20 de nov. de 2016

As Veias Abertas da América Latina livro de Eduardo Galeano

As Veias Abertas da América Latina - Prefácio

Vou costurar as veias abertas da América Latina
Dividiram em três, jogaram duas na latrina
Por que a América do Sul quebra?
Por que banqueiros guardam seus dinheiros em cofres em Genebra?
Tony Blair, Saddam Hussein
George W. Bush, Osama Bin Laden também
O demônio e seus assessores diretos
Eu vim pra salvar o mundo pro meu e pros seus netos
(trecho da música América 21, do rapper carioca Black Alien)

Nessa última semana estava tentando terminar de ler A Era dos Impérios 1875-1914, de Eric J. Hobsbawm, mas não resisti em deixar essa leitura de lado e pegar o recém adquirido As veias abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano, que estava em cima de meu criado-mudo aguardando sua vez de ser lido. Então, como bom brasileiro que sou, decidi utilizar nosso famoso jeitinho e colocar essa leitura, de Esquerda, que há tempos despertou meu interesse na frente dos também de Esquerda Burocracia e Ideologia, de Maurício Tragtenberg, e A Teoria Marxista Hoje, organizado por Boron, Amadeo e González. Assim sendo, As veias abertas da América Latina furou a fila e eu descobri que tudo que eu já tinha ouvido e esperava de Eduardo Galeano está muito aquém daquilo que pude constatar. Galeano conseguiu espaço ali ao lado de meus autores preferidos, dentre eles Gabriel García MárquezSérgio Buarque de HolandaBukowskiPedro Juan Gutiérrez e o já citado Tragtenberge, por isso, deixo-lhes o prefácio da edição adquirida do livro. Boa leitura!!!


Este volume oferece uma nova versão brasileira de As veias abertas da América Latina.
Esta tradução, excelente trabalho de Sergio Farao, melhora a não menos excelente tradução anterior, de Galeno de Freitas. E graças ao talento e à boa vontade destes dois amigos, meu texto original, escrito há quarenta anos, soa melhor em português do que em espanhol.

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O autor lamenta que o livro não tenha perdido a atualidade. A história não quer se repetir - o amanhã não quer ser outro nome do hoje -, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia.

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Segundo a voz de quem manda, os países do sul do mundo devem acreditar na liberdade de comércio (embora não exista), em honrar a dívida (embora seja desonrosa), em atrair investimentos (embora sejam indignos) e em entrar no mundo (embora pela porta de serviço).
Entrar no mundo: o mundo é o mercado. O mercado mundial, onde se compram países. Nada de novo. A América Latina nasceu para obedecê-lo, quando o mercado mundial ainda não se chamava assim, e aos trancos e barrancos continuamos atados ao dever de obediência.
Essa triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e seguiu com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que nos legaram esses esplendores? Nem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas estagnadas, longas caravanas de infelizes condenados à morte precoce e palácios vazios onde deambulam os fantasmas.
Agora é a vez da soja transgênica, dos falsos bosques da celulose e do novo cardápio dos automóveis, que já não comem apenas petróleo ou gás, mas também milho e cana-de-açúcar de imensas plantações. Dar de comer aos carros é mais importante do que dar de comer às pessoas. E outra vez voltam as glórias efêmeras, que ao som de suas trombetas nos anunciam grandes desgraças.

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Nós nos negamos a escutar as vozes que nos advertem: os sonhos do mercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seus caprichos. Continuamos aplaudindo o sequestro dos bens naturais com que Deus, ou o Diabo, nos distinguiu, e assim trabalhamos para a nossa perdição e contribuímos para o extermínio da escassa natureza que nos resta.
Exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos? Salva-vidas de chumbo: em nome da modernização e do progresso, os bosques industriais, as explorações mineiras e as plantações gigantescas arrasam os bosques naturais, envenenam a terra, esgotam a água e aniquilam pequenos plantios e as hortas familiares. Essas empresas todo-poderosas, altamente modernizadas, prometem mil empregos, mas ocupam bem poucos braços. Talvez elas bendigam as agências de publicidade e os meios de comunicação que difundem suas mentiras, mas amaldiçoam os camponeses pobres. Os expulsos da terra vegetam nos subúrbios das grandes cidades, tentando consumir o que antes produziam. O êxodo rural é a agrária reforma; a reforma agrária ao contrário.
Terras que poderiam abastecer as necessidades essenciais do mercado interno são destinadas a um só produto, a serviço da demanda estrangeira. Cresço para fora, para dentro me esqueço. Quando cai o preço internacional desse único produto, alimento ou matéria-prima, junto com o preço caem os países que de tal produto dependem. E quando a cotação subitamente vai às nuvens, no louco sobe e desce do mercado mundial, ocorre um trágico paradoxo: o aumento dos preços dos alimentos, por exemplo, enche os bolsos dos gigantes do comércio agrícola e, ao mesmo tempo, multiplica a fome das multidões que não podem pagar seu encarecido pão de cada dia.

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O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?
As veias abertas da América Latina nasceu pretendendo difundir informações desconhecidas. O livro compreende muitos temas, mas talvez nenhum deles tenha tanta atualidade como esta obstinada rotina da desgraça: a monocultura é uma prisão. A diversidade, ao contrário, liberta. A independência se restringe ao hino e à bandeira se não se fundamenta na soberania alimentar. Tão só a diversidade produtiva pode nos defender dos mortíferos golpes da cotação internacional, que oferece pão para hoje e fome para amanhã. A autodeterminação começa pela boca.
Em 27 de julho de 2001, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, perguntou aos seus compatriotas:
Vocês já imaginaram um país incapaz de cultivar alimentos suficientes para prover sua população? Seria uma nação exposta a pressões internacionais. Seria uma nação vulnerável. Por isso, quando falamos de agricultura, estamos falando de uma questão de segurança nacional.
Foi a única vez em que não mentiu.

Eduardo Galeano (Montevidéu, 2010)
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