20 de nov. de 2016

Piedad Córdoba, senadora sem fronteiras Editor - Cassada, cina das mulheres de fibra. Motivos - “Por ser mulher, por ser negra, por ser de esquerda. Por tocar em assuntos que ninguém queria tocar. Por enfrentar posições dentro do próprio partido onde estava, por enfrentar o paramilitarismo de frente”,

Piedad Córdoba, senadora sem fronteiras

 
Quando a colombiana Piedad Córdoba estava a bordo de um helicóptero brasileiro vindo da selva para trazer seis reféns libertados, em fevereiro de 2009, não poderia imaginar que seu mandato de senadora seria cassado pela Justiça no ano seguinte. Junto dela estavam o ex-governador Alan Jara, o ex-deputado Sigifredo López, três policiais e um militar – todos sequestrados pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Essa foi uma das operações de libertação – realizada com apoio do governo do Brasil e da Cruz Vermelha – mediadas por Piedad e que antecederam o diálogo de paz entre governo e guerrilha, oficialmente iniciado em 2012. São negociações, ainda em andamento, que podem colocar ponto final em uma das mais antigas guerras civis do continente americano. “Para mim, a paz é crucial. É transversal a todas as atividades que eu tenha, não somente políticas, mas é sobre tudo aquilo que os direitos humanos significam, sobre pensar que a guerra pode acabar e que podemos construir uma sociedade totalmente diferente da que temos hoje”, diz ela, em entrevista à Rede LatinAmérica em São Paulo.
Foram diversas as missões de resgate em que Piedad negociou e recebeu reféns das mãos dos guerrilheiros, a ponto de ter sido oficialmente nomeada, em 2007, facilitadora do acordo humanitário entre governo colombiano e FARC. Sobre como conseguiu, enquanto parlamentar, libertações unilaterais e incondicionais, ela explica: “eu acreditei quando ninguém acreditava. Fui uma bandeira isolada no horizonte”. Piedco
Piedad, 60 anos, é advogada e foi eleita senadora pela primeira vez, em 1994, pelo Partido Liberal. Já foi presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Senado, tornou-se uma das mais eminentes oposicionistas ao governo e teve nas libertações e no diálogo de paz a principal meta de seu trabalho. Em 2010, o contratempo: a Procuradoria Geral da Colômbia a destituiu de seu cargo e suspendeu seus direitos políticos por 32 anos. O procurador-geral Alejandro Ordóñez alegou ter tomado a decisão porque ela teria “promovido e colaborado com o grupo à margem da lei, FARC”.
Ela nega ter tido relações escusas com grupos clandestinos. Acredita que sua cassação não teria acontecido se não tivesse se envolvido tanto no conflito interno. “Sei que sou uma perseguida política, mas não me sinto vítima por isso”. Coloca-se nesta posição, entre outras razões, pelo fato de Ordóñez justamente ser conhecido em seu país por demonstrar desaprovação aos diálogos com as FARC. Ele também fez oposição pública à descriminalização do aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo – bandeiras pelas quais Piedad brigou. A ex-senadora conta que, fora do Congresso e da posição de ativista de direitos humanos, hoje tem tempo para conversar mais com as pessoas – camponeses, indígenas – e conheceu mais de perto problemas de seu país. Chegou “ao país real”: “Não posso ser eleita para absolutamente nada. Mas ninguém pode me impedir que faça política. Tenho feito política como nunca, e de mais qualidade”.
Em defesa de Piedad, já esteve a ex-refém das FARC (sete anos e meio em cativeiro na selva) Ingrid Betancourt, ex-candidata à presidência da Colômbia com uma plataforma conservadora.
Piedad e Maradona em abril de 2015 no evento
Piedad e Maradona em abril de 2015 no evento “Partido por la paz”, promovido por ela
Piedad fala diversas vezes no custo alto do trabalho que realiza, e é difícil precisar o momento em que isso acontece de maneira mais intensa. Em 1999, esperava para fazer uma consulta em uma clínica de ortopedia de Medellín, quando homens encapuzados, vestidos de preto e armados invadiram a sala de espera perguntando quem era Piedad Córdoba. Foi quando ela se deu conta de que era um sequestro. Rendeu-se sem qualquer resistência. As pessoas ao seu lado gritavam e ela logo foi amarrada.
“Foi uma experiência muito difícil, muito dura, de limite entre vida e morte. Você não sabe se vão te matar no outro dia, se você vai sobreviver, pensa nos compromissos que você tem na vida e não sabe se vai conseguir mantê-los. É, principalmente, uma situação muito ameaçadora porque, em um sequestro, não te levam para uma sauna, para um spa. São as piores condições e te torturam psicologicamente para te enfraquecer”, recorda.
Passou 16 dias em cativeiro, certa de que seria assassinada. Liderando seu sequestro estava Carlos Castaño, um dos chefes paramilitares mais perigosos da Colômbia, morto em 2004. “Castaño falou comigo diversas vezes para tentar me obrigar a gravar um vídeo, a dizer que eu era de um movimento político. E eu me mantive contra, houve discussões muito fortes entre mim e ele. Teve uma vez em que eu quase bati na cara dele”. O paramilitar, de fato, reconheceu nunca ter tido uma refém tão difícil como ela. A única que após dias de sequestro, em vez de estar abaixo, estava acima dos sequestradores.
Seus sequestradores decidiram fazer um julgamento para decidir se seria libertada ou assassinada. Como se salvou? “Por um milagre. Quando me levavam para o julgamento, houve um sobrevoo do exército porque estavam procurando outro sequestrado. Havia muita gente do exército. Não me soltaram, mas tiveram que cancelar a operação e mudamos de lugar. Eles me entregaram a outras pessoas para que fôssemos para outro lugar”. Foi libertada graças a pressões das Nações Unidas e de grupos feministas.
E seus dois atentados? “Dois atentados? Foram quatro!”, retifica. Em um deles, “não sei como não me mataram. Estava chegando em casa, já dizendo ao motorista ‘amanhã você me busca…’ quando começaram os disparos. As balas atingiram o vidro, blindado, e voltaram. Uma loucura, arrancamos com o carro e eles nos perseguiram por uns cinco minutos, ou dez, não sei, vivi o inferno”. Fala com pesar de outro ataque que deixou um motorista com paralisia por dois anos. Em 18 de dezembro de 2004 – recorda-se da data porque seria seu aniversário de casamento – entrou em um supermercado e sofreu uma tentativa de sequestro. Com esse histórico, possui escolta pessoal e teria direito a seguranças oferecidos pelo governo colombiano, a que ela enxerga com desconfiança e prefere dispensar. “Tenho uma série de inimigos que acumulei, que não descansaram até me tirar – por ora – do cenário. Eleitoral, não político”.
Chávez, Kirchner e Piedad durante a Operação Emmanuel, que resgatou reféns em 2008 (Crédito: Presidência da Nação Argentina)
Chávez, Kirchner e Piedad durante a Operação Emmanuel, que resgatou reféns em 2008 (Crédito: Presidência da Nação Argentina)
Mesmo fora do Senado, ouve gritos de insulto nas ruas e recebe e-mails agressivos. Na internet, não é diferente. Em 6 de dezembro de 2015, data em que estava na Venezuela trabalhando como acompanhante internacional do processo eleitoral, sofreu hostilização nas redes sociais. Como resposta, surgiu um movimento no Twitter em apoio à ex-senadora com a hashtag #EstamosContigoPiedad. Se houve algumas dezenas de postagens em sua defesa, foi possível encontrar também manifestações de ódio. “Sabemos que você é facilitadora das fugas de narcoterroristas para Cuba e isto é crime!! Queremos te colocar numa masmorra para que pague por seus crimes”, escreveu um usuário identificado como tenente da infantaria.
O motivo? “Por ser mulher, por ser negra, por ser de esquerda. Por tocar em assuntos que ninguém queria tocar. Por enfrentar posições dentro do próprio partido onde estava, por enfrentar o paramilitarismo de frente”, argumenta.
Em alguns momentos, Piedad parece ser a encarnação de uma personagem imbatível, com uma crença obstinada pela paz na Colômbia. Nada parece um tormento em sua vida. “Se eu dissesse que não tenho medo seria muito estranho. Tenho medo, mas não é paralisante”. Ao que parece, ela tem muito cuidado, mas não a ponto de impedir que faça algo. “Vou onde tem gente muito amiga. Gosto muito que as pessoas estejam na minha casa. Gosto muito de dançar, gosto muito de salsa”.
Tem quatro filhos, neta, separou-se depois de vinte e sete anos de casada por “circunstâncias que tem a ver com a vida política. O país onde estou é muito perigoso”. E
exemplifica com um atentado. Quando estava em uma de suas viagens ao Brasil, atiraram uma bomba em sua casa na Colômbia. “Foi uma relação muito bonita, não se têm quatro filhos com qualquer pessoa de quem você não goste. Gosto de estar acompanhada”.
Direitos humanos são um universo que a fascina desde jovem, quando começou a militar em seu bairro em Medellín, segunda cidade mais populosa do país, com 2,4 milhões de habitantes, a 415 quilômetros de Bogotá. É filha de pai negro, sociólogo, de mãe branca, professora. Aprendeu a ler muito cedo, declamava poesias, um tempo em que a atriz e cantora argentina Berta Singerman foi para ela uma influência. Participou, com os pais, de algumas greves de professores. “Não pensava em marxismo, leninismo, nada disso. Eram fatos concretos”. Engajou-se na luta dos movimentos afrodescendentes nos anos 70, depois se ligou a grupos de mulheres. “Sou uma mulher afro e me reivindico muito a partir dessa perspectiva. Enquanto muitas mulheres alisam seus cabelos, eu faço minhas tranças. Gosto de me vestir como sou e eu não me escondo. Torno visível o que sou e me sinto muito orgulhosa de ser afrodescendente”, diz.
Seu pai tinha costume de ouvir rádio. Foi assim que um dia, em meados dos anos 80, escutou pronunciar um político, William Jaramillo, e gostou de seus argumentos de combate à corrupção. Foi até ele e se apresentou. Assim começou sua carreira política. Em 1988, foi eleita pela primeira vez vereadora de Medellín para um período de dois anos. No Senado, foi eleita em 1994 e vinha sendo reeleita desde então. Os mandatos para senadores têm duração de quatro anos na Colômbia.
Um episódio marcante de sua carreira foi em 2005. Três anos após as eleições de 2002 para o Senado, houve uma recontagem de votos, anulando cinco mil mesas de votação. Três senadores perderam seus mandatos, entre eles, Piedad. Naquela ocasião, ela era líder da oposição no Legislativo e presidenta da Comissão de Direitos Humanos. No ano seguinte, voltou novamente ao Senado depois de ser eleita.
Atualmente, lidera a organização “Colombianos e Colombianas pela Paz”. Pelo seu trabalho como mediadora do conflito armado, foi indicada ao Nobel da Paz em 2009, ano em que o escolhido foi o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Em 2012, foi eleita como uma das 10 intelectuais mais influentes da Ibero-América pelos leitores da revista Foreign Policy.
Piedad não possui perfil no Facebook, mas foi a primeira política da América Latina a ter uma conta no Twitter. Atenta sempre ao telefone celular, considera o aplicativo WhatsApp uma extensão de seu escritório.
Sobre sua saída do Senado, Piedad está buscando uma chance para se defender diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (Organização dos Estados Americanos). “Eu paguei um custo muito alto. Foi como tirar um peixe da água. Era minha vida, meu trabalho, minha luta”, justifica.
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