petrolina, cidade pernambucana às margens do São Francisco. Em 2003, quando chegaram os portugueses interessados em produzir fora da Serra e da Campanha Gaúcha, poucos apostavam que as terras vermelhas, o clima seco e as altas temperaturas fossem capazes de gerar uvas viníferas. 
Mas a experiência em Portugal provara o contrário. O Alentejo vivencia temperaturas de 40 graus e é hoje uma renomada produtora de vinhos. De cada duas garrafas de vinho português exportadas, estima-se que uma seja proveniente da região ao sul de Portugal.
“Pensava-se que o Alentejo nunca produziria um vinho de qualidade, mas hoje vemos o oposto”, diz sobre a terra que por muito se dedicou apenas à produção de trigo. “Há uma constância climática. E isso faz os vinhos serem bons.”
A empresa é responsável pelas marcas Rio Sol, Adega do Vale, Vinha Maria e Paralelo 8, feitas com as uvas Aragonez, Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Syrah e Cabernet Sauvignon, amadurecidas por oito meses em carvalho e batizadas em referência à localização próxima à linha do Equador.
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Com oferta de sol o ano todo, a região destaca-se pelos espumantes (Foto: Marsilea Gombata)
Entre vinhos e espumantes por ano, são 1,3 milhão de litros. Nos 160 hectares plantados, as parreiras produzem 25 tipos de uvas, como Cabernet, Aragonês, Tempranillo e Chenin Blanc. Além do consumo doméstico, há exportação para Portugal, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos e Canadá.
Antes, a vinícola era propriedade do Grupo Raymundo da Fonte, que cultivava ali uvas para a produção de vinagre. Atualmente, 60% das uvas destinam-se à fabricação de espumantes – que acabam sendo os vinhos brasileiros de maior prestígio internacional. O restante divide-se entre vinhos jovens e os chamados vinhos de maturação, que representam 6% da produção da vitivinícola.
Com mais de 300 dias de sol por ano, os funcionários simulam períodos de hibernação, ao causar um choque hídrico nas parreiras, a fim de renová-las para a safra seguinte. Assim conseguem obter as quatro fases da parreira, de acordo com as estações do ano: hibernação, florescimento, colheita e poda.
Sujeita a condições climáticas semelhantes, a Fazenda Ouro Verde é a maior concorrente da Rio Sol na região, atualmente. Diferentemente do grupo português, a propriedade do Grupo Miolo fabrica vinhos varietais, como o Syrah Testardi, que fica 12 meses em barris franceses, e espumantes. 
Os 200 hectares da fazenda localizada em Casa Nova, na Bahia, são responsáveis por um terço da produção anual de 12 milhões de litros da empresa, que exporta para mais de 30 países.
Enquanto no Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, a Miolo produz espumantes como Cuvée Giuseppe e Cuvée Tradition, na Campanha Gaúcha fabrica os tintos Miolo Reserva e Seleção, e nos Campos de Cima da Serra faz os da Linha RAR, aqui no São Francisco aposta no tinto Syrah e na linha de espumantes Terranova. 
Hoje o vale já é reconhecido como produtor de vinhos promissores, ainda que sem a pretensão de se igualar aos terroirs de exceção, com vinícolas instaladas nos municípios pernambucanos de Petrolina, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, e em Casa Nova, na Bahia.
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Temperaturas altas favorecem a produção: o Sertão nordestino copia o Alentejo (Fotos: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo e Marsílea Gombata)
Com algumas casas de taipa, a paisagem monocolor do Semiárido pontuada por elementos da vegetação da Caatinga, como o mandacaru e o xique-xique, dá espaço ao verde dos parreirais que sustentam o intenso azul do céu que disputa espaço com nuvens baixas. 
O florescer econômico da região vem acompanhado também por mudanças culturais, nas quais o bode perde na gastronomia o posto para o carneiro, adotado nos restaurantes por conta da preferência do freguês forasteiro. O carré desafia a buchada. 
Para os vinófilos, há dois tipos de romaria. É possível chegar de carro às fazendas, que ficam a uma hora de Petrolina ou Juazeiro, na Bahia. E também há opções de pacotes que incluem, além da visita à vinícola, almoço e passeio pelo São Francisco.
No roteiro mais simples, a Vale Turismo oferece nos fins de semana um tour de oito horas por 140 reais, que inclui visita aos parreirais da Rio Sol, à adega e à fábrica na Santa Maria. Na segunda parte do passeio, uma degustação de alguns vinhos e espumantes a bordo de um catamarã pelas águas do São Francisco, com direito a uma parada para banho. 
Os visitantes retornam para a vinícola, onde são recebidos com almoço regional, acompanhado de um vinho ou espumante da Rio Sol, que tem uma média de mil visitantes por mês.
Rio-Sol
A Rio Sol, da portuguesa Global Wines, cultiva na região 25 tipos de uvas, como Cabernet, Aragonês e Chenin Blanc (Fotos: Marsilea Gombata)
O pacote mais incrementado é feito pela empresa Vale do Vinho, com saída às 8h30 e retorno às 17 horas nos fins de semana e feriados. Por 145 reais, o turista tem direito a uma visita técnica e degustação na Vinícola Miolo (que recebe uma média mensal de 2 mil pessoas), uma passagem memorável pela barragem de Sobradinho (BA) com direito a eclusagem perto da hidrelétrica e navegação por um dos maiores lagos artificiais do mundo, além de uma parada na Ilha da Fantasia para banho. O almoço é servido no barco, com música ao vivo.
É graças ao sol e à água do Velho Chico, portanto, que uma nova produção e roteiro atraem turistas para o Sertão. As benesses do rio, no entanto, sofrem com o desarranjo climático. Com um gasto médio de 4,5 mil litros de água por mês, cada vinícola também terá de se adaptar às secas que no ano passado acenderam o alerta de estiagem. 
“Em crises hídricas, o sacrifício deve ser distribuído por todos e os riscos também”, alerta Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), ao lembrar que as empresas devem se portar como usuários do rio da mesma forma que as comunidades ribeirinhas e quilombolas, as frentes de navegação ou de geração de energia. “É preciso que se respeitem padrões mínimos para a existência da vida aquática no rio.” 
*Reportagem publicada originalmente na edição 907 de CartaCapital, com o título "Milagre de São Francisco"
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