18 de nov. de 2016

Chagos, paraíso perdido Editor - não dá para acreditar o que se faz contra as pessoas pelo dominio do poder... é desumano e aviltante


A luta de um povo para regressar a casa

Chagos, paraíso perdido

Uma reportagem de Francisco Colaço Pedro, em Port Louis, Maurícias 
No coração do Índico, o arquipélago de Chagos deve o nome aos navegadores portugueses, em referência às chagas de Cristo. Esta é a história escondida do povo chagossiano, expulso das suas ilhas de areia branca para que os EUA aí construíssem uma das suas mais obscuras bases militares. 
Meio século de deportação, mentira, miséria e morte. Mas este ano a longa luta do povo de Chagos para voltar a casa poderá enfim conhecer um final feliz. 
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“A vossa ilha foi vendida”, anunciaram-lhes. “Nunca mais regressarão”. Olivier Bancoult tinha quatro anos. Nasceu em Chagos, arquipélago perdido sete graus a sul do equador, baptizado por portugueses, colonizado por franceses e ingleses. “Somos descendentes dos escravos”, conta. “Vivíamos em prosperidade, com o nosso crioulo, as nossas culturas e tradições.” “A vida era fácil, cheia de alegria”, recorda Rita David, natural de Diego Garcia, a maior das sessenta ilhas e atóis.
Os habitantes do arquipélago viviam da pesca e do coco, numa economia de troca. “Cada habitante tinha a sua casa e a sua horta. Servíamos a terra, a terra servia-nos a nós”. Simplesmente, esquecidos do mundo, sem conhecer pressa, pobreza ou poluição. 
A vossa ilha foi vendida. Nunca mais regressarão.
Até ao dia em que, em meados dos anos 60, os Estados Unidos descobriram ali o lugar ideal para uma base militar. O Reino Unido deu então a independência às Maurícias, mas inventou em Chagos uma nova colónia, o Território Britânico do Oceano Índico, para poder ceder a ilha de Diego Garcia aos EUA, e receber em troca um desconto nas suas armas nucleares. “Começou o calvário para o nosso povo”, conta Olivier. No maior segredo, alegando que as ilhas eram desabitadas, a Inglaterra expulsou todos os habitantes – perto de duas mil pessoas.
Em Maio de 1973, o último barco repleto de chagossianos famintos chegou às Maurícias. Rita, então com 20 anos e quatro filhos, ainda recorda os gritos das famílias. A maioria nunca tinha saído dos atóis. Muitos nunca tinham visto dinheiro. A dois mil quilómetros de casa, numa ilha mais conhecida no mundo rico pelas praias turísticas, luas de mel e hotéis de luxo, espera-os a mais abjecta pobreza: fome, doenças, drogas, prostituição. 
Rita continua a lutar para um dia voltar à sua ilha, de onde foi desalojada há mais de 40 anos
Rita continua a lutar para um dia voltar à sua ilha, de onde foi desalojada há mais de 40 anos 
Foto: Francisco Pedro Colaço
Como a maioria da comunidade chagossiana, Rita vive desde então em Cassis, um dos bairros mais pobres da capital Port Louis. “Dormíamos em caixas de cartão, em pequenas casas miseráveis, sem água, electricidade ou esgotos”.
Às dezenas, os chagossianos começaram a morrer. Muitos, daquilo a que chamam “sagren”: saudade de casa e angústia profunda perante a impossibilidade de regressar.
Quando ouviu “nunca mais regressarão”, o pai de Olivier Bancoult sofreu um ataque cardíaco. Morreu cinco anos depois. O irmão morreu aos 38, viciado em álcool. Outro irmão morreu aos 36, de overdose de heroína. Outro, com 11 anos, morreu misteriosamente, pedindo esmola. A irmã suicidou-se, lançando fogo ao próprio corpo. Olivier jurou lutar pelo seu povo.
Rita, para alimentar a família, acumulou três trabalhos. Nascida numa das últimas sociedades matriarcais do mundo, assumiu com outras mulheres chagossianas a frente da luta: protestos na rua, greves de fome, detenções pela polícia. “Lutamos para viver na nossa terra!”. Hoje tem 68 anos – e guarda intacta a vontade de voltar.

“PEGADA DE LIBERDADE”

Entre coqueiros e praias de pó branco repousam duas pistas de aterragem repletas de bombardeiros, 30 navios de guerra e dois mil militares americanos. “Bem-vindos à pegada da liberdade”, diz um sinal em Diego Garcia.
Jimmy cresceu em Port Louis, mas ao contrário dos seus vizinhos chagossianos, chegou sem dificuldade a Diego Garcia. Durante dois anos foi um dos três mil trabalhadores que vivem na base militar. Mão-de-obra barata contratada pelo gigante de segurança G4S, que detém o contrato milionário para operar a base. Filipinos, cidadãos do Sri Lanka ou das Maurícias – nenhum chagossiano.
“Os militares desfrutam ao máximo da vida na ilha”, conta Jimmy. “Têm tudo! Campo de golfe, lanchas rápidas, supermercados, piscinas, restaurantes, bares, um casino, o maior ginásio do oceano Índico... É como se estivessem de férias. Somos nós quem trabalha duro por eles.” 
Os militares americanos desfrutam ao máximo da vida na ilha. Têm tudo! Campo de golfe, lanchas rápidas, supermercados, piscinas, restaurantes, bares, um casino, o maior ginásio do oceano Índico...
Mas a “ilha da fantasia”, como a baptizaram os militares, esconde algo sinistro. “Há uma série de segredos, de passagens proibidas”, diz Jimmy. Em Dezembro de 2014, a Al Jazeera denunciou Diego Garcia como um dos “black sites” da CIA. Centenas de “suspeitos de terrorismo” poderão ali ter sido detidos e torturados desde o 11 de Setembro. Tudo por trás de uma cortina de segredo: jornalistas ou observadores internacionais estão proibidos de pôr os pés na “pegada da liberdade”.
Daqui descolaram os aviões que bombardearam o Iraque e o Afeganistão. No livro “Island of Shame” (ilha da vergonha), o antropólogo David Vine explica como Diego Garcia é fundamental para que os EUA possam controlar a Ásia e o Golfo Pérsico, rico em petróleo. 
Da base de Diego Garcia descolaram os aviões que bombardearam o Iraque e o Afeganistão. O local é chamado “ilha da vergonha" pelo antropólogo David Vine, no seu livro “Island of Shame”
Da base de Diego Garcia descolaram os aviões que bombardearam o Iraque e o Afeganistão. O local é chamado “ilha da vergonha" pelo antropólogo David Vine, no seu livro “Island of Shame” 
Logo em 1973, os americanos viram-se limitados à base das Lages nos Açores para abastecer Israel na guerra de Outubro, e decidiram investir mais 500 milhões de dólares em Diego Garcia. Num mundo em
que cada vez mais povos conquistavam finalmente o direito à sua auto-determinação e só o Portugal fascista mantinha as suas colónias, os EUA desenvolviam uma “nova forma de império”, mais discreta e subtil: “uma rede de bases em ilhas estratégicas, remotas e isoladas, para dominar a maior parte do globo possível, sem a ocupação directa do território”.
Do Japão aos Açores, de Guantanamo a Guam, existem mais de mil bases militares norte-americanas por todo o planeta. 

FINAL FELIZ?

A saga do povo de Chagos tem todos os ingredientes para um ’best seller’. Salvo um: o final feliz.
Quando, em Novembro de 2000, Olivier Bancoult, líder do Grupo de Refugiados de Chagos, desceu as escadas do supremo tribunal em Londres, ergueu os dedos em “V” de vitória: a expulsão tinha sido considerada ilegal e o direito dos chagossianos a regressar era reconhecido. Mas era apenas o início de uma longa batalha legal de David contra Golias, com o governo britânico a usar todos os estratagemas legais e logísticos para arrastar o processo – até hoje. 
É um genocídio. Como os aborígenes na Austrália ou os palestinianos. Um povo sem pátria é como uma árvore sem raízes.
Em 2002, no início da “guerra contra o terrorismo”, um estudo conclui que o regresso de assentamentos humanos ao arquipélago é inviável, devido às alterações climáticas. Já em Janeiro deste ano, o The Guardian revelou que o governo britânico manipulara o estudo original, favorável ao regresso. 
Em Novembro de 2000, Olivier Bancoult, líder do Grupo de Refugiados de Chagos, desceu as escadas do supremo tribunal em Londres, ergueu os dedos em “V” de vitória: a expulsão do seu povo tinha sido considerada ilegal e o direito dos chagossianos a regressar era reconhecido. Mas até hoje nada aconteceu e o Reino Unido continua a negar o direito fundamental dos chagossianos regressarem à sua ilha
Em Novembro de 2000, Olivier Bancoult, líder do Grupo de Refugiados de Chagos, desceu as escadas do supremo tribunal em Londres, ergueu os dedos em “V” de vitória: a expulsão do seu povo tinha sido considerada ilegal e o direito dos chagossianos a regressar era reconhecido. Mas até hoje nada aconteceu e o Reino Unido continua a negar o direito fundamental dos chagossianos regressarem à sua ilha 
Foto: Francisco Pedro Colaço
Em 2004, em pleno dia de eleições, a rainha assinou discretamente um decreto-lei para proibir o regresso dos chagossianos. Em 2009 o governo britânico anunciou a criação em Chagos da maior reserva natural marinha do mundo, para proteger “um dos mais puros ambientes tropicais que restam na Terra”. Dois anos depois, documentos divulgados pelo WikiLeaks revelaram tratar-se de mais um estratagema para fechar a porta ao povo de Chagos.
Mas agora chegou “a melhor oportunidade de sempre para pôr fim a meio século de injustiça sem sentido”, diz Stefan Donnely, da Associação do Reino Unido de apoio a Chagos. “Basta o governo inglês fazer o que está certo.” Um novo estudo concluído no ano passado forçou o governo a admitir que o realojamento é “perfeitamente realizável”.
Este ano expira o contrato de 50 anos entre os Estados Unidos e o Reino Unido sobre Diego Garcia e, mesmo que a renovação seja certa, “os novos termos devem incluir apoio à reinstalação dos chagossianos.” Celebridades como a advogada Amal Clooney dão hoje visibilidade a um crime que, sublinha Olivier, “permaneceu em segredo demasiado tempo”. “A cada dia que passa mais pessoas se juntam à nossa causa.”
E a cada dia que passa mais chagossianos morrem no exílio, sem rever a sua terra natal.
“É um genocídio. Como os aborígenes na Austrália ou os palestinianos. Um povo sem pátria é como uma árvore sem raízes,” diz Olivier. “Não queremos caridade. Queremos reconhecimento e reparação por todo o sofrimento que nos causaram. Queremos as nossas ilhas!”. 

Chagos quer aderir à FIFA

A comunidade chagossiana dos arredores de Londres acaba de lançar uma campanha de crowdfunding (financiamento contributivo) para a participação da seleccão nacional de Chagos no campeonato do mundo da ConIFA – organização de estados, regiões e minorias não afiliadas à FIFA. “Três mil libras – o valor que Cristiano Ronaldo ganha a cada duas horas – ajudar-nos-á a concretizar o sonho, até hoje impossível, de representar a nossa nação num campeonato do mundo”, lê-se na página da campanha “Cheer Chagos”.
Para mais informações sobre esta campanha, os interessados podem visitar a página na internet em: www.indiegogo.com/projects/cheer-chagos#/
transcrito http://www.wort.lu/pt/mundo/a-luta-de-um-povo-para-regressar-a-casa-chagos-para-so-perdido-56fb87221bea9dff8fa7552b
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