5 de mai. de 2017

José Maurício Domingues: Periferias e política – A respeito da pesquisa da Fundação Perseu Abramo


José Maurício Domingues: Periferias e política – A respeito da pesquisa da Fundação Perseu Abramo


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Recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre a periferia de São Paulo – na qual o PT perdeu seus eleitores tradicionais – surpreendeu vários analistas, ainda que mais e outros menos. Surpresa em si surpreendente. Os próprios autores da pesquisa – um tanto sobressaltados –, Mario Pochmann, Mangabeira Unger, Gabriel Feltran – estes três menos surpresos – foram os mais destacados a pronunciar-se. O individualismo dos jovens e a admiração por figuras – incluindo o próprio ex-presidente Lula – que deram certo por si mesmas; uma certa implicância com o Estado, supostamente identificado como inimigo, e desconfiança em relação aos políticos; elogio ao privado, em detrimento do público; confiança em si e no mercado, assim como, mais especificamente, simpatia pelo empreendedorismo; mas, por outro lado, a permanente demanda por serviços públicos; além da presença das igrejas evangélicas: eis os elementos que se manifestam nos resultados. Assim, a esquerda teria perdido espaço, e agora precisaria repensar seu discurso, cuja polarização entre classes ou ricos e pobres não parece colar para esses cidadãos.
Na verdade, a esquerda abraçou na última década o discurso neoliberal que aposta no mercado e no consumo como via de inclusão social, obviamente deixando intocadas as desigualdades sociais, ainda que com diminuição da pobreza e aumento do poder aquisitivo, impulsionados por um mercado mais fluido e com salários baixos, mas relativamente melhores na última década, ao menos até a eclosão da brutal crise recente. O empreendedorismo manteve-se ele também incólume no discurso da esquerda, quando não foi também adotado. São esses os pilares do neoliberalismo e de seu sucessor global, o social liberalismo – mais atento à questão social que o primeiro deixa pendente –, ao lado das políticas sociais focalizadas. A disputa por cidadania e direitos, para não falar de valores e formas de vida alternativos, tem estado ausente do discurso da esquerda há muito tempo.
A esquerda abraçou na última década o discurso neoliberal que aposta no mercado e no consumo como via de inclusão social, obviamente deixando intocadas as desigualdades sociais, ainda que com diminuição da pobreza e aumento do poder aquisitivo
Isso significa que os resultados da pesquisa não podem ser tomados como surpreendentes. Colhe-se o que se planta. Colheu-se de fato mais até, uma vez que se houver realmente um realinhamento eleitoral forte dessa periferia, abandonando de vez o PT, será fenômeno não trivial na história da relação entre clivagens sociais e comportamento eleitoral, em geral bastante estável. A combinação dessa pauta social liberal com a desmoralização desse partido e a identificação do ex-prefeito e candidato a reeleição, Fernando Haddad, com as classes médias, favoreceu enormemente o vitorioso João Doria – ele próprio se vendendo como empreendedor acima de tudo. 
Porém a surpresa é surpreendente também por outras razões, mais teóricas. Desde sempre a relação das periferias com a política na América Latina tem sido complicada. Favelas, setor de serviços inchado e atraso tiveram em variantes da teoria da marginalidade – dos anos 1950 aos 1980 inclusive – enorme importância. Embora, lá pelos anos 1970, a esquerda tenha resolvido que era possível organizar essa população das periferias e favelas, villas miseria e poblaciones, anteriormente a mescla de comunitarismo despolitizado e individualismo conservador não era vista como promissora, sobretudo no que tange a seus estratos mais frágeis, que alguns vieram a chamar de subproletariado. De certo modo, ela reapareceu na dupla face de uma aspiração pelo empreendedorismo e no vínculo com as igrejas comunitárias, não surpreendentemente. Não é que a politização dessas populações seja impossível – a pesquisa cabalmente demonstra que ela é forte. Sua organização, no entanto, com viés efetivamente político, permanece difícil, sem falar que foi abandonada, juntamente com a disputa por uma pauta alternativa pela esquerda. O MTST parece querer retomar esse processo de organização e disputa, mas é preciso ver se e em que medida, a esta altura, trará resultados.
Cumpre reconstruir as formas de solidariedade social pela política, sem obviamente desprezar ou hostilizar as diversas igrejas, entre católica e evangélicas, entre outras formas de organização da religiosidade, que se pode encontrar nas periferias
A luta por direitos, praticamente e como campo de disputa, não será certamente exclusiva em qualquer processo que tente trazer essas populações à esquerda. Elas são ademais presas fáceis do clientelismo, e romper com isso não é simples. Mas esse é caminho promissor, seja no que diz respeito ao território, como se costuma pôr a questão hoje, incluindo transporte, saneamento e habitação, seja no que se refere a questões mais amplas, como segurança, saúde e educação, demonstrando que o público pode sim ser melhor que o privado. Além disso, cumpre reconstruir as formas de solidariedade social pela política, sem obviamente desprezar ou hostilizar as diversas igrejas, entre católica e evangélicas, entre outras formas de organização da religiosidade, que se pode encontrar nas periferias.
A questão portanto é menos a surpresa. Trata-se mais de ter programa e estratégia prática para galvanizar populações que, no fim das contas, são a maioria da população brasileira.
http://cee.fiocruz.br/?q=node/550
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