10 de mar. de 2017

Ódio e resignação: Considerações de um estrangeiro sobre a sociedade brasileira


10/03/2017 09:08 - Copyleft

Ódio e resignação: Considerações de um estrangeiro sobre a sociedade brasileira

Alguns me dirão que há resistência e que as redes sociais fervilham de denúncias sobre a imoralidade dos ricos. Mas temo que se trate de uma armadilha.


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Por Michel Plon*
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Para começar, uma lembrança anedótica. Ocorreu durante minha primeira estada no Brasil, no Rio, há mais de quinze anos. Caminhando com Leneide, minha então futura mulher, parei todo animado ao avistar um pequeno grupo, de vinte pessoas no máximo. Virei para minha companheira e disse, entusiasmado: "uma manifestação!". Ela riu da minha ingenuidade: uma manifestação no Rio? “Michel, você está sonhando, não estamos em Paris”. Decepcionado, me resignei, mas acredito que vem daquele dia minha irritação, incompreensão e até mesmo raiva diante da passividade, da resignação e do fatalismo do povo brasileiro, que tolera, suporta e aceita como inevitável o fato de ser tratado, pelas pretensas autoridades políticas e pela grande mídia – jornais e TV – como um rebanho obediente e submisso.

Permitam-me citar estas linhas, talvez um pouco longas, de Louis Ferdinand Céline, extraídas da joia da literatura francesa que é seu romance Viagem ao fim da noite: "...a repressão aos pequenos roubos se exerce, observem vocês, em todos os climas, com extremo rigor, como meio de defesa social, não apenas, mas ainda, e sobretudo, como uma recomendação severa para que todos os infelizes se mantenham em seu lugar e em sua casta, passivos, alegremente resignados a morrer, ao longo dos séculos e indefinidamente, de pobreza e de fome”. A resignação, "esta qualidade básica que torna os pobres do exército ou de fora dele tão fáceis de matar quanto de manter vivos. Nunca, ou quase nunca, os pequenos perguntam o porquê de tudo o que suportam”. Para "fazer o animal vertical empregar seus melhores esforços no trabalho", basta que os Mestres “chamem-no de Senhor Escravo, deixem-no votar de vez em quando, paguem-lhe o jornal e, sobretudo, que o levem à guerra para fazê-lo esquecer suas paixões".

É verdade que a sociedade brasileira, ainda fortemente marcada pela escravidão, é radicalmente dividida, talvez mais do que qualquer outra, em duas classes. A dos ricos, em que incluímos a pequena burguesia que acredita possuir e imita os poderosos ao mesmo tempo em que os serve, e a dos desvalidos, privados de toda ou quase toda proteção social, explorados e de quem os ricos tomam, sempre que possível – como é hoje o caso – os bens, mesmo que deles aproveitassem apenas indiretamente, ou seja, o setor nacionalizado da produção e os serviços sociais (saúde, educação) que são, hoje, objeto de nova onda de privatização.

Certamente, tal divisão, embora (muitas vezes) menos acentuada, existe também na Europa, mas aqui ainda há freios que impõem limites ao apetite dos ricos, do capital muitas vezes estrangeiro, que sempre querem mais e ficam aterrorizados, mesmo inconscientemente, diante da ideia de que os pobres possam possuir uma parcela dos bens e do poder. Certamente reconhecemos aqui os ingredientes básicos do que Marx chamou de luta de classes, mas a luta de classes no Brasil me parece caracterizada e sustentada por um ódio sem limites aos pobres e à miséria. É preciso não ver os pobres, não mostrar a miséria, calá-los e até fazê-los desaparecer, com a preciosa ajuda da polícia e dos criminosos.

Diante disso, resignação e passividade mantidas à base de desinformação e ignorância.

Louis Ferdinand Céline, de novo: "A miséria persegue implacavelmente o altruísmo e as mais gentis iniciativas %u20B%u20Bsão impiedosamente punidas". É claro – e estes merecem nossas homenagens – que houve, durante a ditadura, resistentes, combatentes, uma luta armada feita por democratas e revolucionários de diversas origens, marxistas ou religiosos, às vezes ambos, mas não há registro de terem sido apoiados pelo povo, em "manifestações" como as que eu queria ver quinze anos atrás.

Os pobres brasileiros – agricultores sem-terra, índios, operários, desempregados – não são apenas rejeitados que causam repulsa aos ricos quando estes não conseguem ignorá-los. Muitas vezes, eles próprios tendem a internalizar sua condição de vida, a considerá-la não apenas normal, mas inevitável, pela qual se sentem, inconscientemente, responsáveis, além de culpados por sua miséria e sua vida sem horizonte.

Há pobres, evidentemente, na Europa, seja na França, na Inglaterra e em outros países do velho continente, mas há também uma tradição que remonta ao Iluminismo, que abriu caminho para a Revolução de 1789, independentemente do que tenham sido seus desdobramentos e seus avatares. Foram intelectuais, filósofos e escritores como Diderot, Voltaire e muitos outros que lançaram as bases para o que foi um verdadeiro terremoto: o reconhecimento dos direitos humanos, a introdução dos conceitos, e não apenas das palavras, de liberdade, igualdade e fraternidade.

O slogan de Maio de 68, "continuemos o combate" (ou a luta continua) ainda está vivo. Por que não se torna, no Brasil, a palavra de ordem dos intelectuais mais experientes, que sabem que a grande mídia brasileira não faz senão repetir mentiras anestésicas? Esclarecido pelos que pensam, em vez de adormecidos por aqueles que mentem, o povo deveria ser permanentemente chamado a resistir e estimulado a acreditar em seu poder.

Alguns me dirão que há resistência e que as chamadas redes sociais fervilham de denúncias e informações sobre a imoralidade dos ricos. Mas temo que se trate de uma armadilha: a informação é repetida à exaustão, e se caracteriza por pregar para convertidos, num processo narcísico de autocongratulação, em que, munido de um smartphone – e os mais pobres estão longe de ter acesso a estes aparelhos – através do "Facebook" e outras redes, cada um no seu canto pode se revoltar em seu pequeno círculo, sem que isso se transforme em qualquer movimento de massa, manifestações, greves e outros atos de mobilização em grande escala.

Como o Marquês de Sade, que conclamava os Republicanos a não baixar os braços, eu diria, de bom grado, aos intelectuais brasileiros: "Amigos e companheiros, façam um pouco mais de esforço".





*Psicanalista em Paris

Leituras:
Viagem ao fim da noite, Louis-Ferdinand Céline
Discurso da servidão voluntária, Étienne de La Boétie
Coriolano, William Shakespeare
Tradução de Clarisse Meireles  
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/odio-e-resignacao-Consideracoes-de-um-estrangeiro-sobre-a-sociedade-brasileira/4/37838
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