24 de set. de 2017

E um dia o Papa sentou no divã

E um dia o Papa sentou no divã



“As relações entre psicanálise e religião são mais intensas do que poderíamos supor, embora seja claro que entre os dois discursos – enquanto formas de conceber o mundo – existem diferenças inevitáveis”, escreve Mariano Horenstein – psicanalista, ensaísta e editor de Calibán, revista de Psicanálise –, em artigo publicado por Clarín, 22-09-2017. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Antes mesmo da publicação do livro, a notícia já circulava por meio mundo. E não era para menos. Aparentemente, a máxima autoridade religiosa da Igreja católica, o Papa, teria feito sessões de psicanálise. O então Jorge Bergoglio, 42, teria consultado uma psicanalista, uma vez por semana durante seis meses. Como se isso não bastasse, Francisco resgatava essa mulher como uma das mulheres da sua vida, e essa experiência como frutífera. É o que se pode ler no livro-entrevista Papa Francisco: Política e sociedade (publicado na França), do sociólogo francês Dominique Wolton, que reúne doze encontros que aconteceram entre ambos.

É discutível se essas reuniões constituíram ou não uma verdadeira análise, mas essa discussão só interessaria aos analistas. De alguma forma, essa experiência existiu e o Papa a resgatou como proveitosa. Talvez seja difícil imaginar esses encontros como uma análise se a medirmos a partir da frequência ou da duração que costumam ter as curas atualmente. Mas bastaria, para provocar suspeitas, lembrar aquelas que Freud teve: intensas, mas bastante mais curtas. Iam de meses de sessões diárias com pacientes indo para Viena para vê-lo, até o grau 0 de uma análise, a uma caminhada de horas com Mahler ou a uma conversa com Catarina, uma montanhesa que sofria de ataques de ansiedade.

Para dizer a verdade, apenas sob certo preconceito este dado poderia ser uma notícia, como se o velho jesuíta tivesse confessado ter usado drogas pesadas na adolescência ou como se houvesse alguma especulação, como com Joseph Ratzinger, com algum flerte com a juventude hitlerista. As relações entre psicanálise e religião são mais intensas do que poderíamos supor, embora seja claro que entre os dois discursos – enquanto formas de conceber o mundo – existem diferenças inevitáveis.

Para ponderar o gesto de Bergoglio basta dar uma olhada no Dictionaire de Théologie Catholique. Ali, no verbete "Psicanálise", a doutrina oficial da Igreja Católica é resumida com uma advertência do Santo Ofício de 1961. Dirigida a bispos, censores eclesiásticos e religiosos "de ambos os sexos", alertava e colocava-os de guarda para que "nunca recorressem à psicanálise".

No entanto, as nuances são mais verdadeiras do que os antagonismos neste ponto: muitos psicanalistas estiveram perto da religião, assim como muitos religiosos estiveram mais perto da psicanálise do que se pudesse esperar.

Por enquanto, três analistas jesuítas participaram da fundação da escola Lacan, entre eles o grande historiador Michel de CerteauLacan, tão ateu quanto Freud, veio de uma família católica, e seu irmão mais novo, Marc-Marie, era padre beneditino. De acordo com o que diz Elisabeth Roudinesco em sua biografia, Lacan pediu, sem sucesso, para ter um encontro com Pio XII para falar com ele sobre "o futuro da psicanálise na Igreja". Ao inserir sua doutrina na tradição cristã, ele pensava que a psicanálise não poderia ter surgido em nenhuma outra tradição senão a judaica.

Freud, esse "judeu sem Deus", sempre se interessou pela religião. Ele escreveu seus principais argumentos em textos como Totem e tabu e O futuro de uma ilusão. Em Moisés e a religião monoteísta postula uma tese arriscada: aquele que formata o judaísmo como povo, Moisés, teria sido egípcio, um estrangeiro.

Mas para além do interesse teórico, o compromisso de alguns analistas com a religião não foi menor. Talvez o exemplo paradigmático seja o de Françoise Dolto, magistral clínica de crianças e católica praticante, que chegou a fazer uma leitura psicanalítica dos Evangelhos. Muito antes chegou Oskar Pfister, pastor protestante que se tornou analista. Basta ler sua deliciosa correspondência com Sigmund Freud para entender um ponto de diferença inevitável entre os dois territórios. Freud, que deixava assentada a sua "atitude radical contra a religião sob qualquer forma e em qualquer diluição", pensava que não era possível conseguir muita coisa agindo em nome do Bem. Ele, que se apresentava como um "herege incurável", advertia Pfister que, sem certa qualidade de malfeitor, não se obtêm resultados na análise.

A revelação de Francisco mostra-nos que, como de costume, a realidade copia a ficção, pois já Nanni Moretti tinha imaginado, no seu filme Habemus Papam, o encontro entre um papa e um psicanalista. Ao narrar as desventuras de um papa sem vocação para esse cargo, Moretti antecipava até a renúncia do antecessor de Francisco.

Para além do que poderia parecer ao Santo Ofício, não é raro que religiosos dos dois sexos e de diferentes religiões procurem ajuda para se pensarem em um dispositivo analítico. Talvez haja ali uma sabedoria oculta, mais valiosa inclusive por surgir entre aqueles que inventaram a confissão como ilustre ancestral da conversa analítica. Assim como há casais que temem que, se forem analisados, possam se separar, ou artistas que temem que possam ser deixados sem a fonte da sua criatividade, há religiosos que pensam que, se analisados, poderiam abandonar os hábitos... Mas a verdade é que nada disso necessariamente acontece.

Uma análise é uma aventura singular, um tratamento feito sob medida, mais que prêt-à-porter, em que nenhum resultado é previsível de antemão. E não deixa de ser interessante que um religioso possa analisar-se sem medo de perder a sua fé, assim como um homossexual pode fazê-lo sem medo de ser normalizado. Um espaço analítico deveria estar nas antípodas de um leito de Procusto – como contava a mítica história – onde o bandido esticava ou encurtava aqueles que não se ajustavam ao tamanho certo da cama de ferro em que eram obrigados a deitar.

Mas há outro dado da anedota papal que interessa: o analista que ele escolheu. A escolha de um analista nunca é casual, e não teriam faltado opções ao papa argentino, sendo Buenos Aires uma das grandes capitais da psicanálise. Francisco, nessa época provincial dos jesuítas, escolheu em primeiro lugar uma mulher, encarnação do Outro para qualquer um e mais ainda para um homem praticante da castidade. Pelo que ele mesmo conta, sua analista era judia. E se o judaísmo encarna na diáspora uma estraneidade talvez necessária neste ofício, o que dizer de uma autoridade eclesiástica...

A sabedoria demonstrada por Francisco e tantos outros corresponde a alguns dados da própria história da psicanálise, que é o efeito de outra diáspora, a dos analistas da Europa Central expulsos pelo nazismo. Assim, uma legião estrangeira ocupou as capitais do Ocidente espalhando um vírus que está longe de ter esgotado seus efeitos. Os pioneiros da psicanálise, praticamente todos, foram, de um modo ou de outro, estrangeiros. O próprio Lacan parece tê-lo intuído quando uma parcela da comunidade judaica de Estrasburgo lhe pedira – a ele, um analista de origem católica – o nome de um analista. Além do senso comum que muitas vezes costuma ser sobrecarregado com as simetrias, não lhes recomenda um analista judeu – que não faltam no movimento psicanalítico –, mas dá-lhes o nome de um grande analista... árabe: Moustapha Safouan.

Afinal de contas, o analista nos ensina a pensar em singular, caso a caso. Por isso, não nos deveria surpreender a notícia de que um futuro papa consultou uma analista. A quem? Nós não sabemos, e é bom que a psicanalista do papa permaneça anônima. A psicanálise é uma prática cujo produto é capitalizado apenas por quem se analisa, o único sujeito em jogo. O fato de que o analisante tenha se tornado famoso não deveria, talvez, importar muito.
http://www.ihu.unisinos.br/571986-e-um-dia-o-papa-sentou-no-diva

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