28 de nov. de 2016

REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas . Editor voce leu palavras de Rubem Braga de 1951, atual[issimas em 2016. Ler[a ainda, que em 1987 o Sr. Moreira Franco , inviabilizou as escolas sde tempo integral. Esse senor hoje, serve ao GOLPISTA TEMER-. Em 1995, Marcelo Alencar, como governador do Rio de Janeiro, inviabiliza a escola de tempo integral. Eu dou um pirulito a quem acertar qual o partido do mesmo... Interessante que entre outos fatos a mesmaa empresa jornalistica apoiou a derrubada de Jango Goulart, imstautando uma ferrenha ditadura no pa[is e agora foi a art[ifice do GOLPE A DILMA ROUSSEFF, apoiando CORRUPTOS E GOLPISTAS. Deixe esse seu jornal de lado e tamb[em revistas GOLPISTAS.

REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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Rio de Janeiro : Bloch Editores, 1986.REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1994. COSTA, Marly Abreu. Comparação das estimativas do custo/aluno em dois CIEPs e duas escolas convencionais no município do Rio de Janeiro. Educação e Sociedade nº 40, 1991, pp. 486-501. JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: ______. As representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. p.17-44. 16 JOVCHELOVITCH, S. Representações sociais e esfera pública. Petrópolis: Vozes, 2000. LEONARDOS, A. C. Avaliação do desempenho de alunos de CIEP e de escola convencional: comparando o desenvolvimento de pensamento crítico. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro: CAPES/UFRJ, 1991. ________. Análise de discurso das produções acadêmicas de alunos de CIEP (representativo da proposta original) e de escola convencional. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro : CAPES/UFRJ, 1992. MAURÍCIO, L. V. Escola pública de horário integral: demanda expressa pela representação social. Doutoramento em educação. 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1994. COSTA, Marly Abreu. Comparação das estimativas do custo/aluno em dois CIEPs e duas escolas convencionais no município do Rio de Janeiro. Educação e Sociedade nº 40, 1991, pp. 486-501. JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: ______. As representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. p.17-44. 16 JOVCHELOVITCH, S. Representações sociais e esfera pública. Petrópolis: Vozes, 2000. LEONARDOS, A. C. Avaliação do desempenho de alunos de CIEP e de escola convencional: comparando o desenvolvimento de pensamento crítico. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro: CAPES/UFRJ, 1991. ________. Análise de discurso das produções acadêmicas de alunos de CIEP (representativo da proposta original) e de escola convencional. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro : CAPES/UFRJ, 1992. MAURÍCIO, L. V. Escola pública de horário integral: demanda expressa pela representação social. Doutoramento em educação. 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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REPRESENTAÇÕES DO JORNAL O GLOBO SOBRE OS CIEPS MAURÍCIO, Lúcia Velloso – UNESA – luciavelloso@terra.com.br GT: Educação Fundamental / n.13 Agência Financiadora: Sem Financiamento Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz: - Chega! [...] Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. [...] Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. (Rubem Braga, “Os Jornais”, maio de 1951 in 200 Crônicas Escolhidas). Em Maio de 2006, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), experiência de educação em tempo integral no Rio de Janeiro, que completava 21 anos. A série exibia a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, há vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à presidência da república. Este trabalho, através da análise da forma e do conteúdo destas reportagens, teve por objetivo desnudar os mecanismos de construção de representações sobre a escola pública de horário integral, que invertem a responsabilidade pelo seu suposto fracasso, atribuindo-o ora aos alunos, apresentados como testemunho do desastre deste projeto de escola, da qual deixaram de se beneficiar e cuja implantação eventualmente poderia ter lhes reservado outro destino; ora atribuindo-o à própria escola, que deixou de oferecer horário integral por falta de condições objetivas para sua manutenção, isentando as autoridades de responsabilidade pela decisão política de inviabilizar o projeto e abandonar o patrimônio público. OS CIEPS Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), projetados por Oscar Niemeyer, foram construídos e implantados no Estado do Rio de Janeiro nas duas gestões do governador Leonel Brizola, por meio do Programa Especial de Educação (I PEE, de 1983 a 1986, e II PEE, de 1991 a 1994). O Programa tinha como objetivo 2 implantar educação pública em tempo integral para o ensino fundamental em 500 unidades escolares, que atenderia a 1/5 dos alunos do ensino fundamental do estado. Esse projeto baseou-se no diagnóstico feito por Darcy Ribeiro (1986) de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-la devia-se ao caráter de nossa sociedade, enferma de desigualdade e de descaso por sua população. Com essa preocupação, propôs uma escola de horário integral, como a oferecida nos países desenvolvidos, que pudesse evitar que a criança proveniente de famílias de baixa renda fosse condenada ao abandono das ruas ou à falta de assistência em lares em que são chamadas a assumir funções de adulto para que os pais possam trabalhar, tendo sua infância suprimida. Darcy Ribeiro inspirou-se na experiência de horário integral desenvolvida por Anísio Teixeira na Bahia. A concepção pedagógica dos CIEPs buscava assegurar a cada criança de 1ª a 4ª série um bom domínio da escrita, da leitura e do cálculo, instrumentos fundamentais sem os quais não se pode atuar eficazmente na sociedade letrada. De posse deles, a criança tanto poderia prosseguir seus estudos escolares como aprender por si mesma, livre, por esse aspecto, da condenação à exclusão social e habilitada ao exercício da cidadania. Outro princípio orientador era o respeito ao universo cultural do aluno no processo de introdução da criança no domínio do código culto. A escola devia servir de ponte entre a cultura do aluno, que sabe fazer muitas coisas para garantir sua sobrevivência, e o conhecimento formal exigido pela sociedade. Essa escola foi projetada para atender 600 crianças em turno único, além de 400 à noite, na educação juvenil. Durante o dia, os alunos deveriam ter, além das aulas curriculares, orientação no estudo dirigido, atividades esportivas e recreativas, acesso à leitura de livros e revistas na biblioteca, de vídeos na sala para esse fim e participação em eventos culturais. Como o projeto previa atendimento aos alunos provenientes de segmentos sociais de baixa renda, as escolas foram localizadas preferencialmente onde havia maior incidência de população carente. A assistência médico-odontológica, a alimentação e os hábitos de higiene eram desenvolvidos como condição para o atendimento em horário integral dos alunos deste segmento social. Em 1987, Moreira Franco, eleito governador no Rio de Janeiro, inviabilizou as escolas de horário integral com a descontinuidade da verba para alimentação e a redução do quantitativo de professores. No município do Rio de Janeiro, a mudança de partido do prefeito, que deixou o PDT, levou a uma reorientação da política educacional, fazendo com que o horário integral deixasse de ser política de governo. Em 3 1991, Leonel Brizola foi eleito para o segundo mandato de governador, pelo PDT. Uma Secretaria Extraordinária foi criada pelo governo do estado, com Darcy Ribeiro a frente, para que os CIEPs antigos fossem recuperados e novos fossem implantados, com todos os requisitos que uma escola como essa requer. Em 1994, a meta de 500 CIEPs foi atingida, ampliando significativamente a oferta de matrículas em horário integral. Em 1995, Marcelo Alencar assume o governo do estado e, mais uma vez, inviabiliza a continuidade do projeto pela redução de profissionais nas escolas. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS A representação social é entendida como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborado e partilhado, tendo um objetivo prático e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.22). Permite apreender os conceitos que vão sendo construídos por grupos sociais através de suas interações. As representações funcionam como verdadeiras teorias que orientam a intervenção de grupos na sociedade, por isso são designadas como saber do senso comum (ALVES-MAZZOTTI, 1994). A teoria da Representação Social abandona a distinção entre sujeito e objeto, conferindo novo significado ao que se chama realidade objetiva, porque toda realidade é reconstituída pelo indivíduo ou pelo grupo de acordo com seu sistema cognitivo e de valores. Esta realidade reapropriada é o que constitui, para o indivíduo ou grupo, a realidade mesma. O conceito de representação social adequa-se a este estudo por sua relação com o imaginário social e por levar à ação. As representações sociais são estudadas, de um lado, como algo constituído; de outro lado, estudam-se os seus processos formadores que foram chamados por Moscovici de objetivação e de ancoragem. A objetivação é a transformação de um conceito em uma imagem concreta através de um processo determinado por condicionantes culturais e por valores, gerando uma imagem coerente e de fácil expressão do objeto da representação social. A naturalização dessa imagem confere tal materialidade à representação social que ela adquire o estatuto de referente capaz de orientar percepções e julgamentos. Para modificar uma representação é necessário atingir seu núcleo figurativo, pois dele depende o significado da representação. A ancoragem trata do enraizamento social da representação, sua inserção no pensamento preexistente. Para Jodelet (2001), a intervenção do social no processo de 4 ancoragem se dá na significação e na utilidade que confere à representação social. A ancoragem desempenha a função de criar familiaridade com o que é estranho ou ameaçador. Assim podem prevalecer posições preestabelecidas, através de mecanismos de classificação, categorização e rotulação, típicos da ancoragem, revelando algo da teoria que se tem a respeito do objeto. Jovchelovitch (2000) em seu estudo sobre representações sociais na imprensa afirma a tendência dos meios de comunicação de massa de produzir significados e valores hegemônicos. Lembra que esta imposição se dá quando a mídia apóia ou exclui políticas e seus defensores. Esta capacidade de transformar e promover a circulação de bens simbólicos na sociedade contemporânea faz da mídia uma importante fonte para o estudo de representações sociais. Moscovici ao realizar seu estudo sobre a representação social da psicanálise, categorizou o sistema de comunicação em três vertentes: a difusão, a propagação e a propaganda. A primeira caracteriza-se por uma pluralidade de públicos, por isso as mensagens lidam com multiplicidade de referências; a propagação dirige-se a um público particular, com quadro de referências aceito pelo grupo; e a propaganda oferece uma visão de mundo polarizada, com clara função de persuasão. Ordaz e Vala(1998), em estudo sobre representações sociais na imprensa escrita, propõem a abordagem do processo de objetivação e ancoragem através da análise de recursos como a metáfora, as personagens exemplares e os protótipos. Nosso trabalho beneficiou-se desta compreensão: apreendeu a linguagem da propaganda que emergiu da visão polarizada de escola de horário integral, trabalhando a persuasão do leitor através das metáforas ou metonímias construídas com fotografias e manchetes; recurso importante foi a construção de personagens exemplares, erigida através das histórias de vida dos alunos que chegam a caracterizar protótipos. AS REPORTAGENS1 As reportagens foram publicadas entre os dias 28 de Maio e 4 de Junho de 2006, começando e finalizando em domingo, dia em que o jornal tem edição de 800 mil exemplares. Além das matérias publicadas na seção cidade, a série foi capa no primeiro dia, e ganhou editorial e cartas de leitor na 3ª. feira. Chama atenção, além da quantidade 1 As reportagens foram assinadas coletivamente a cada dia por Paulo Marqueiro, Ruben Berta e Selma Schmidt. A matéria com Cristóvão Buarque foi assinada por Mônica Tavares. O editorial não é assinado. 5 de páginas por dia e oito dias consecutivos, a disponibilidade de três jornalistas e um fotógrafo para fazerem esta cobertura. O trabalho para levantar a vida de cada um dos 21 alunos da primeira turma do Ciep Tancredo Neves e localizá-los só é menor que a capacidade de convencê-los a se encontrarem na antiga escola para conversarem e tirarem fotos. Além disso, houve investimento especial no projeto gráfico: a excelente diagramação, apontada como uma das melhores de 2006 (O GLOBO, 07/03/07, p. 10), reproduzia o formato e cor da janela dos CIEPs, envolvendo fotos e boxes de texto diariamente a fim de promover a relação de metonímia entre o imaginário fluminense desta escola e o conteúdo veiculado: o fracasso A manchete de capa – Cieps fazem 21 anos de expectativas e fracassos – com fonte de tragédia, tinha como sub-título: das 501 escolas construídas, só 113 (22,5%) mantêm horário integral. A expressiva foto, ocupando 40% da página, de um menino negro de 8 anos num pátio identificável de Ciep abandonado, exibia a legenda: “apesar de morar dentro de escola, ele não estuda”. O texto abaixo da foto indica os argumentos que serão o suporte da série: os cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam sendo apenas um sonho; dos 501 (cieps) existentes no estado, apenas 113 (22,5%) funcionam exclusivamente em horário integral (repetição do sub-título); dos 21 alunos da turma 101 do primeiro ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o ensino fundamental. A seção Rio introduz a diagramação concebida a partir das janelas dos Cieps e estampa enorme manchete: 21 anos depois, as lições dos CIEPS. Quais são as lições? Aqui, apenas uma: com quatro dados diferentes, em destaque repete-se o argumento de que apenas pouco mais de 1/5 destas escolas funciona em horário integral: geral, pela terceira vez, apenas 22,5% das 501 escolas funcionam em horário integral; município do Rio de Janeiro: 71 dos 101 cieps da prefeitura mantêm tempo integral; estado: 37 dos 331 cieps funcionam exclusivamente em turno integral; outros municípios: dos 69 cieps municipalizados apenas 5 mantêm os alunos o dia inteiro. Num box-janela, um único parágrafo nos indica a origem deste projeto: Anísio Teixeira na década de 50 e seu discípulo Darcy Ribeiro na década de 80. Há depoimentos favoráveis, mas não ficam em evidência, como os que reforçam a idéia de fracasso, nos sub-títulos, manchetes e legendas. Faz-se referência a indicadores educacionais, mostrando que a evolução que houve no Estado do Rio acompanhou a 6 tendência do Brasil. Esta melhoria coincide com o período de implantação dos Cieps, mas não se pode avaliar o impacto deles neste resultado, segundo o jornal, porque eles correspondem a pouco menos que 1/3 do total de escolas do estado do Rio. Para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), este dado não é tão insignificante. Levantamento concluído em 2001 (O Globo 04/03/01) apontava que o Estado do Rio era líder em número de alunos do ensino fundamental em turno superior a 5 horas diárias e que 19% dos alunos do ensino fundamental do estado estudavam em horário integral em escolas públicas ou privadas. Esta página mostra foto de criança dormindo embaixo da mesa da professora. Legenda irônica: sesta no CIEP. A página seguinte introduz, na manchete, o argumento que será desenvolvido ao longo da semana: o destino da turma 101. O sub-título repete o argumento de capa: “dos 21 alunos, só um conseguiu chegar à faculdade e metade não concluiu o básico”. Quase 40% da página são ocupados por foto atual, com ciep ao fundo, do grupo de 9 exalunos, além dos retratos 3X4 das 21 crianças que compunham a turma 101. O texto, bastante descontraído, vai alinhavando o reencontro daquele dia com as recordações. Uma das chamadas – dos 12 rapazes, metade se envolveu com o crime – traz como exemplo a história de Elso, como o próprio texto afirma, a mais trágica: foi morto em confronto com a Polícia. As histórias de vida foram selecionadas para compor personagens exemplares do fracasso; em primeiro lugar a do próprio Elso, seguida por Luciano, recém saído da penitenciária. A ordem dos relatos poderia ter sido a dos exalunos presentes ao encontro. Ou ordem alfabética. Por que esta ordem? Completa a página a coluna - Uma escola concebida para criar cidadãos - (negrito do jornal), uma ironia em relação ao destino da turma 101 que se quer propagandear: o fracasso. Ao longo da coluna, conta-se a história deste Ciep e a proposta original do projeto, com depoimento de Oscar Niemeyer. O texto de Leonel Brizola no prefácio do Livro dos Cieps, de Darcy Ribeiro, conclui a coluna: “dos cieps hão de sair aqueles homens e mulheres que irão fazer pelo povo brasileiro e pelo Brasil tudo aquilo que nós não conseguimos ou não tivemos coragem de fazer”. Nas páginas 22 e 23 tem início o relato de vida dos ex-alunos da turma 101. Dos quatro em foco, além do morto e do ex-presidiário, uma doméstica e um vendedor que mora na Espanha. No dia seguinte, uma foto de duas crianças em aula de informática ocupa 1/3 da página, com a legenda indicando um Ciep com mais de 90% de aprovação. Logo abaixo, para contraste, manchete com letras grandes em negrito - DESEMPENHO SEMELHANTE, CUSTO MAIOR – vem acompanhada de sub-título: “gasto com 7 alunos de Cieps representa até 4 vezes mais, embora rendimento seja parecido com o de estudantes da rede regular”. O jornalista avalia a relação entre foto e manchete: “Mas o exemplo está mais para exceção do que para regra.” Desempenho é temática complexa. Adota-se como indicador de qualidade, no caso do Estado, o Programa Nova Escola, que analisa alguns aspectos. No município, aponta-se o índice de aprovação, que deixa incorpora outros aspectos. De que desempenho está se falando aqui? Associa-se este desempenho mal definido a custo, que é tratado de forma tão displicente que, feitas as contas, o aluno da prefeitura custa 6 vezes mais ao ano que o do estado. Será que os valores apresentados incluem os mesmos itens ou os jornalistas não checaram a informação? Será que um se refere só a alimentação e o outro inclui fatores como salário, manutenção do prédio, livro didático etc? Por que tanto investimento para localizar alunos e tão pouco para consultar estudos como o de Leonardos (1991 e 1992) sobre comparação de desempenho de alunos de Ciep com o de escola convencional ou de Costa (1991) sobre comparação de custo de ciep com o de escola convencional? Fica evidente o caráter apelativo de manchetes como esta. E ela vai interferir na pesquisa online: o custo do aluno do ciep vale a pena? Exatamente ao lado da manchete custo/desempenho, há uma coluna que inicia o relato de vida de um ex-aluno por uma foto típica de delegacia. A legenda torna-se desnecessária: ex-aluno, hoje presidiário. No meio do relato, a informação: passou apenas dois anos nesta escola. Mas isto não está na legenda. A associação entre o custo maior e o produto – um presidiário – não é casual. Por que ele e não um dos outros quatro que estão na página seguinte? Lá, temos 4 grandes fotos de ex-alunos na sua vida atual e duas colunas com os relatos de suas vidas, iniciados pela foto 3X4 de cada um da época em que estudavam no Ciep. Destes quatro, apenas dois estudaram no Ciep até a 4ª. série e ambos completaram o ensino médio. Os outros estudaram apenas a 1ª. série no Ciep e só um terminou o ensino médio. Estes relatos não servem como ilustração de desperdício, não são trágicos, incluem até um sonho realizado, o professor de capoeira. A página termina com um box-janela com o título: Descontinuidade, um retrocesso. O texto, a partir de entrevista com Cristóvão Buarque, ex-ministro da educação e, naquele momento, candidato a presidente da república, defende a escola de horário integral, que, a seu ver, deveria levar de 10 a 15 anos para ser implantada. Na 3ª. Feira, a escola de horário integral ganha um editorial: Fracasso dos Cieps. Há um destaque no meio: “o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”. Os argumentos do editorial já são todos conhecidos: só 1/5 das escolas 8 está em horário integral; metade dos alunos homens da primeira turma tiveram envolvimento com crime e só uma aluna alcançou nível superior; e a relação custo maior/desempenho igual. A novidade do editorial está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto dos cieps: Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores... A influência do projeto dos Cieps nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: os milhares de pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o estado. O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. A educação brasileira precisa de projeto que aglutine recursos materiais e humanos, conhecimento acumulado sobre educação pública no Brasil, esperança da população e compromisso dos educadores para que ganhe credibilidade e torne-se viável. É esta compreensão que falta ao jornal: que os Cieps projetavam o futuro. Em vez de calcular quanto cada escola modesta perdeu em recursos para os Cieps, fato que dificilmente repercutiria em resultados, seria mais educativo vislumbrar como estaria a educação hoje no estado do Rio se o projeto não tivesse sido interrompido. Alguns educadores acalentaram esta possibilidade. Muitas dissertações e teses foram e têm sido produzidas, mostrando que, entre muitas tentativas de acerto, naturalmente com erros, a experiência de escola de horário integral no Rio de Janeiro indicou alguns caminhos. Leonardos (1991) verificou atitude mais crítica de alunos de Ciep do que de alunos de escola convencional. Coelho (1994) indicou o estudo dirigido como instrumento de democratização da permanência na escola. Perissé (1994) concluiu que a evasão de alunos dos Cieps se dava por descompromisso com a implantação do projeto. Cavalieri (1996) mostrou como esta escola pode atender ao acréscimo de funções que a sociedade atual atribui à instituição. Maurício (2001) constatou que apesar das críticas à escola de horário integral, predominava expectativa positiva de pais e alunos a respeito dela. Monteiro (2002) relatou os resultados promissores obtidos em curso de formação em serviço para professores de escola de horário integral. É este sentimento de confiança na possibilidade da escola de horário integral que transparece nas cartas de leitor ao lado do editorial. Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Cieps. Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes 9 profissionais revelam compromisso com o projeto e crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Cieps é a falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável, urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola que penitenciária e que a idéia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral, as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar: O ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação; corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família... mas dá trabalho. No mesmo dia, a manchete – Ciep que não é ciep – tem como subtítulo: “catorze prédios tiveram função desviada e dois foram abandonados, deixando de oferecer 9.600 vagas para crianças”. A página é ilustrada por uma pequena foto de um ciep utilizado por bombeiro e uma grande foto de ciep abandonado. Abaixo deste ciep semi-destruído, há um destaque afirmando que hoje um ciep custaria 6,9 milhões, cálculo feito pela aplicação do IPCA de 1993 para cá, quando um ciep custava 2 milhões, informação dada sem fonte. Assim justifica-se a legenda da foto: 6,9 milhões jogados fora. A página termina com duas histórias de vida, acompanhadas de foto atual e da época. Ambos estudaram apenas a 1ª. série no Ciep: um só completou a 4ª. série e a outra, apresentada como bem sucedida, está cursando letras em faculdade particular. A foto desta ex-aluna, tirada de baixo para cima com o prédio da Petrobrás ao fundo, monta o cenário de sucesso: é apenas uma recepcionista que não trabalha na Petrobrás, mas numa empresa contratada. A maneira como sua história é contada enfatiza o aspecto de que ela não é produto do Ciep e sim da escola particular. Fato que não é destacado no relato do outro aluno que também só permaneceu 1 ano no Ciep e apenas completou a 4ª. série. Chegar ao ensino superior é índice de qualidade para a escola de ensino fundamental? A 4ª. feira traz apenas uma página, talvez porque o tema do dia não renda muito: Cieps que são NOTA DEZ (destaque do jornal). O sub-título, reforçado pelas fotos, informa: “mesmo perto de lixões e favelas violentas, algumas escolas ainda mantêm 10 atividades extracurriculares e servem de exemplo. Uma delas tem até orquestra”. Uma foto mostra um menino de 10 anos tocando piano com colegas que tocam flauta; outra mostra alunos deste mesmo ciep, tocando violino. Aqui educação de qualidade é encarnada pela cultura erudita. Tem coerência com a representação do dia anterior: sucesso em educação é alcançar a faculdade. A escola com orquestra, cuja diretora tem como sonho montar uma ópera, teve duas fotos centrais na página. O ciep citado no texto como um dos que mais se aproxima da proposta original, o Recanto dos Colibris, em Nova Iguaçu, não foi contemplado com foto alguma. - Só faz Ciep quem veste a camisa. Se minha escola fosse uma particular do Rio de Janeiro, poderia cobrar uma mensalidade de dois mil reais. Estou aqui para fazer uma escola de qualidade, como queria Darcy. Se um dia não puder mais fazer isso, eu saio - afirma o diretor da escola desde 1994. Talvez este diretor tenha mencionado, casualmente, algo a se investigar a respeito da escola pública de horário integral: será que ela implantada dentro das condições previstas pelo projeto original não diminuiria o mercado da escola privada? Será que esta representação dos cieps não serve a interesses que se ocultam atrás da idéia de desperdício e ineficiência? Duas biografias contrastam com o ciep nota 10: ambos estudaram no Ciep até a 3ª. série e foram reprovados muitas vezes. Desistiram de estudar na 5ª. série. Fazem trabalhos eventuais que exigem pouca qualificação. Na 5ª. feira, a manchete enorme – HÁ VAGAS – vinha no centro da página abaixo de uma grande foto de sala de aula de ciep praticamente vazia – 4 alunos. O subtítulo: “Cieps de horário integral têm número de alunos abaixo de sua capacidade. Na rede estadual, poderiam receber mais 7.875 estudantes e na municipal, 5.255”. Ao lado o destaque: “14.325 é o número de alunos em 37 cieps da rede estadual, segundo o Censo Escolar de 2005, o que dá uma média de 387 alunos por prédio. Cada ciep foi projetado para 600 crianças”. O texto apresenta alguns fatores que explicam a ociosidade: difícil acesso ou localização inadequada: segundo os jornalistas, foi priorizada a visibilidade em detrimento da demanda. No final do texto, uma entrevistada, que participou da implantação dos cieps, lembrou uma explicação que não foi considerada pelo jornal “se os cieps funcionassem adequadamente, de acordo com o projeto original, não estariam 11 vazios”. Esta foi a conclusão a que chegou Perissé (1994) na sua pesquisa de mestrado sobre evasão dos cieps. Neste dia, três histórias de ex-alunos: uma passou apenas um ano no Ciep, e concluiu o ensino fundamental; os outros dois passaram por envolvimento com crime: um deles, que abandonou o ciep e os estudos na 3ª. série, está aposentado por esquisofrenia; o outro concluiu o ensino médio e trabalha em S. Paulo. Na 6ª. feira, a primeira manchete só é compreensível para quem conhece o ciep e seu arquiteto: 21 anos depois, o mestre revê SUA OBRA. O sub-título completa: “Niemeyer faz projeto propondo mudanças para reduzir o barulho nas salas, queixa recorrente de professores dos Cieps”. Na entrevista o arquiteto afirma “uma aula não precisa ser ministrada aos berros”. As salas de aula dos cieps eram separadas pela chamada meia-parede, que não isolava uma da outra até o teto, para permitir a circulação de ar. No destaque, a informação: meio metro deve ser o quanto as paredes das salas dos Cieps vão subir no projeto feito pelo escritório de Niemeyer. O texto cita uma série de adaptações feitas nos prédios, desde a instalação de um enorme aquário no corredor, foto principal da página, ou de uma guarita na entrada da escola até a desativação dos consultórios médico e dentário ou do projeto alunos residentes para a instalação de órgãos burocráticos. Todas as modificações têm justificativas dos diretores. O presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil alerta: o autor do projeto pode encontrar a solução mais adequada – pode-se resolver o ruído e não resolver o calor. Duas histórias de vida: um deles abandonou o Ciep e os estudos na 3ª. série; trabalha como caseiro. O segundo, entregador de água, levou 8 anos para concluir a 4ª. série no Ciep. Completou o ensino fundamental e trabalha em funções que demandam baixa qualificação. No sábado, os cieps ganharam duas páginas, além de foto de uma piscina abandonada, refletindo o prédio do ciep, que figurou na página dois. O título apenas: 21 anos depois. Não precisa nomear a escola, a imagem é suficiente: um brizolão, com toda a carga pejorativa que os professores atribuem a esta palavra. O texto abaixo da foto diz que a piscina serve somente para refletir o prédio, onde estudam apenas 160 alunos. A água é tratada com larvas de libélula para evitar o mosquito da dengue. O jornal informa que das 44 piscinas previstas, foram construídas 25, das quais 9 estão desativadas. Na página 16, há uma enorme foto de uma piscina imunda com o ginásio de esporte do ciep ao fundo. Acima, a manchete em duas cores, como as janelas dos cieps; 12 um programa que foi por ÁGUA ABAIXO. Repete-se no destaque o número de piscinas, previstas, construídas e desativadas. Outro destaque remete para o custo e a suspeita de superfaturamento. É impossível deixar de comentar que o texto não questiona o crime pelo abandono das piscinas nem menciona o prazer que poderia oferecer a estas crianças; discute seu custo, mas não o desperdício pelo seu abandono. Uma coluna - PROGRAMAS SACRIFICADOS - relata a situação atual do programa de animação cultural, alunos residentes e atendimento de saúde. Todos são interpretados como fracasso, mesmo que não se diga esta palavra, porque não funcionam hoje adequadamente. Nem uma palavra sobre as condições necessárias para seu funcionamento. Na página 17, pela primeira vez, estampa-se uma manchete atual: Secretaria anuncia reforma de 37 Cieps ATÉ O FIM DO ANO. O sub-título complementa: “objetivo é reduzir barulho nas salas de aula. Projeto de melhoria acústica, de autoria do escritório de Niemeyer, recebe sinal verde do governo do estado para ser executado”. Aqui repetem-se as medidas anunciadas no dia anterior, com a conotação de soluções já tomadas: elevação de meio metro das paredes, instalação de novo piso com manta acrílica e de placas de fibra de vidro no teto para proteção acústica. Ao lado da manchete, uma caixa de texto com a chamada em negrito: PROTESTO. Pais e associação de moradores em Barra Mansa fizeram protesto, aproveitando a publicação das reportagens do Globo, para reivindicarem a construção de muro no lugar da cerca do Ciep, por motivos de segurança. Todos os cieps foram projetados para serem cercados por tela e não para terem muro. Esta é uma concepção de segurança: a visibilidade para o exterior da escola protege seu interior. Claro que se a escola está numa linha de tiro, a cerca não vai protegê-la. Nem o muro. A solução é resolver a causa dos tiros. Finalmente a história de vida de três ex-alunos: uma estudou apenas a 1ª. série no Ciep e não concluiu a 4ª. série; dos dois que estudaram 3 anos, uma terminou o ensino fundamental e é caixa de supermercado e o outro terminou a 4ª. série e envolveuse com crime. No domingo final, foram dedicadas duas páginas da seção Rio. A manchete - Ciep: um jovem à espera de um FUTURO – tem o sub-título: “Estado anuncia ampliação do número de escolas de horário integral e ministro defende discussão sobre financiamento”. Os destaques da página, ao lado da foto de um menino jogando bola no Ciep, revelam a contradição que é reservada a este futuro: “o Estado quer passar de 37 13 para 113 o número de Cieps em horário integral”; “93% dos cieps municipalizados acabaram com o turno único”. O texto, que antevê um futuro nada promissor, mostra que a intenção do Estado é inócua porque ele deve municipalizar, nos próximos 9 anos, todas as suas unidades que atendem de 1ª. a 4ª. série e é neste segmento que se concentram os cieps que ainda estão em horário integral. Acrescenta que a municipalização não tem incorporado a proposta de escola de horário integral, pois dos 69 municipalizados apenas 5 mantiveram o turno único. O texto toca em duas situações impeditivas para implantação de escola de horário integral: o financiamento, que vai depender dos recursos do FUNDEB, que na época ainda não estava aprovado; e os professores de 40 horas, indispensáveis para a escola de horário integral, que fizeram concurso específico, têm situação funcional complicada, porque não foram contemplados com plano de carreira. O prefeito do Rio de Janeiro diz que pretende manter a escola de horário integral restrita aos prédios de ciep. As outras escolas serão beneficiadas por articulação com outras instituições como vilas olímpicas, lonas culturais, teatros e museus. O texto mostra projetos de deputados e vereadores que são atribuídos à repercussão da série de reportagens sobre os 21 anos dos Cieps. A página 21 fecha a série com a seguinte manchete: A história a ser escrita pela nova turma 101; o sub-título faz relação entre o passado e o presente: “como os primeiros estudantes de 21 anos atrás, alunos de hoje têm o mesmo sonho – uma profissão – e a mesma realidade: a pobreza”. Logo abaixo, uma foto grande da atual turma 101, na frente da fachada do ciep, com suas janelas inconfundíveis. O texto desta página vai relatando algumas histórias dos atuais alunos entre as rotinas do seu cotidiano escolar. O depoimento da professora enfatiza a situação de pobreza dos seus alunos e o da diretora, que trabalha no Ciep desde sua inauguração, reforça a semelhança entre a atual e a turma 101 de 21 anos atrás: “O que mudou é que hoje todas as mães trabalham, sem exceção. Uma característica comum é o fato de que muitos não têm pai. Por isso até evitamos fazer festa do Dia dos Pais”. Estão colocados os dados para o fracasso. CONSIDERAÇÕES Seria muito bom se pudéssemos concluir que o objetivo desta série de reportagens era levar os governantes a se preocupar com esta escola. As autoridades do Estado que se manifestaram no penúltimo dia apresentaram intenções frágeis: vamos 14 passar de 37 para 113 o número de escolas em horário integral. Os jornalistas não perguntaram por que não passaram ainda? O que vale esta intenção no último ano de governo? Como solucionar os problemas de recursos e de professores? Não houve intenção de discutir soluções nem por parte dos governantes nem por parte dos jornalistas. Talvez a intenção da série fosse provocar a população a se indignar contra o desperdício de recursos públicos e contra o descaso com a educação popular. Se isso aconteceu, os jornalistas só noticiaram o protesto de pais contra uma cerca e a favor de um muro. O contraponto às reportagens apareceu nas cartas de leitor. Ali vemos profissionais que conhecem o projeto defendendo-o com argumentos de quem teve que produzir soluções para a sobrevivência desta escola, apesar do descompromisso dos governantes; e outras pessoas lamentando que o sonho poderia ter deixado de ser sonho se houvesse vontade política. Os argumentos utilizados pelos jornalistas reforçam o estigma de escola de pobre. De 17 crianças, só 4 permaneceram no ciep até a 4ª. série. Destas 4, três terminaram o ensino médio e uma o ensino fundamental. Das 7 que cursaram apenas a 1ª. série, só duas terminaram o ensino médio. Os resultados são diferentes e favorecem o ciep. Mas os jornalistas não distinguiram quem ficou 1 ano – e portanto não é produto desta escola – e quem ficou 4 anos. Mas por que tantas crianças saíram: 7 após 1 ano e 6 após 3 anos? Pode ter sido por circunstâncias particulares ou porque havia alunos agressivos. Mas não será um número alto demais para concentrar tantas particularidades e tanta agressividade que está espalhada em todas as escolas? Mas também pode ser, como indicou a tese de Perissé, que tenha havido um desencanto com esta escola por descomprimento do projeto original. Em nenhum momento foi dito que após 1 ano e pouco da inauguração deste Ciep, a prefeitura do Rio de Janeiro deixou de priorizar esta proposta de educação, porque o prefeito mudou de partido, saiu do PDT de Brizola, que desfraldava esta bandeira. Por que foram feitas estas reportagens? Porque estávamos no meio de uma campanha eleitoral que podia trazer de novo – outra vez? – a proposta de escola de horário integral? Pode ser, pois dois candidatos a governo do estado incluíram este projeto em suas plataformas de campanha. Mas pode ser que a série tenha sido projetada para vender jornais. Comprovar que a culpa do fracasso é do pobre sempre seduz a classe média e é uma boa receita de sucesso. Ainda mais quando as reportagens omitem dados e manipulam imagens para reforçar o consenso fácil que herdamos da escravidão: 15 para que gastar recursos com a educação popular? Os pobres não conseguem bons resultados na escola mesmo quando se oferece a eles uma escola de luxo; veja-se o exemplo dos cieps: dos 21 alunos da primeira turma, só um passou para a faculdade. As reportagens quiseram mostrar que o ciep é caro, que o projeto arquitetônico é mal resolvido, que foram desperdiçados recursos e, pior que tudo, que esta escola não garante bom desempenho. Para isso foram criadas personagens exemplares através de histórias de vida de alunos da primeira turma com intenção de comprovar seu fracasso, utilizando como critério de qualidade chegar ao ensino superior. O que se mostrou, ao contrário do que o jornal pretendia, foi que a proporção de alunos que completou o ensino médio é maior entre aqueles que permaneceram no ciep até completar a 4ª. série. Questiona-se assim o argumento central do editorial: de que os recursos teriam sido melhor aplicados em escolas convencionais. A escola de horário integral, por enquanto, tem seu argumento mais forte na potencialidade de futuro que ela oferece. Não há dados empíricos suficientes para provar esta possibilidade, apesar dos cieps terem reunido alguns indícios promissores. Mas há dados empíricos suficientes para comprovar a ineficiência de escola pública que tivemos até hoje. É obrigatório que se invista em soluções e entre elas está o tempo integral para o ensino fundamental. REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Representações sociais: aspectos teóricos e aplicações à educação. Em Aberto, Brasília, v. 14, nº 61, 1994, pp.60-78. CAVALIERI, A. M. A escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. Doutoramento em educação. Faculdade de Educação, UFRJ, 1996. COELHO, Ligia Martha C. Costa. Estudo Dirigido: da compensação à emancipação? 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