14 de abr. de 2017

A Política Agrária no Brasil. -Editor - LEI DAS TERRAS 1850 E O BRUTAL AUMENTO DO LATIFUNDIARISMO. A POSSE NA MÃO GRANDE. DEMOCRACIA RURAL COM REFORMA AGRÁRIA. NÃO A ESCRAVIDÃO NO CAMPO.

A Política Agrária no Brasil

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Não é exagero afirmar que a política agrária, isto é, o sistema oficial de atribuição de direitos reais sobre terras agrícolas, foi o principal fator de organização da sociedade brasileira, até meados do século passado. Em razão dele, com efeito, desenvolveu-se quase toda a nossa vida política e econômica, e moldaram-se as classes sociais.

Para que se compreendam, portanto, a razão de ser e os limites de efetividade das normas sobre a matéria, atualmente expressas na Constituição Federal de 1988, é indispensável conhecer, pelo menos em suas grandes linhas, essa história de mais de quatro séculos.

I - A Evolução Histórica do Direito Agrário no Brasil


Há três grandes fases a ressaltar: o tempo das sesmarias, que se inicia já no primeiro século da colonização e se estende até a Independência, o período imperial e a era republicana.

A - O sistema sesmarial


O instituto das sesmarias foi criado em Portugal por uma lei de D. Fernando, datada de 1375. Seu objetivo era remediar a série crise de abastecimento, que afligia então o reino. O monarca determinou, para tanto, o cultivo obrigatório de todas “as herdades que som pera dar pam”. Em conseqüência, se o proprietário não pudesse ou não quisesse cultivar diretamente o solo, deveria dá-lo em arrendamento a alguém que assumisse essa tarefa, sob pena de confisco, devolvendo-se a terra ao soberano. Esta, aliás, a origem da expressão “terras devolutas”.

Posteriormente, com a partida de Portugal de uma larga parcela da população masculina, empenhada nas aventuras d’além-mar, as próprias cidades despovoaram-se, levando a Coroa a estender o sistema sesmarial também aos imóveis urbanos.

É nesse contexto que as Ordenações Filipinas (Livro Quarto, Título XLIII), do final do século XVI, definiram as sesmarias como “as dadas de terras, casais[1] ou pardieiros[2], que foram ou são de alguns Senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o não são”. Como se percebe, o rei, investido no domínio eminente de tais imóveis, decide impor o seu aproveitamento efetivo aos particulares, considerados meros titulares do domínio útil.

O instituto já fora aplicado com proveito na colonização das ilhas portuguesas do Atlântico, quando, com a descoberta do Brasil, decidiu-se transplantá-lo ao território da nova colônia. Ao instituir, em 1534, o sistema de capitanias hereditárias, D. João III determinou que cada donatário recebesse como de sua exclusiva propriedade uma faixa de dez léguas, contada a partir da linha litorânea, e distribuísse, a título de sesmarias, o restante do território sob seu comando.

Bem se vê, portanto, que a transplantação ao Brasil, sem adaptações, do mesmo sistema de aproveitamento do solo, imposto na metrópole um século e meio antes, não podia dar bons resultados.

Em primeiro lugar, porque o mal que se procurou remediar no reino no século XIV - a crise de abastecimento alimentar - não existia em terras brasileiras. A nossa principal carência não era de víveres, mas de população em densidade suficiente e disposta a cultivar um vastíssimo território.

Em segundo lugar, porque o empreendimento colonial português nestas terras sempre foi, predominantemente, de índole mercantil-exportadora. O principal cuidado não era de produzir alimentos para o consumo interno e atender às necessidades da população local, mas de oferecer mercadorias tropicais para os europeus: de início o pau-brasil; logo em seguida o açúcar (a commodity de mais alto valor no mercado internacional, já a partir do final do século XVI); no século XVIII, ouro e diamantes.

Em terceiro lugar, porque se revelou desde logo impossível fiscalizar aqui a efetiva exploração das sesmarias, não só pelas dificuldades óbvias de comunicação, mas ainda pela presença freqüente de indígenas hostis e pelo reduzidíssimo corpo de funcionários administrativos, incumbidos de exercer essa fiscalização.

A conseqüência inevitável foi a implantação desordenada do sistema latifundiário no território brasileiro: latifúndios de efetiva produção agrícola, fundada no trabalho escravo; latifúndios totalmente improdutivos, mantidos como reserva de valor para venda no futuro; e latifúndios de escasso aproveitamento, para criação extensiva de gado.

Sem dúvida, as autoridades metropolitanas, advertidas dos maus resultados do sistema aqui implantado, procuraram, a partir de fins do século XVII, limitar a área de cada sesmaria: cinco léguas quadradas pela carta régia de 27 de dezembro de 1695, em seguida reduzidas a três pela carta régia de 7 de dezembro de 1697; o que ainda representava uma grande superfície, equivalente a 12.000 hectares. Em 3 de março de 1702, outra carta régia veio condicionar a legitimidade de cada data de terra à efetiva demarcação de sua área. Mas os historiadores são unânimes em reconhecer que tais limitações só existiam no papel. Freqüentemente, os titulares do direito de exploração da terra avançavam muito além das lindas oficiais. Não eram raras as sesmarias de mais de 50 léguas, ou seja, 218.000 hectares. Não houve deste lado Atlântico, como se disse, fiscais em número suficiente para controlar a aplicação das normas editadas na metrópole. Por último, em todo o período colonial, jamais existiu um registro de direitos sobre o solo agrário, dotado de fé pública.

Daí a generalizada prática de ocupação sem título de terras, com o surgimento de numerosos e, por vezes, graves conflitos armados entre ricos titulares, que jamais haviam posto os pés em suas sesmarias, e rudes posseiros, que as cultivavam há anos. Como se vê, o choque de interesses, envolvendo donos improdutivos do solo e lavradores sem terra, não é recente entre nós: começou há séculos.

B - Durante o Império


Uma Resolução do Príncipe Regente, baixada em julho de 1822, suspendeu em todo o território nacional a concessão de sesmarias. Mas a sua substituição oficial por outro sistema agrário ainda demorou mais de dois decênios, devido à resistência dos potentados rurais. Temia-se um enfraquecimento do poder político e econômico dos grandes proprietários rurais, pois ele fundava-se inteiramente no trabalho escravo, o qual, por sua vez, dependia por completo do tráfico negreiro.

Ora, já a partir do início do século, a Inglaterra começou a pressionar as autoridades portuguesas, e depois de 1822 as brasileiras, para suprimirem o infame comércio. Uma primeira lei nesse sentido, datada de 1831, foi promulgada literalmente “para inglês ver”, não tendo tido a menor aplicação. Os traficantes souberam montar uma forte rede de corrupção, nos principais de portos de desembarque da carga humana. Só restou, então, aos britânicos o recurso à beligerância: o Bill Aberdeen, votado no Parlamento em 1845, autorizou a frota inglesa a apresar os navios tumbeiros onde quer que se encontrassem, até mesmo quando fundeados em portos brasileiros, conduzindo a tripulação à Inglaterra, onde ela era julgada pela Corte do Almirantado.

Tudo isso explica o fato de a Lei de Terras ter sido promulgada em 18 de setembro de 1850, quatorze dias apenas após a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, que aboliu - desta vez efetivamente - o tráfico de escravos africanos.

A estreita ligação entre as duas questões - a escravatura e o sistema agrário - foi desde a Independência percebida por um dos espíritos mais argutos, esclarecidos e corajosos de nossa vida política de todos os tempos: José Bonifácio de Andrada e Silva. Numa representação apresentada à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, em 1823, na qual propugnava a abolição da escravatura, a começar pela extinção do tráfico de africanos, o grande brasileiro propôs, entre outras medidas, que “todos os homens de côr forros, que não tiverem officio, ou modo certo de vida, receberão do Estado huma pequena sesmaria de terra para cultivarem, e receberão outro sim delle os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo”.[3]

Mas a verdade é que a Lei n° 601, de 1850, conhecida como Lei de Terras, ao contrário da Lei Eusébio de Queiroz, representou uma vitória dos grandes proprietários rurais.[4] Ela dispôs que ficariam doravante “proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra”, excetuando dessa regra “as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em uma zona de dez léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamente” (art. 1º). Definiu como terras devolutas “as que se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, municipal; as que se não acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei; as que não se acharem ocupadas por posses, que apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei” (art. 3º).

Determinou essa lei que “o Governo” (sem indicar se o Geral ou Provincial) ficava “autorizado a vender as terras devolutas em hasta pública, ou fora dela, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser exposta à venda” (art. 14). Dispôs, também, que fossem “reservadas terras devolutas para colonização, aldeamento de Indígenas nos distritos, onde existirem hordas selvagens” (art. 72).

Dispôs, ainda, a Lei nº 601 fosse criada uma Repartição Geral de Terras Públicas.

Contrariando o projeto original de 1842 do Conselho de Estado, a Lei de Terras atendeu à pressão dos barões rurais, ao ampliar consideravelmente a área cuja propriedade podia ser legitimada com base na simples posse, e deixou de instituir o imposto territorial rural, proposto pelo governo.

Na verdade, com esse diploma legal consolidou-se o latifúndio em mãos da classe mais rica. Quanto ao objetivo de impedir, doravante, a irregular apropriação privada de terras públicas, ele jamais foi logrado.

É de se lembrar que nos Estados Unidos, já na segunda metade do século XVIII, confiscaram-se grandes propriedades agrícolas, na Pensilvânia e no Maryland, repartidas em seguida entre centenas de pequenos proprietários. Em 1785, a Land Ordinance fez doação de milhões de hectares de terras às escolas públicas. A partir de 1820, qualquer pessoa podia adquirir terras públicas por um preço irrisório (1,25 dólares o acre, equivalente a 0,4 hectares), e após 1862, ou seja, em plena guerra civil, por usucapião.

Assim, enquanto no Brasil a Lei de Terras consolidou a propriedade agrícola em mãos dos ricos, à mesma época, nos Estados Unidos, logrou-se fazer com que as terras públicas do vasto oeste fossem distribuídas, em curto espaço de tempo, a pequenos lavradores. Venceu-se, por essa forma, a pressão dos sulistas, que propunham a venda em leilão ao maior ofertante, ou seja, o sistema finalmente adotado entre nós.

É verdade que tivemos também no século XIX a experiência de colonização baseada em pequenas propriedades agrícolas. A primeira delas em 1819 em Nova Friburgo, onde foram instalados 1.600 suíços francófonos de confissão católica. Em seguida, várias colônias de imigrantes alemães no caminho de São Paulo rumo ao Sul, a mais bem sucedida das quais foi a de São Leopoldo, perto de Porto Alegre, fundada em 1824. Em meados do século, outra colonização alemã de sucesso foi a chefiada pelo Dr. Hermann Otto Blumenau no vale do Itajaí-Açu.

Em todos esses assentamentos, recebiam os estrangeiros, de início gratuitamente e, partir de 1854, mediante o pagamento de uma quantia de módico valor, lotes de 70 a 75 hectares, em seguida reduzidos a 50 e mesmo 25 hectares. A exploração agrícola devia ser estritamente familiar, proibindo-se o uso de escravos.

Foi graças a essa experiência de distribuição de pequenas propriedades rurais que o sul do Brasil pôde desenvolver a policultura, bem como o artesanato e o comércio urbano, criando com isso uma importante classe média, entre os extremos do baronato agrícola e da população miserável de escravos e pedintes de todo gênero. Mas - reconheça-se - o êxito dessa espécie de reforma agrária ante litteram não dependeu tão-só do sistema de distribuição de terras, mas também da qualidade dos lavradores, que não desprezavam o trabalho manual e procuravam, desde o assentamento de suas famílias, abrir escolas primárias para a educação de seus filhos. Iguais experiências efetuadas à mesma época com famílias açorianas, no sul, não prosperaram: logo na geração seguinte a maior parte dos colonos transferiu-se para as cidades, arrendando suas terras, que passaram a ser cultivadas com base na mão-de-obra escrava.

C - O período republicano


Também a república entre nós, para empregarmos conhecida expressão de Sérgio Buarque de Holanda, “foi um lamentável mal-entendido”. Não apenas pelo fato, hoje incontestado, de o Marechal Deodoro, no ato rebelde de 15 de novembro, ter querido simplesmente a demissão do primeiro-ministro, o Visconde de Ouro Preto, e não a extinção da monarquia. Mal-entendido bem mais profundo estava no fato de que o novo regime político inaugurava, em nossa História, uma das fases de maior predominância dos interesses privados sobre o bem comum do povo; ou seja, o avesso do princípio de supremacia da res publica, no lídimo sentido romano da expressão.

O principal veículo para essa distorção política foi a idéia federativa. Desde o Manifesto do Partido Republicano, lançado em Itu (SP) em 1870, ficara claro que o termo federação era tomado, aqui, em sentido diametralmente oposto àquele empregado pelos constituintes de Filadélfia em 1787. Para os fundadores do nosso Partido Republicano, federação não queria dizer união de sociedades políticas anteriormente soberanas, mas descentralização de poderes num Estado até então unitário, como fora o Império.

Os grandes cafeicultores do sudeste percebiam, claramente, que o Estado unitário monárquico dos primeiros tempos já não garantia, no final do século, a continuidade da escravidão. As bancadas das províncias cafeeiras, onde passou a se concentrar a quase totalidade dos cativos a partir de 1870, permaneciam francamente minoritárias na Assembléia Geral, devendo-se levar em conta que a chamada “questão do estado servil” não era de natureza constitucional, mas puramente legislativa.[5] Impunha-se, pois, como condição de sobrevivência dos grandes domínios rurais da região sudeste, dar autonomia a cada província para decidir sobre a admissibilidade ou não de escravos. É por isso que em 1885, ao discursar naquela Assembléia Geral, o deputado republicano por São Paulo, Prudente de Morais, futuro Presidente da República, preferiu, em lugar de defender a mudança de regime político, propor a federalização do Estado monárquico, segundo o modelo do Império Alemão criado em 1871.

Em obediência a essa idéia de privatização do espaço público sob o manto da descentralização política, a Constituição de 1891 determinou, em seu art. 64, que passariam a pertencer aos Estados “as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção de território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”.

Coerentemente, atribuiu aos Estados a competência para decretar impostos sobre a exportação de mercadorias (a maior fonte de receita tributária da época), bem como sobre imóveis rurais e urbanos. Escusa dizer que nenhum Estado federado manifestou grande empenho em tributar a propriedade rural.

A mesma Constituição dispôs que continuariam em vigor, “enquanto não revogadas, as leis do antigo regime, no que explícita ou implicitamente não for contrário ao sistema de governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados” (art. 83). Com base nesse dispositivo, entendeu-se que a Lei de Terras de 1850 continuaria a vigorar, até que cada Estado decidisse, em lei própria, alterar o sistema agrário por ela regulado. Ora, todos os Estados, em suas respectivas leis de terras, declararam que o prazo de regularização das terras devolutas possuídas por particulares devia considerar-se estendido até 1889; e vários deles decidiram prorrogá-lo até muito mais tarde.

Por outro lado, a República Velha viu florescer com todo o vigor a prática do chamado coronelismo,[6] a qual representava, por assim dizer, uma descentralização da !política dos governadores”, do plano federal para o estadual. Doravante, os governadores de Estado firmavam um pacto tácito com os grandes potentados rurais, para deles obter apoio eleitoral aos candidatos do partido no poder, em troca da nomeação de juízes de direito e delegados de polícia, que gozassem da confiança dos coronéis. Cada um destes tinha, a seu serviço, uma tropa de pistoleiros, que atuava como autêntico exército particular: os famosos jagunços.

Em razão dessa prática política, generalizou-se rapidamente, em todo o território nacional, a apropriação de terras públicas por particulares.

É bem verdade que o governo provisório, já em 1890, esboçou algumas medidas de política rural: a criação do Registro Torrens, bem como a de burgos e bancos agrícolas. Mas nenhuma delas foi minimamente implementada.

Quanto aos índios, continuaram a ser expulsos das terras que tradicionalmente ocupavam, havendo casos de tribos inteiras dizimadas pelos bugreiros, como os caingangues em São Paulo e os xoclengues em Santa Catarina. Mas, pelo menos nesse setor, o governo federal elaborou e aplicou efetivamente uma política inovadora, com a criação em 1910 do Serviço de Proteção ao Índio e Localização do Trabalhador Nacional, sob a direção de Cândido Mariano Rondon.

Sobrevindo a Revolução de 1930, pela primeira vez depois de séculos a situação agrária começou efetivamente a mudar. Dois decretos do governo provisório, datados de 1931 e 1933, puseram fim à prática de regularização da propriedade territorial pela via administrativa, exigindo doravante a transcrição do título de domínio no Registro Público. Além disso, proibiram expressamente o usucapião de bens públicos.

A Constituição de 16 de julho de 1934 não foi nada explícita no tocante à titularidade das terras públicas. Limitou-se a dispor que entravam no domínio da União ou dos Estados os bens que a cada qual pertenciam, “nos termos das leis atualmente em vigor” (art. 20); quando essa questão, como vimos, fora regulada, não em lei, mas na própria Constituição de 1891. A dubiedade constitucional a esse respeito crescia de importância, quando se atentava para a regra constante do art. 130, segundo a qual “nenhuma concessão de terras de superfície superior a dez mil hectares poderá ser feita sem que, para cada caso, preceda autorização do Senado Federal”. Indagava-se: Tal norma era de aplicar-se também em relação a terras do domínio dos Estados, ou ela pressupunha que todas as terras devolutas passassem a pertencer à União?

No título consagrado à ordem econômica e social, a nova Constituição determinou que se buscasse “fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas” (art. 121, § 4º in fine). Incumbiu ainda à União promover, “em cooperação com os Estados, a organização de colônias agrícolas, para onde serão encaminhados os habitantes de zonas empobrecidas, que o desejarem, e os sem trabalho” (mesmo artigo, § 5º).

No tocante às terras habitadas por silvícolas, a Constituição de 1934 determinou que seria respeitada a sua posse, desde que eles “nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las” (art. 129).

Introduziu, além disso, em nosso ordenamento jurídico, o instituto do usucapião preferencial de “um trecho de terras até dez hectares”, em proveito daquele que, não sendo proprietário rural ou urbano, o tivesse ocupado “por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua morada” (art. 125). Não esclareceu, porém, se essa prescrição aquisitiva excepcional poderia ter por objeto terras públicas.

Além disso, seguindo o modelo do Homestead Act norte-americano do século XIX, determinou a Carta Constitucional de 1934 a redução em cinqüenta por cento dos “impostos que recaiam sobre imóvel rural, de área não superior a cinqüenta hectares e de valor até dez contos de réis, instituído em bem de família” (art. 126). Não se pode deixar de assinalar que a fixação de quantia pecuniária certa, sem previsão dos efeitos da inevitável inflação monetária, não contribuía em nada para facilitar a instituição desse bem de família.

Após o interregno do “Estado Novo”, nova Constituição foi dada ao país, em 18 de setembro de 1946.

Ela nada dispôs, diretamente, sobre a importante questão da titularidade das terras devolutas. Mas em seu art. 156, § 1º deu a entender que elas pertenciam aos Estados, tal como havia sido determinado na Constituição de 1891: “Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares”. No mais, limitou-se a reproduzir, com duas alterações, as normas inovadoras da Constituição de 1934 sobre o mundo rural.[7] Uma dessas alterações foi a admissão expressa de que as terras públicas seriam suscetíveis de alienação e não apenas de concessão de uso. A outra consistiu em ampliar, de dez para vinte e cinco hectares, a área rural objeto de usucapião excepcional.

O regime militar, instalado com o golpe de Estado de 1964, deu, pelo menos numa primeira fase, a impressão de que iria enfrentar a questão agrária, que perdurava desde o início da colonização portuguesa. Em 9 de novembro daquele mesmo ano, o Congresso aprovou a emenda constitucional nº 10, alterando a redação dos artigos 147 e 156 da Constituição de 1946, mantida formalmente em vigor.

Ao art. 147 foram acrescentados os seguintes parágrafos:

§ 1º Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária, segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento do Imposto Territorial Rural e como pagamento do preço de terras públicas.

§ 2º A lei disporá sobre o volume anual ou periódico das emissões, bem como sobre as características dos títulos, a taxa de juros, o prazo e as condições de resgate.

§ 3º A desapropriação de que trata o § 1º é da competência exclusiva da União e limitar-se-á às áreas incluídas nas zonas prioritárias, fixadas em decreto do Poder Executivo, só recaindo sobre propriedades rurais cuja forma de exploração contrarie o disposto neste artigo, conforme for definido em lei.

§ 4º A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de latifúndio, como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias necessárias e úteis, que serão sempre pagas em dinheiro.

§ 5º Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária serão aprovados por decreto do Poder Executivo, e sua execução será de competência de órgãos colegiados, constituídos por brasileiros de notável saber e idoneidade, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal.

§ 6º Nos casos de desapropriação, na forma do § 1º deste artigo, os proprietários ficarão isentos dos impostos federais, estaduais e municipais que incidam sobre a transferência da propriedade desapropriada.”

Quanto aos parágrafos do art. 156, a citada emenda constitucional alterou a sua redação para: 1) ampliar de vinte e cinco para até cem hectares a preferência reconhecida aos posseiros na aquisição de terras devolutas dos Estados; 2) reduzir de dez mil a três mil hectares a área máxima de alienação ou concessão de terras públicas, sem autorização do Senado; 3) ampliar a área objeto de usucapião excepcional de trecho de terra, de vinte e cinco para cem hectares.

Tais disposições foram reproduzidas no art. 157 da Constituição promulgada em 24 de janeiro de 1967. Mas o ato institucional nº 9, de 25 de abril de 1969, nelas introduziu uma ligeira mudança: a indenização em títulos da dívida pública, devida no caso de desapropriação de imóveis rurais, deixava de ser prévia.

Em 30 de novembro daquele mesmo ano de 1964, o governo militar fez com que o Congresso Nacional votasse a Lei nº 4.504, mais conhecida como Estatuto da Terra, que permanece em vigor até hoje, embora com várias abrogações.

Como se vê, embora o golpe de Estado de 1964 tenha sido perpetrado sob a justificativa de que as chamadas “reformas de base”, propostas pelo então Presidente João Goulart, eram de índole subversiva, os próceres militares não hesitaram em adotar desde logo, em nível de declaração constitucional, a mais importante delas: a reforma agrária.

Em 5 de outubro de 1988, encerrou-se oficialmente o regime militar, com a promulgação de nova Constituição.

II - A Política Agrária na Constituição de 1988


Em termos formais e abstratos, as disposições da atual Constituição sobre política agrária representam, indubitavelmente, um aperfeiçoamento em relação ao passado, no sentido de se buscar atingir um nível mais elevado de justiça social. Na realidade, contudo, esse avanço é mais declaratório do que efetivo. Os próprios redatores da Constituição traíram a sua mentalidade conservadora, ao colocarem os artigos sobre política agrícola e fundiária e sobre reforma agrária como capítulo do Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira, e não do Título VIII, Da Ordem Social. Ou seja, para os autores da Constituição em vigor, a questão fundiária diz respeito exclusivamente à vida econômica, nada tendo a ver com a desigualdade social.

Vejamos, sob três aspectos, o sistema constitucional sobre a matéria: a saber, o estatuto das terras públicas e da ocupação de imóveis rurais por estrangeiros, o regime jurídico das terras reservadas aos indígenas e a reforma agrária.

O estatuto das terras públicas e da ocupação de imóveis rurais por estrangeiros


A Constituição de 1988 indica, no art. 20, II, quais as terras devolutas que pertencem à União Federal, sem defini-las. Pelo disposto no art. 188, verifica-se que nem todas as terras públicas são consideradas devolutas. Segundo a doutrina mais autorizada, têm essa qualificação as terras públicas não aplicadas ao uso comum nem ao especial.[8] Logo, trata-se de bens dominicais, no sentido dado à expressão pelo art. 101 do Código Civil, isto é, bens que entram no patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito real de cada uma delas, podendo, portanto, ser alienados.

Nem por isso, contudo, podem as terras devolutas ser adquiridas por usucapião. Embora a Constituição preveja, em seu art. 191, a prescrição aquisitiva especial, tendo por objeto área de terras não superior a cinqüenta hectares, possuída como sua durante cinco anos por quem não seja proprietário rural nem urbano, e tornada produtiva pelo seu trabalho ou de sua família, o parágrafo único do mesmo artigo é peremptório: “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”.

A Constituição determina, em seu art. 188, que a “destinação das terras públicas e devolutas” será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.

Ao regulamentar esse dispositivo, a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, dispôs que “as terras rurais de domínio da União, dos Estados e dos Municípios” - aparentemente o legislador esqueceu-se da existência do Distrito Federal como ente federativo autônomo - “ficam destinadas, preferencialmente, à execução de planos de reforma agrária”. Acrescentou o parágrafo único desse artigo que, “excetuando-se as reservas indígenas e os parques, somente se admitirá a existência de imóveis rurais de propriedade pública, com objetivos diversos do previsto neste artigo, se o poder público os explorar direta ou indiretamente para pesquisa, experimentação, demonstração e fomento de atividades relativas ao desenvolvimento da agricultura, pecuária, preservação ecológica, áreas de segurança, treinamento militar, educação de todo tipo, readequação social e defesa nacional”.

O mesmo artigo 188 da Constituição, em seu § 1º, estabelece que “a alienação ou a concessão, a qualquer título, de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares a pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional”; mas excetua dessa regra geral “as alienações ou as concessões de terras públicas para fins de reforma agrária” (§ 2º).

Não se entende bem por que a Constituição referiu-se, nesse dispositivo, à aquisição ou concessão de terra pública “por interposta pessoa” Alude ela, porventura, à simulação como causa de invalidade do negócio jurídico (Código Civil, art. 167)? Ou seja, ainda que obtida a autorização do Congresso Nacional, a aquisição ou concessão de terra pública, por pessoa diversa da declarada no título aquisitivo, deve ser considerada inválida? Esta parece, com efeito, a única resposta adequada à questão.

Na verdade, até hoje não se conhece, ao certo, a situação real das terras públicas neste país. Ainda no final do primeiro semestre de 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA revelou que ignora por completo o estado em que se encontram 14% do território da Amazônia legal; o que equivale à soma dos territórios dos Estados de Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo.

Igual ignorância oficial existe, no que concerne às terras ocupadas por estrangeiros.

A Constituição determina, em seu art. 190, que “a lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”.

Não se pode admitir que continue em vigor, nessa matéria, a Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971. Ela regulou, tão somente, a aquisição de imóvel rural por estrangeiros, não o seu arrendamento. Demais disso, de acordo com a índole autoritária do regime político à época, as regras e autorizações oficiais para essas aquisições emanariam exclusivamente do chefe do Executivo, sem depender de decisão do Congresso Nacional.

Segundo dados oficiais, 55 milhões de hectares de terras estão registrados em nome de estrangeiros. Desse total, 55%, ou seja, 31 milhões localizam-se na Amazônia.

Mas tais cifras são, certamente, inferiores à realidade, pois não existe, nos cartórios de notas e de registro imobiliário do país, nenhum controle efetivo sobre a nacionalidade dos adquirentes de imóveis rurais.

O atual estado de omissão legislativa nessa matéria torna-se agora mais grave, com o aumento considerável da procura de terras brasileiras por estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas, a fim de atender à demanda crescente de alimentos e biocombustíveis no mundo. Segundo reportagem publicada no jornal de maior circulação no país, todos os dias estrangeiros adquirem, em média, 12 km² de terras em nosso território.[9]

As terras reservadas aos indígenas


Cuidando-se de terras públicas, é importante ressaltar o regime especial daquelas ocupadas por silvícolas.

Como foi visto, já a Lei n° 601, de 1850, previa a reserva de terras devolutas “para colonização, aldeamento de Indígenas nos distritos, onde existirem hordas selvagens”. Desde então, por conseguinte, entendeu-se que tais terras pertenciam ao Estado brasileiro e não podiam ser apropriadas por particulares.

A Constituição de 1988 deu ao assunto uma regulação minuciosa e completa.

Reconheceu expressamente aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231). Referindo-se a “direitos originários” dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, a Constituição deixou claro que não estava criando um novo direito.

Esclareceu o § 1º desse mesmo artigo que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Tais terras, declarou o § 2º, “destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Note-se bem: a Constituição reconhece aos índios o “usufruto exclusivo” de tais terras. O que significa, em bom português e melhor direito, que ninguém tem o direito de ocupá-las como posseiro. Por isso mesmo, elas são declaradas “inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º); vale dizer, não podem ser objeto de usucapião.

Para completar esse quadro de reserva agrária em benefício dos índios, dispôs a Constituição vigente, no § 6º do art. 213, que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.

A lei complementar referida nesse dispositivo constitucional até hoje não foi votada. Nem por isso, no entanto, pode-se entender que ele não é auto-aplicável.

Note-se, em primeiro lugar, que a Constituição emprega, mais de uma vez, a expressão “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, sem exigir sua prévia demarcação. Além disso, não se pode deixar de considerar que a linguagem usada no texto constitucional não deixa a menor dúvida de que se trata de direitos fundamentais dos indígenas; como tais, de força superior à de qualquer direito ordinário de propriedade ou uso.

Aliás, se tais terras pertencem desde sempre ao Poder Público, e têm uma destinação específica e imutável, nenhum particular pode exibir, sobre elas, um título legítimo de aquisição onerosa. Menos ainda reivindicá-las por usucapião. O único direito que assiste aos posseiros desalojados, provada a sua boa-fé, é a indenização pelas benfeitorias lá realizadas.

A reforma agrária


A bem dizer, a grande novidade da Constituição de 1988, ao regular a questão de terras, foi a de tornar a reforma agrária um dever fundamental do Estado.

Na teoria dos direitos humanos, sobretudo após a promulgação da Lei Fundamental alemã de 1949, estabelece-se uma distinção nítida entre direitos humanos e direitos fundamentais (Menschenrecte und Grundrechte). Fundamentais são os direitos humanos, assim reconhecidos pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados, quanto no plano internacional; isto é, os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis e nos tratados internacionais.

A Constituição brasileira de 1988 adotou essa classificação e a mesma terminologia. Todo o seu Título II tem por objeto “direitos e garantias fundamentais”. E o art. 5º, § 2º dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Pois bem, deveres fundamentais são a exata contrapartida de direitos fundamentais. Têm eles, portanto, o mesmo regime jurídico destes, notadamente a supremacia sobre os deveres ordinários, bem como a imediata aplicabilidade das normas constitucionais que os criam (Constituição Federal, art. 5º, § 1º).

Este último ponto, porém, suscita nessa matéria uma certa dificuldade de ordem prática. É que sujeitos dos deveres fundamentais são não apenas os particulares, mas também os órgãos do Poder Público. Ora, quando o dever fundamental do Estado corresponde a um direito social - isto é, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (art. 6º da Constituição); ou quando se trata de dar aplicação aos objetivos fundamentais da República, enunciados no art. 3º e desenvolvidos em matéria de ordem econômica e financeira no art. 170, os deveres fundamentais do Estado são cumpridos por meio de políticas públicas, isto é, ações coordenadas dos órgãos públicos.

Mas qual a sanção para a carência, ou a defeituosa realização de políticas públicas em matéria de direitos sociais? É aí que se percebe a fraqueza institucional do Estado moderno, sobretudo após a vaga de neoliberalismo capitalista, que avassalou o mundo todo e o Brasil em particular nos últimos decênios. Como obrigar o Poder Público a respeitar os direitos econômicos, sociais e culturais de caráter fundamental?

Antes de discutir esse ponto, porém, convém precisar em que consiste, exatamente, o dever fundamental do Estado brasileiro no tocante à reforma agrária e quais os direitos fundamentais a serem por ela atendidos.

Entendo que é, antes de mais nada, o direito ao trabalho, consagrado internacionalmente com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (art. XXIII), e reconhecido de modo expresso pela Constituição brasileira de 1988, ao qualificar o trabalho como direito social, no art. 6º, e ao declarar a valorização do trabalho como princípio fundamental da nossa organização política, nos artigos 1º, IV e 170.

Ora, a realização de um efetivo trabalho agrícola pressupõe obviamente, como condição indispensável, o uso e a posse da terra. A esse direito fundamental opõe-se o do simples proprietário, que não cultiva o solo rural, ou o faz de modo insuficiente e defeituoso. É este o primeiro problema clássico que se procura resolver com a reforma agrária: assegurar a supremacia do direito ao trabalho agrícola sobre o simples domínio do solo, sem cultivo adequado.

Pela Constituição de 1988, a política de reforma agrária é da competência exclusiva da União Federal (art. 188). Nenhum Estado ou Município pode criar o seu próprio plano nessa matéria. Mas isto não significa que Estados, Municípios e o Distrito Federal não possam colaborar com a União, no cumprimento do plano nacional agrário.

Em relação às terras objeto de propriedade privada, o principal instrumento de realização da reforma agrária é a desapropriação. Mas não é o único. A lei, dentro do espírito da Constituição, pode, por exemplo, exigir do proprietário agrícola algo de semelhante ao que se prevê, no art. 182, § 4º, a respeito da propriedade do solo urbano: o seu aproveitamento adequado dentro de um prazo improrrogável, sob pena de aumento progressivo do imposto territorial rural ou de arrendamento compulsório.

A desapropriação para fins de reforma agrária tem, como condicio iuris, o descumprimento, pelo proprietário, do dever fundamental de dar ao solo agrícola uma destinação produtiva. A Constituição precisou que a função social da propriedade agrária é cumprida, quando ela atende, simultaneamente, “segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei”, a quatro requisitos: “I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. A Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, veio regulamentar esse dispositivo constitucional.

No art. 185, II, todavia, por evidente pressão dos representantes ruralistas, a Constituição exclui da reforma agrária a “propriedade produtiva”. Essa norma exceptiva, destacada da disposição geral do art. 186, tem se prestado a toda sorte de indevidas resistências, pelos proprietários, à desapropriação por interesse social; como se qualquer modo ou grau de produção constituísse uma justificativa válida para impedir a aplicação do programa de reforma agrária.

Pior ainda. Em 2001, numa fase de aberto conflito entre o governo federal e o MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sobreveio a medida provisória n° 2.183-56, que deformou completamente a lei regulamentar de 1993. Ela excluiu da reforma agrária “o imóvel rural de domínio público ou particular, objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo”; bem como “quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse [sic] benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e, bem assim, quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações”.

Acrescentou a citada medida provisória que “a entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos”.

Escusa dizer que tais disposições são perdidamente inconstitucionais. Em primeiro lugar, pela óbvia razão de que a Constituição não pode ser regulamentada por medida provisória, mas tão-só por lei. Em segundo lugar, porque direitos e deveres fundamentais, tanto do Estado quanto de particulares, estão sempre acima de direitos e deveres ordinários. Especificamente, no mundo rural, o direito fundamental do agricultor ao trabalho não pode ser impedido, em sua realização, pelo direito de propriedade do solo agrícola, sobretudo quando o proprietário não cumpre o seu dever de dar ao imóvel a sua destinação social. Reitere-se que o dever fundamental do Estado de fazer a reforma agrária, bem como o do proprietário de terras de respeitar a função social do imóvel, não podem ser suspensos pelo fato da existência de conflitos sociais, com ou sem a prática de delitos.

Pelo disposto no art. 184, § 2° da Constituição, “o decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação”. Deve-se, pois, entender que o ato expropriatório não se completa sem o ajuizamento da competente ação. Essa exigência é, porém, lamentável. Uma reforma agrária autêntica implica a mudança na relação de poder econômico e social no campo, e deve portanto fazer-se de modo rápido e completo. Não faz sentido impor ao poder expropriante o ajuizamento prévio de uma demanda contra o expropriado, quando o certo seria, justamente, a inversão desse ônus: a desapropriação se aperfeiçoaria com o decreto governamental e a oferta da indenização ao expropriado. Competiria a este recusá-la, propondo a ação que entendesse cabível.

De qualquer modo, para que as normas constitucionais sobre reforma agrária sejam adequadamente compreendidas e aplicadas, é necessário frisar que a Constituição distingue três tipos de propriedade rural.

Há, em primeiro lugar, aquela considerada direito fundamental: a pequena ou média propriedade agrícola do que não possui outra. A Lei nº 8.629, de 1993, delimitou a área da primeira entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais, e a da segunda entre 4 (quatro) e 15 (quinze) módulos fiscais. Ambas são insuscetíveis de expropriação para fins de reforma agrária (Constituição Federal, art. 185, I); sendo que a pequena propriedade rural, quando trabalhada unicamente pela família do proprietário, não pode ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva (Constituição, art. 5º, XXVI).

Há, ainda, a propriedade ordinária, que não goza desses privilégios. O que não significa não possa haver, também aí, expropriação para fins de reforma agrária. Apenas, a desapropriação obedecerá ao regime normal, relativo a quaisquer outros bens.

Finalmente, há a propriedade rural cujo titular não dá ao imóvel a sua destinação social, na forma do disposto no art. 186 da Constituição. O regime jurídico deste último tipo de propriedade rural é bem diverso do dos outros.

Em primeiro lugar, porque a desapropriação desse imóvel não é uma simples faculdade da União, mas um dever constitucional. Em lógica conseqüência, a justa indenização (art. 184), no caso, não pode ser equivalente ao valor de mercado do imóvel, pois estamos diante de uma sanção pelo descumprimento de um dever fundamental do proprietário. É, por conseguinte, manifestamente injusto que este receba a mesma compensação econômica, atribuída ao expropriado que cumpriu o dever de atender à função social do imóvel. No entanto, a citada medida provisória nº 2.183-56, de 2001, ao dar nova redação ao art. 12 da Lei nº 8.629, de 1993, determinou, em clamorosa afronta à Constituição, que “considera-se justa a indenização que reflita o preço atual de mercado do imóvel em sua totalidade, aí incluídas as terras e acessões naturais, matas e florestas e as benfeitorias indenizáveis”.

Em segundo lugar, diante da existência de deveres fundamentais bem marcados pela Constituição - a saber, o do proprietário, no tocante à função social do domínio (artigos 5º, XXIII e 184), e o do Estado, relativo à reforma agrária - os juízes não estão autorizados a aplicar automaticamente as disposições do Código de Processo Civil, nas ações de manutenção e reintegração de posse. Assim, viola a Constituição o juiz que, estando advertido do notório descumprimento, pelo proprietário agrícola, do seu dever fundamental de dar ao imóvel a sua destinação social, defere a expedição de mandado liminar de manutenção ou reintegração, sem ouvir o réu (Cód. Proc. Civil, art. 928).

Em terceiro lugar, porque o proprietário que descumpriu o dever de dar ao imóvel a sua destinação social receberá uma indenização pecuniária apenas pelas benfeitorias úteis e necessárias. A expropriação do solo agrícola será indenizada em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis em prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão (Constituição, art. 184). A Lei nº 8.629, de 1993, deformada pela medida provisória nº 2.183-56, de 2001, regulamentou essas disposições constitucionais.

Qual o destino do imóvel rural desapropriado para fins de reforma agrária? É este o segundo problema clássico na matéria.

Dispõe a Constituição que “os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos” (art. 189). Tais títulos “serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei” (mesmo artigo, parágrafo único). A Lei nº 8.629, de 1993, fixou o prazo máximo de 3 (três) anos para a distribuição, por uma dessas duas formas, das terras expropriadas no quadro da reforma agrária (art. 16). Determinou, ainda, que dos instrumentos translativos de domínio ou concessão de uso conste, obrigatoriamente, cláusula resolutória para o caso de descumprimento de quaisquer obrigações assumidas pelo adquirente ou concessionário (art. 22).

Quanto ao direito real de uso, convém lembrar que ele foi regulado pelos artigos 1.412 e 1.413 do Código Civil.

O que não ficou claro, na regulamentação legal dos dispositivos constitucionais referentes à reforma agrária, é se a concessão de uso de terras agrícolas deve ou não ser um contrato oneroso. A Lei nº 8.629 só se refere ao “valor de alienação” das terras (veja-se o art. 18).

A translação a lavradores da propriedade ou do uso das terras expropriadas não esgota, porém, a segunda fase do processo de reforma agrária. É preciso completá-lo com o assentamento dos lavradores nas terras a eles destinadas.

A esse respeito, a Lei n° 8.629 determinou que “o assentamento de trabalhadores rurais deverá ser realizado em terras economicamente úteis, de preferência na região por eles habitada” (art. 17). Nada dispôs, todavia, sobre as medidas de amparo aos assentados, tais como crédito preferencial e auxílio técnico.

Como se percebe, muito embora o quadro constitucional e legal da reforma agrária seja nitidamente impositivo, tudo acaba dependendo, na prática, de uma oportuna e adequada iniciativa do poder executivo. Ora, quais os remédios jurídicos utilizáveis no caso de descumprimento desse dever fundamental?

No atual estado do nosso direito, cabe, antes de tudo, ao Ministério Público propor a ação civil pública contra o órgão federal omisso no cumprimento do dever fundamental de fazer a reforma agrária, pois que ela representa, como assinalado, a contrapartida do direito fundamental ao trabalho de um número considerável de pessoas (Constituição Federal, art. 129, III). A Constituição determina que “o orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício” (art. 184, § 4º). Mas não é raro que o governo federal, ao término do exercício financeiro, deixe de empenhar parte substancial da verba orçamentária prevista para essa finalidade.

Cabe, também, em tal hipótese, a propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental (Constituição Federal, art. 102, § 1º; Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999).

Incabíveis, no caso, tanto a ação de inconstitucionalidade por omissão, quanto o mandado de injunção, porque ambos pressupõem que o legislador ou o poder executivo deixaram de exercer o seu dever regulamentar, o que não ocorre na matéria ora discutida.

A realidade agrária do país, vinte anos depois de promulgada a Constituição


Ela se resume em duas palavras: desordem e injustiça.

Desordem generalizada, no que diz respeito à ocupação do solo rural.

Persiste o tradicional apossamento ilícito de terras públicas, sobretudo na Amazônia, com a agravante de que a União ignora o estado em que se encontram suas terras devolutas e os Estados incentivam o esbulho e a titulação irregular do solo, por parte de membros influentes das oligarquias locais.

Desordem, igualmente, no que diz respeito à ocupação de terras brasileiras por estrangeiros, a qual aumenta assustadoramente sem o menor controle ou conhecimento por parte das autoridades.

No tocante às terras reservadas aos indígenas, a velha mentalidade colonial de exploração extensiva e predatória do território, agora aguçada pela miragem de lucro fácil e imediato, no quadro da globalização capitalista, tem suscitado, no meio político, a defesa do agronegócio a qualquer custo, e feito avançar a idéia de que não se devem desperdiçar oportunidades de ganho para o país, com a manutenção de “parques antropológicos”. Surpreendentemente, em alguns setores militares passou-se também a sustentar a tese de que as terras ocupadas por indígenas em zonas de fronteira constituem um risco para a segurança nacional; o que a História desmente de modo absoluto.

Para rematar esse quadro sombrio, é forçoso reconhecer que até hoje não tivemos uma autêntica reforma agrária, para a eliminação das injustiças sociais, velhas e novas, que se instalam em quase todo o nosso vasto território. Embora a Constituição de 1988 contenha um sistema normativo adequado para a redução do grau de injustiça nas relações entre lavradores e proprietários capitalistas do solo rural, nos últimos vinte anos verificou-se, em todo o país, um alastramento sensível da violência no campo.

Para se ter uma idéia menos abstrato do que se acaba de dizer, segundo dados apurados pela Comissão Pastoral da Terra, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 2007 ocorreram homicídios ligados a conflitos agrários em 14 Estados da federação, seis a mais do que no ano anterior. Análogo espraiamento territorial registrou-se quanto à expulsão de famílias do campo: enquanto em 2006 tais incidentes ocorreram em 10 unidades da federação, em 2007 eles foram registrados em 14 Estados.

Da mesma forma, cresce também o número oficial de casos de escravização de trabalhadores na zona rural. Em 2006 foram 6.953 em 16 Estados, com 3.633 pessoas resgatadas. Em 2007, 8.653 trabalhadores em 18 Estados, com o resgate efetivo de 5.974. Entre 1995 e 2007, foram oficialmente encontrados, em todo o Brasil, 30.036 trabalhadores em condição análoga à de escravos.

Uma conclusão se impõe diante dessa triste realidade: nenhum país mantém inocentemente, durante séculos, o seu sistema agrário fundado no latifúndio e na escravidão.

Julho de 2008.

[1] Isto é, casas de campo ou granjearias.

[2] Casas velhas, ameaçando ruína, ou já arruinadas e desabitadas.

[3] Obras Científicas, Políticas e Sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva, coligidas e reproduzidas por Edgard de Cerqueira Falcão, vol. II, págs. 147/148. Já antes da Independência, José Bonifácio chegou a fazer algumas propostas de verdadeira reforma agrária. Por exemplo, “nas aldeias novas cada família deve ter a terra precisa para se sustentar e ter um excedente para vender os frutos, que conservará enquanto puder cultivá-la, e pela sua morte se os herdeiros a não puderem aproveitar entrará no monte das da aldeia” (JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA, Projetos para o Brasil, coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro, Folha de S.Paulo, pág. 70).

[4] Cf. JOSÉ MURILO DE CARVALHO, I - A Construção da Ordem, II - Teatro de Sombras, Editora UFRJ/Relume Dumará, primeira reimpressão da segunda edição, págs. 303 e ss.

[5] Obviamente, a Constituição de 1824 não fazia referência alguma à escravidão. E o seu art. 178 dispunha: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Políticos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias”.

[6] A Guarda Nacional, criada pela Lei de 18 de agosto de 1831, atuava como auxiliar do Exército e exercia funções da polícia de segurança no território provincial. Todos os cidadãos brasileiros, maiores de dezoito anos, eram obrigatoriamente nela inscritos. A patente de coronel era a mais elevada da Guarda Nacional. A corporação tornou-se, no final do Império, meramente decorativa ou honorífica.

[7] “Art. 156. A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados.

§ 1º Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares.

§ 2º Sem prévia autorização do Senado Federal, não se fará qualquer alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dez mil hectares.

§ 3º Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença declaratória devidamente transcrita.”

[8] Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 22ª edição, Malheiros, pág. 882.

[9] Folha de S.Paulo, 7 de julho de 2008, pág. A10.
http://www.escoladegoverno.org.br/artigos/111-politica-agraria-brasil
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