12 de set. de 2016

O Chile nas ruas contra o legado de Pinochet por Victor Farinelli

O Chile nas ruas contra o legado de Pinochet

São centenas de milhares de chilenos nas ruas, 300 mil somente em Santiago e quase um milhão em todo o país. Desde 1990, nenhuma marcha foi tão massiva.


Victor Farinelli
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São centenas de milhares de chilenos nas ruas, 300 mil somente em Santiago e quase um milhão em todo o país – em eventos que aconteceram até mesmo em pequenas cidades, não somente nas capitais de províncias. Desde o retorno da democracia, em 1990, nenhuma marcha foi tão massiva, nem mesmo as muitas primaveras estudantis ou as manifestações após a prisão do ditador Pinochet em Londres (em 1998).

Isso está acontecendo agora, é o grande tema político do Chile atual, as marchas do Movimento No AFP, que reúnem famílias inteiras, principalmente idosos, e coloca em xeque todo o modelo econômico legado pela ditadura – o mesmo que há anos vem sendo alabado pelos neoliberais de toda a América Latina, especialmente do Brasil, mas que esconde, por trás de um aparente sucesso econômico que, na verdade, se trata somente de um falso sucesso empresarial financiado pelo sacrifício dos trabalhadores e seus direitos.

Mas o que é AFP e porque os chilenos estão tão insatisfeitos com isso? A resposta simples explica também porque os grandes meios de comunicação de fora do Chile, especialmente do Brasil, têm evitado tocar no tema – embora mesmo alguns meios privados chilenos também estejam em clara campanha ideológica, tentando distorcer o debate em favor dos interesses de seus patrocinadores.
 
Cassino previdenciário





AFP é a sigla que denomina as Administradoras de Fundos de Pensão. Nos Anos 80, a ditadura realizou diversas reformas no modelo econômico do país, todas elas idealizadas pelos chamados Chicago Boys – economistas chilenos que se pós-graduaram na Universidade de Chicago, sob a tutela do professor Milton Friedman, um dos gurus do neoliberalismo. O mais proeminente desses reformistas neoliberais foi José Piñera, ex-ministro do Trabalho da ditadura, criador das novas leis trabalhistas – vigentes até hoje, e consideradas as mais antissindicais do mundo pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) – e do novo sistema previdenciário, que substituiu a antiga seguridade social estatal pelo sistema de capitalização individual, que é administrado por empresas privadas, as tais AFP´s.

Do dia para a noite, surgiram no Chile uma dezena de grupos empresariais dedicados ao serviço de capitalização individual das pensões dos chilenos. Prometiam aos trabalhadores o paraíso capitalista. As primeiras campanhas publicitárias falavam que todo trabalhador se aposentaria até os 60 anos com 100% do seu último salário como benefício mensal vitalício, ou até mais.

Na prática, o sistema das AFP´s transformou todos os associados em investidores da bolsa. Quando o trabalhador coloca sua contribuição mensal em sua conta de AFP, ele é destinado para um de quatro tipos de fundos disponíveis: A, B, C e D, sendo o fundo A o de maior risco e o D o de menor risco – também existe a opção do fundo E, que não é mais que uma caderneta de poupança comum. O contribuinte escolhe que tipo de fundo prefere, mas depois é a empresa que usará esse dinheiro para comprar ações no mercado financeiro, supostamente buscando aumentar os rendimentos através dos altos e baixos da bolsa. Uma das partes mais convincentes do discuso das AFP´s, nos Anos 80 e 90, era que graças ao sistema todo chileno era um pouco dono da Coca-Cola, ou da IBM, ou de alguma grande empresa multinacional de capital aberto.

Porém, a promessa de altos rendimentos começou a ser desmentida em 2008, quando a grande crise financeira levou a que as contas individuais registrassem perdas gigantescas. Quando isso aconteceu, os chilenos descobriram que, embora as AFP´s administrem os fundos e decidam onde eles serão investidos, é o contribuinte que arca com os prejuízos quando este traz rendimentos negativos, inclusive quando os efeitos sobre as aposentadorias são enormes, como foi o caso.

Assim, o chileno descobriu que sua previdência dependia da lógica do cassino, que a possibilidade de ter um futuro ao menos perto do prometido dependia da bolinha cair no número certo, e a grande crise internacional, que naquele então recém-começava, era a promessa de anos de bolinhas negativas para todos os trabalhadores.

Marchas das bengalas
As reações no Chile quando se descobriram os primeiros escândalos pelos prejuízos das AFP´s foram de desagrado, mas não houve marchas massivas como as de agora – diferente do que aconteceu na Argentina, que mantinha sistema semelhante adotado pelo governo de Carlos Menem, as AFJP, até que ele sucumbiu pela mesma crise, sendo derrubado por decreto da presidenta Cristina Kirchner que restabeleceu a previdência estatal.

A explicação para a passividade chilena talvez esteja no fato de que o sistema, lançado nos Anos 80, até então não tinha mostrado a verdadeira realidade, já que nenhum trabalhador havia se aposentado por ele. Tanto é assim que essa situação começou a mudar à medida que a década atual trazia os primeiros casos de aposentadoria pelo sistema. Desde 2013, o Chile começou a conviver com casos que beiram o absurdo: trabalhadores que ganham aposentadorias que chegam até ser de menos de mil pesos chilenos (cerca de cinco reais) por mês. A média das aposentadorias entregues pelo sistema é de 160 mil pesos (cerca de 700 reais), bastante menos que um salário mínimo no país, que é de 257 mil pesos, e enormemente menos que o prometido há 30 anos.

As primeiras marchas contra as AFP´s reuniam somente uma parte desses primeiros aposentados do sistema, e eram jocosamente chamadas pela imprensa de “marchas das bengalas” pela imprensa local. Porém, a cada ano, com mais aposentados se sentido enganados, e com mais filhos e netos dos mesmos se conscientizando de que aquele também será o seu destino, elas foram crescendo, e neste 2016 elas começaram a ser massivas, e o movimento social No AFP (“Não mais AFP”) passou a ditar a pauta do tema mais importante da agenda pública do país. E a demanda é bem clara: nada de reformismo, acabar com o sistema e voltar ao modelo estatal.

O falso e o verdadeiro legado do neoliberalismo
A reação dos meios de comunicação, das associações empresariais e até das coalizões políticas tradicionais desnudou a defesa do sistema – especialmente o caso dos políticos, dos quais nasceu uma estranha aliança entre direita e centro-esquerda para dizer que o sistema não é ruim, apenas necessita reformas.

Um dos argumentos utilizados, principalmente pelo empresariado, diz que o fim do sistema pode levar todo o modelo econômico chileno ao colapso. Lendo com mais atenção, ele dá a entender que todo o sistema financeiro chileno tem sido patrocinado pelas contribuições previdenciárias dos trabalhadores chilenos desde a instalação do sistema. O milagre econômico chileno, tão celebrado pelo neoliberalismo em toda a América Latina, foi, na verdade, financiado pelo sacrifício dos trabalhadores, que receberam em troca o resultado de um estelionato, um serviço que não entregou aquilo que prometeu, longe disso.

As marchas contra as AFP´s não é o primeiro levante massivo contra os pilares do neoliberalismo chileno. Os mais conhecidos internacionalmente são as revoluções estudantis, que vêm se sucedendo desde o ano 2000, cada vez mais numerosas, e que conseguiram instalar o anseio do retorno da gratuidade, derrubando um sistema educacional que era quase todo financiado pelos trabalhadores – mesmo escolas ou universidades de propriedade pública são administradas por grupos privados, e até 2015 cobravam mensalidades, sendo que algumas ainda cobram.

Também houve mobilizações questionando o sistema de saúde, que também é dominado pelos interesses privados: as chamadas “marchas dos doentes” – que conseguiram, como resultado prático, maior compromisso do Estado no financiamento e disponibilização de medicações patentadas para doenças crônicas ou de alto risco mortal.

Se analisamos todas essas expressões de insatisfação social, podemos perceber que existe um elemento em comum: a demanda por maior participação do Estado. O legado da ditadura chilena, usado como propaganda do neoliberalismo, é falso. Houve crescimento econômico, mas ele esteve longe de se traduzir em qualidade de vida. O verdadeiro legado da ditadura está em índices como o coeficiente de gini, que mede a desigualdade social, e que mostra como o abismo social chileno é comparável com o de países como Guatemala, Senegal e Filipinas, sendo os mais pobres do Chile proporcionalmente tão indigentes quanto os dos países mais miseráveis da América Latina.

Claro que este resultado é ainda mais lamentável se lembramos que ele é fruto de um sistema imposto a fogo e sangue por uma das mais brutais ditaduras da história da Humanidade – talvez, a mais sanguinária da América Latina –, e que mantém vigentes seus pilares através de uma constituição também instalado pelo regime de Pinochet, a qual impõe barreiras quase intransponíveis para qualquer tipo de reforma política ou econômica mais profunda.

Tanto é assim que um dos grupos sociais que disputa as ruas é o Movimento AC, que quer a realização de uma Assembleia Constituinte – a que seria a primeira da história de um país acostumado com cartas magnas impostas por tiranos. Uma luta que tende a tardar muito mais para obter resultados, mas que não deve ser abandonada por uma sociedade que já descobriu que o oásis neoliberal era só areia.



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