9 de jun. de 2017

O lapso de sinceridade de Barroso na fala sobre Joaquim Barbosa. -Editor- o racismo continua no DNA escravocrrata e viceja no mundo branco como um todo.

O lapso de sinceridade de Barroso na fala sobre Joaquim Barbosa
Sexta-feira, 9 de junho de 2017

O lapso de sinceridade de Barroso na fala sobre Joaquim Barbosa

Em seu Psicopatologia da Vida Cotidiana, escrito em 1901, Freud já identificava certas surpresinhas que nosso inconsciente nos armaria. Esses lapsos decorreriam de “um pensamento singular que permaneceu inconsciente, que se manifesta no lapso da fala e com freqüência só pode ser trazido à consciência através de uma análise detalhada, ou então é um motivo psíquico mais geral que se volta contra o enunciado inteiro. O lapso, portanto, da linguagem, é uma forma de o inconsciente, que nos dribla como fôssemos um zagueiro de série D e ele, o Messi, trazer para a superfície algo que estava ali, pisoteado, escondido, ou, ao gosto dos psicanalistas, recalcado.
Quando o Ministro disse que o outro Ministro era um negro de primeira linha, sabidamente um Ministro que faz questão de demonstrar uma maturidade evolutiva além do jardim em que as crianças medíocres e seus pais medíocres se abandonariam às horas, o que ocorreu foi exatamente o que Freud chamava de lapso de fala. Ele não foi apenas infeliz na sua afirmativa, porém, foi brutal e primitivamente sincero. Foi de uma sinceridade para qual ele mesmo não estava preparado e, dita a frase, remoeu-se na vergonha e no remorso. Ironicamente, não se envergonhou porque mentiu, mas porque disse a verdade.
Essa verdade, todavia, pode não corresponder à verdade sua oficial, àquela verdade que ele acalenta em suas opiniões, em suas escalas de valores ou a que transmite a seus semelhantes ou até com a qual se identifica. A verdade que ele pronunciou é gutural, vem das cavernas profundas do eu, vem de um lugar onde não há regras ou leis ou atos normativos ou sentenças mandamentais, mas onde existem registros confusos e aleatórios das memórias que vamos imprimindo durante a vida.
Em nossas vidas de brancos, a verdade dita pelo Ministro está certamente compartilhada por muitos de nós, senão todos nós. Desde nosso nascimento, as pessoas negras que nos cercam, dificilmente o fizeram em igualdades de condições às pessoas brancas. Sempre foram empregados domésticos e muitas dessas pessoas, notadamente as mulheres negras, substituíram-se às mães em nossos cuidados de maternagem. Muitas mulheres negras amamentaram bebês brancos. Muitas mulheres negras, ainda hoje, em pleno Séc. XXI, são responsáveis pela higiene e até pelo calor humano dado à criança branca. São elas que limpam os bebês, que lhe dão o alívio do frescor, que lhe dão alimento (leite), que os fazem dormir, que os aquece, que com eles passeia pela rua, que lhes dá as primeiras impressões do mundo externo.
Temos, assim, nas mulheres negras um papel que deveria ser desempenhado por pais e mães ou pelos responsáveis pelas crianças. Nossas imagens dos primeiros anos de vida, notadamente da chamada classe média mais abastada, são de mulheres pretas, negras. Nossas primeiras carências, nossas primeiras angústias, nossos primeiros terrores de morte podem ser ligados erroneamente a mulheres que não eram nossas mães, mas que as substituíram e de nós velaram como se filhos seus fôssemos.
A preta boa nos alimentava, a preta má, não. Pouco valeria dizer que ambas cumpriam ordens da patroa branca (a quase sinhá do Séc. XXI/XX); à criança perdida e abandonada a suas terrificantes fantasias, as relações trabalhistas são inalcançáveis.
Durante toda a  infância, as crianças brancas veem os negros e as negras servindo-as, trocando, cozinhando, arrumando, dirigindo, consertando, podando o jardim, sempre ou quase sempre obedientes e caladas. Acostumaram-se a ver os pais brancos fazer distinções arbitrárias ou economicistas, separando as pessoas negras, em “boas” ou “ruins”. À pessoa negra excepcionalmente boa, atribuiu-se uma “alma branca”. Separá-las, pois, é natural às crianças, cujo mundo era naturalmente separado, com as coisas boas e prazeirosas destinadas às crianças brancas.
Por mais que uma criança branca cresça e adquira valores que repudiam essa forma de organização social, lastreada em um sistema escravagista ainda não totalmente extirpado de nosso imaginário branco, ela carregará as experiências que teve. Os ódios à mulher branca que dele não cuidava transferiram-se à mulher negra que por ele se responsabilizou. As identidades que criou durante toda sua vida sempre foram com pessoas brancas. As igualdades que conheceu apenas o nivelava às pessoas brancas; a diversidade racial ou étnica ficava incrustada apenas nos livros de Geografia, como fotografias de Marte, nunca fazendo parte de seu mundo diário.
Essa criança branca que estudou e que adquiriu conhecimentos, que formatou valores igualitários e libertadores, que sente repulsa e asco pelo racismo, traz dentro si memórias que podem trai-la, em momentos cruciantes, naqueles em que estamos expostos e/ou pressionados.
O racismo está dentro da gente mais do que imaginamos ou imaginaríamos. Essa sinceridade gutural e primitiva do Ministro me fez lembrar uma velha canção de Caetano: Eu minto, mas minha voz não mente/Minha voz soa exatamente/De onde, no corpo, na alma de uma pessoa/Se produz a palavra EU…
O ato falho do Ministro é uma dessas oportunidades para que tenhamos uma reflexão do quão introjetados temos os valores ruins e nenhum é pior que o racismo, que nós combatemos, mas que pulsam dentro de nós.
Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/09/o-lapso-de-sinceridade-de-barroso-na-fala-sobre-joaquim-barbosa/
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