17 de mai. de 2018

Sertões das Américas. - Editor - DESTAQUE DA MATÉRIA - É um modelo baseado no movimento campesino a campesino, que tem raízes nas culturas indígenas e no histórico de resistência das populações da Centroamérica, além de influências da pedagogia de Paulo Freire.

Sertões das Américas

Quando o Corredor Seco Centroamericano e o Semiárido brasileiro se encontram - por Mariana Correa

A aridez se acentua nos terrenos mais altos, onde a vegetação é retorcida e seca. O calor de mais 35° e os tons esbranquiçados na paisagem trazem à memória a voz do poeta pernambucano Ascenso Ferreira: “O sol é vermelho como um tição. Sertão! Sertão!”. E, por um momento, a distância entre o chamado de Corredor Seco, na América Central, e o Semiárido brasileiro parece desaparecer.
Região castigada pela escassez de chuvas, o Corredor Seco se estende por sete países na América Central, entre eles Guatemala, El Salvador, Nicarágua e Honduras. São paisagens espantosamente semelhantes aos nossos sertões. Mas, para além do clima, questões econômicas, políticas e, de modo mais abrangente, humanas também aproximam os territórios. É a peleja das populações por água, terra e alimento que une essas regiões onde a vida atende pelo nome de resistência.
As secas prolongadas são um velho fantasma para os sertanejos brasileiros e uma realidade dura para as 10,5 milhões de pessoas que habitam as terras áridas Centroamericanas. Com 40% da população dependente da agricultura de subsistência, o Corredor Seco acumula os prejuízos deixados por estiagens cada vez piores, em decorrência de mudanças climáticas globais, cujos efeitos são sentidos de forma mais incisiva nas regiões mais próximas à Linha do Equador. Nos últimos 40 anos, somente em Candelaria de La Frontera, município de El Salvador, a temperatura média subiu de 20º para 30º.
Além das variações climáticas, os pequenos produtores rurais estão sujeitos às instabilidades socioeconômicas de países como El Salvador e Guatemala. Com economias pouco industrializadas, até os anos 1990 essas duas nações enfrentaram guerras civis que deixaram cicatrizes na sociedade, como elevadas taxas de pobreza e de violência.

A linguagem universal da terra

No Corredor Seco, as estiagens estão associadas a fenômenos climáticos como o El Niño. A última seca mais longa, por três anos consecutivos (2013 a 2016), foi considerada a pior dos últimos 30 anos. No fim de 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) reportou mais de três milhões de pessoas em insegurança alimentar na região. Dois milhões de habitantes precisavam de assistência imediata e organismos internacionais, como a própria ONU, atenderam ao chamado. Atualmente, por meio da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), a entidade mobiliza US$ 17 milhões em projetos de acesso à água e de incentivo à agricultura familiar no Corredor Seco.
Mesmo assim, o rastro de destruição deixado pela falta de chuvas ainda está presente. Mais de 50% das colheitas, principalmente de maiz (milho) e de frijoles (feijões), bases da alimentação local, foram perdidas e as plantações futuras também foram prejudicadas. O estrago foi maior nas pequenas propriedades rurais, dependentes da produção de grãos básicos. O empobrecimento da população e a insegurança alimentar foram as consequências. Na região, 80% dos pequenos produtores estão abaixo da linha da pobreza e 30% em situação de extrema pobreza.
Visitar essas comunidades rurais castigadas por anos de perdas é como fazer uma viagem de volta à uma realidade de miséria absoluta que já foi o retrato (e em algumas regiões ainda é) do Semiárido brasileiro. Na Aldeia OQuen, no município de Jocotán, departamento Chiquimula - um dos mais atingidos pelas secas na Guatemala, vive Bertanil Garcia, 40 anos, com o marido e oito filhos. A casa de palha e madeira tem apenas um vão onde se distribuem redes e um fogão à lenha. Os filhos mais velhos ajudam a mãe nas tarefas domésticas. Os mais novos se organizam entre o chão de terra e as redes. Numa delas dorme um bebê de pouco mais de um ano.
A ausência de políticas públicas para as famílias é evidente. "Não recebo ajuda do governo. Meu marido precisa trabalhar em campos de outras pessoas para nos sustentar”, conta Bertanil enquanto assa tortilhas de milho branco e água, comidas com sal. Elas serão o almoço das crianças. As populações indígenas, como a da aldeia onde a família mora, são as mais vulneráveis à insegurança alimentar, assim como as mulheres e as crianças. A Guatemala é hoje o segundo país em desnutrição infantil da América Latina, perdendo apenas para o Haiti.




Tortilhas de milho e água são, muitas vezes, o alimento principal das famílias 
“Chegamos a passar fome na época da seca”, lembra Evelin Velasquez, 21 anos, moradora de Plan del Jocote, também no departamento de Chiquimula. Evelin não completou os estudos, nem trabalha. Assim como as muitas mães solteiras de seu município, cuida sozinha dos dois filhos, um menino de um ano e uma menina de quatro anos. “O pai deles não me ajuda. Quem nos sustenta é o salário da minha mãe, que trabalha no comércio na parte baixa (onde fica o centro urbano), mas às vezes falta comida”, comenta, revelando que os filhos estão abaixo do peso ideal para a faixa etária.
A situação das famílias como as de Bertanil e de Evelin comoveu o agricultor mineiro Valteir Antunes, morador do município de Itinga (MG). “Lembrei da casa onde vivi com minha mãe na infância. Chorei escondido”, revela. O agricultor faz parte de um grupo de 13 agricultores de vários estados Semiárido brasileiro, que participou de um intercâmbio com produtores rurais do Corredor Seco, de 22 a 28 de abril. O encontro foi promovido pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e pela FAO para promover a troca de experiências entre os camponeses das duas regiões e incentivar que as práticas bem-sucedidas possam ser replicadas em ambos os territórios. A ida do grupo brasileiro à América Central foi o primeiro compromisso do projeto. Uma visita dos agricultores da América Central ao Brasil está marcada para julho.




Brasileiros e guatemaltecos dançam juntos ao som das marimbas
Durante os encontros entre os camponeses, a língua, a comida e os costumes diferentes causavam estranhamento. Mas se as diferenças entre o espanhol e o português prejudicavam a comunicação, a linguagem da terra se mostrava universal. “Isso é feijão”, identifica a agricultora Vera Lúcia de Brito, de Palmeira dos Índios, Alagoas, quando a agricultora Hipólita Lopez mostra a sua horta na Aldeia OQuen, as vagens do que ela chama de "frijoles". “Se prestarmos atenção, a luta das pessoas por acesso à água e o amor delas pela terra não é diferente do nosso”, observa o agricultor e presidente do sindicato de agricultores da sua região, Agnaldo Fernandes, do município de Apodi, no Rio Grande do Norte.
A água 
Na Aldeia OQuen ainda se fala o idioma C'horti', um dos mais de 20 dialetos maias preservados na Guatemala. As tradições da civilização conhecida por ter sido extremamente avançada em várias áreas do saber como a arquitetura e a escrita, e por ter criado um império cuja influência estendia-se por vários países da América Central, também se faz presente no som alegre da marimba (instrumento semelhante ao xilofone) que o agricultor Marcel Lopez Vasquez toca. "Quando tem água, as plantas brotam. A terra dá o alimento e a madeira para fazermos os instrumentos. Ou seja, sem água não há vida, comida e nem música", ensina.
A água é a maior riqueza para os moradores do Corredor Seco. Nas regiões mais altas de Candelaria de La Frontera, em El Salvador, há quatro quilômetros do centro da cidade, existe apenas um manancial que abastece 12 famílias. O acesso à fonte é feito em uma caminhada de aproximadamente 20 minutos, entre pedras escorregadias e despenhadeiros. “Todos os dias descemos e subimos com cântaros nas costas”, conta a agricultora Ofélia Garcia. “O gado faz esse mesmo caminho para matar a sede, quando volta já está sedento novamente”, completa o agricultor Pedro Chamel.
Eles dizem que muitas das fontes de água da região estão localizadas em propriedades privadas, o que também dificulta o acesso dos moradores ao líquido. Atualmente, a fonte que abastece a comunidade de Ofélia e Chamel está protegida por uma estrutura que captura o manancial e separa o abastecimento humano do animal. Antes, ambos eram feitos no mesmo local. O sistema construído com apoio da FAO evita a contaminação porque, até pouco tempo, essas famílias não tinham acesso à água potável. Nas casas de Chamel e Ofélia também há filtros de plástico - diferentes do Brasil, feitos de barro. O uso do cloro também tem ajudado a melhorar a saúde dos moradores como Ingrid Ramirez, de 24 anos, com três filhos. “Eles não têm mais dores de barriga desde que comecei a dar água com cloro”, comenta.




Ofélia mostra a fonte de água que abastece a sua comunidade
Embora chova muito em algumas épocas do ano - o Corredor Seco também se caracteriza por extremos climáticos como tempestades no inverno - os agricultores dizem que o solo montanhoso não consegue reter toda a água, que desce levando consigo os nutrientes do solo e causando erosões. Por isso, os projetos que fomentam a agricultura familiar na região também incentivam reflorestamentos para ampliar o nível de infiltração das chuvas e combatem queimadas, muito comuns nas zonas rurais. Há ainda uma preocupação com a redução de uso de agrotóxicos que contaminam a terra e os mananciais.
Mas, apesar de todos esses esforços os efeitos nocivos das mudanças climáticas continuam avançando rapidamente. O antes caudaloso rio Shusho, na Guatemala, era a única fonte de água de 57 famílias que moram na cidade de Jocotán, centro do Corredor Seco. Elas precisavam descer até o rio para lavar roupa e tomar banho. "O volume do curso d'água diminui ano a ano por causa das mudanças do clima", explica Marcelo Lopez Vasquez, promotor da FAO na comunidade. Ele mostra uma pia construída com apoio da entidade. Ela tem um sistema que retira água de mananciais subterrâneos e um filtro para extrair o sabão e deixar a água em condições de ser reutilizada. "Ainda há uma espécie de cabine que preserva a privacidade de quem vai tomar banho", ressalta.




Evelin revela que os dois filhos estão abaixo do peso ideal. A Guatemala é o segundo país em desnutrição infantil na América Latina

Os retirantes 

A fome e a falta de oportunidades que impulsionaram migrações de retirantes sertanejos para centros urbanos durante anos também levam agricultores do Corredor Seco, sobretudo os mais jovens, a abandonarem o campo. É comum ouvir histórias de pessoas ou de famílias inteiras que fugiram em busca de melhores oportunidades de vida nos Estados Unidos. Em 2016, de acordo com estudo da Organização dos Estados Americanos (OEA), 47% das famílias no Corredor Seco de El Salvador, Honduras e Guatemala que tinham migrantes sofriam com a insegurança alimentar.
Em Sensembra, no departamento de Morazan, El Salvador, casas vistosas se destacam entre construções precárias. Elas foram construídas com as chamadas “remessas”, ou seja, dinheiro enviado por trabalhadores locais que foram tentar a vida no país norte-americano. O agricultor Santos Henriquez passou sete anos morando nos EUA, desde 2005, para enviar as tais remessas à família. Foi assim que ele e sua esposa Candaria conseguiram comprar a pequena propriedade. "Construía casas na Carolina do Sul. Minha filha tinha um ano quando saí e a reencontrei com oito anos. Foi uma época difícil”, lembra. Atualmente, a casa dele foi beneficiada com reservatórios de água de chuvas, hortas e criações de galinhas, em projetos realizados com apoio da FAO.




Santos Henriquez trabalhou sete anos nos EUA para enviar remessas de dinheiro à família
Recurso desesperado das famílias, os fluxos migratórios de centro-americanos são hostilizados pelo governo norte-americano. Em 2016, a polícia de migração dos Estados Unidos deteve 60 mil pessoas da Guatemala, El Salvador e Honduras, que estavam em situação ilegal nas fronteiras, de acordo com a OEA. No começo deste ano, os EUA cancelaram vistos temporários de 250 mil salvadorenhos que viviam no país, fugitivos da guerra civil que findou em 1990 e de terremotos em 2001.
Quem não tem dinheiro para ir a outro país - a imigração para os EUA custa, no mínimo, US$ 10 mil - vende sua força de trabalho em outras atividades, como o comércio e o corte da cana-de-açúcar. Um “boia fria” nos canaviais guatemaltecos ganha, em média, de 40 mil Quetzais (moeda local) a 60 mil Quetzais pela jornada de trabalho de oito horas ou seja, Entre US$ 5 a US$ 8 ou R$ 17 ou R$ 28, a depender da cotação.
A migrações internas e externas já retiraram mais de 20 famílias das regiões altas e secas que ficam a quatro quilômetros do centro do município de Sensembra, desde 2009. Hoje restam 13 famílias no local, onde não há água encanada, nem atendimento médico. “Uma mulher grávida chegou a dar a luz no meio do mato porque não aguentou todo o percurso até o centro da cidade”, conta a agricultora Candaria Henriquez.

Sementes da mudança

Maria Aparecida da Silva é agricultora em Sergipe, no povoado de Lagoa da Volta, município de Porto da Folha. Dona Cida, como é conhecida, começou a plantar em 2009 usando tanques próximos à sua propriedade. No ano seguinte ela conquistou uma cisterna para consumo humano e, um ano depois, outra para produção de alimentos agroecológicos que hoje sustentam a sua família.
A trajetória de Dona Cida conta a história das revoluções que o Semiárido brasileiro viveu nos últimos anos. Depois de uma grande seca de 1979 a 1984, que deixou mais de 100 mil mortos, a abordagem de convivência - não de "combate"- com as estiagens vem se fortalecendo na região. Os sistemas de captação de águas de chuvas, como as cisternas de Dona Cida, beneficiam atualmente milhares de famílias. Mais de um milhão de cisternas foram construídas em todo o território, com a articulação de várias organizações e movimentos sociais.
Simultaneamente, políticas públicas de transferência de renda, ampliação de crédito e investimentos em educação e saúde também foram decisivas para melhorar índices de nutrição, escolaridade e de renda dos moradores da região, que ocupa um quinto do território nacional e tem mais de 26 milhões de habitantes. “A mudança na forma de enxergar o Semiárido, na concepção de convivência com a região, o desenvolvimento da cultura do estoque e o acesso à água - que é a fonte da vida - nos fizeram chegar a realidade de hoje. Sem essas coisas, o Brasil ainda estaria parado num passado de fome e miséria”, avalia Alexandre Pires, da coordenação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) Pernambuco.
"A mudança na forma de enxergar o Semiárido, na concepção de convivência com as secas, o desenvolvimento da cultura do estoque e o acesso à água - que é a fonte da vida - nos fizeram chegar a realidade de hoje. Sem essas coisas, o Brasil ainda estaria parado num passado de fome e miséria”, Alexandre Pires da ASA Pernambuco.
Pires ressalta que essas sementes que trouxeram as mudanças ao Semiárido estão sendo plantadas na América Central, a partir da atuação de organismos internacionais como a FAO. A entidade mobiliza financiamentos estrangeiros articula ações com os governos locais e comunidades. Na Guatemala e em El Salvador, os projetos da FAO estimularam a organização dos conselhos de bacias hidrográficas (microcuencas) formados pelos moradores, que definem as prioridades para a região. “Percebemos que era preciso ter essa visão mais ampla para trabalharmos a questão da água de forma efetiva no território”, explica Vera Boeger, oficial de Terra e Água da FAO na América Central.
As comunidades também participam com o financiamento de parte das ações - geralmente 10% do custo total. Nos projetos desenvolvidos no Corredor Seco, os agricultores, chamados de “promotores”, assumem o papel de replicadores das experiências implementadas em suas propriedades rurais, como a construção de reservatórios para coleta de água de chuvas e melhores práticas de irrigação. É um modelo baseado no movimento campesino a campesino, que tem raízes nas culturas indígenas e no histórico de resistência das populações da Centroamérica, além de influências da pedagogia de Paulo Freire. A metodologia encoraja o protagonismo dos agricultores, que assumem o papel de multiplicadores dos conhecimentos nas suas comunidades.
Um exemplo é a propriedade de Pedro Chamel, em Candelaria de La Frontera, El Salvador. As plantações de hortaliças com sistemas de gotejamento, a presença de reservatórios de água de chuvas, onde também há a criação de tilápias que ajudam a controlar infestações de mosquitos e a turbinar o consumo de proteínas na alimentação. Essas são algumas das experiências que ele compartilha com os agricultores do entorno. “Em dois anos, construímos reservatórios de água de chuva para consumo humano em todas as casas das 12 famílias”, conta Chamel.
Na Guatemala, os projetos de melhoria da produtividade de alimentos nas zonas rurais e de acesso à água com a metodologiacampesino a campesino também ajudam a combater a desnutrição infantil, que diminuiu dois pontos percentuais em cinco anos. “Caiu de 51% para 49%, ainda é muito alta. Temos mais quatro anos de projetos por aqui”, considera Gustavo Garcia, técnico da FAO.
Os benefícios também chegam nas escolas. Na escola municipal de Gualumar, em El Salvador, está sendo construída uma grande cisterna com capacidade de 125 metros cúbicos para captar água de chuvas que vai abastecer a unidade. “Já temos uma cisterna para a produção de alimentos na horta, complementos para a merenda dos 93 alunos que é preparada com auxílio dos pais”, diz o professor Evelio Chicas. “O exemplo das escolas com participação dos pais é algo que quero levar para minha comunidade”, comenta a agricultora Maria Fátima de Jesus, da Bahia. O professor Chicas explica para Fátima que mais de 100 famílias do entorno devem ser beneficiadas com a água da estação, mas que deve ser cobrada uma taxa mínima (ainda não definida) para o acesso ao líquido e à manutenção do sistema.




Reservatórios de água de chuvas beneficiam escolas e estudantes no Corredor Seco

Mulheres fazem a revolução 

Há mulheres nos campos, nas casas, em todos os lugares. Mães solteiras, chefes de famílias que sustentam os filhos com o esforço do seu trabalho, mas muitas permanecem caladas enquanto os homens tomam a palavra nas comunidades. A cultura do machismo se impõe de forma gritante nas regiões do Corredor Seco Centroamericano. Mas esse ciclo de opressão começou a ser quebrado a partir do protagonismo feminino em comunidades como Plan de Jocote.
A agricultora Gloria Diaz é a representante legal da Associação de Mulheres Independentes que reúne 162 participantes e 54 jovens. Ela conta que, quando os maridos saiam para trabalhar no campo, as mulheres se dedicavam aos filhos e ao trabalho doméstico. Foi então que elas decidiram fazer sua revolução. Começaram a plantar hortaliças e café. Venceram sozinhas o terreno acidentado, retirando, uma a uma, as enorme rochas no caminho.
Na montanha, elas iniciaram uma plantação de café em níveis. Ergueram uma barreira de pneus para conter a erosão nas chuvas. Criaram um sistema de gotejamento com garrafas pets que mantém as plantas irrigadas. Em fila, como um exército, elas enchem milhares de garrafas que são passadas de mão e mão até ocuparem toda a plantação. “Apenas quatro homens ajudam nossas ações, porque aqui os homens que ajudam as mulheres não são bem vistos”, revela Glória.




Mulheres e jovens da associação feminina em Plan del Jocote pousam para foto na barreira de pneus que elas construíram para evitar deslizamentos de terra
Na horta comunitária, as mulheres de Plan del Jocote colhem hortaliças e mantém um reservatório de captação das chuvas. Os projetos delas, também apoiados pela FAO, ainda incluem um banco de sementes para preservar culturas locais e um Fundo de Contingência que elas criaram. Como grande parte das mulheres não tem nível de escolaridade, nem emprego formal, o acesso ao crédito era um desafio. “Nenhum banco queria emprestar dinheiro para nós, então decidimos criar o nosso banco”, explica a presidenta do Fundo de Contingência, Rosaura Días Felipe.
Para manter o fundo, todos os meses cada participante faz um depósito de 10 Quetzais para manter uma poupança comunitária. O dinheiro acumulado até agora, três mil Quetzais, se divide em um fundo emergencial para saques e operações de financiamento. Os financiamentos chegam a 600 Quetzais, com juros de 3% ao ano. O dinheiro ajuda a incrementar a renda das participantes, que utilizam o empréstimo para investir na venda de lanches e de artesanatos, entre outros. Assim, a renda circula dentro da própria na comunidade.
“Peguei 300 Quetzais para fazer empanadas de frutas e bordados, o que já me ajudou a fechar as contas”, conta a agricultora e comerciante Vivalina Diaz, uma das 114 beneficiadas. No fim, 5% do valor do empréstimo vira o rendimento para o grupo de beneficiados e 2% permanece no sistema. A poupança pode ser retirada em uma situação de emergência, como a morte de um parente, por exemplo. Mais do que o complemento da renda, o "banco" é um um instrumento de empoderamento das mulheres da região. “Temos que ser independentes”, conclama Rosaura. “Quando meu marido me deixou, passei três dias chorando. Não sabia o que faria com meus filhos. Hoje sei meu valor".
As experiências das mulheres de Plan del Jocote também animam companheiras de comunidades próximas como Alida Lopez, do município de Ijaneno. Ela realiza projetos sociais com 37 senhoras de sua comunidade. “Passei 25 anos submetida à meu marido. Ele não me deixava nem ir à igreja sozinha. Então decidi que isso precisava mudar e estou, aos poucos, conquistando minha liberdade. Como eu há muitas”, conta. Com lágrimas nos olhos, a agricultora e feminista paraibana Gizelda Bezerra, ouve o relato da companheira e se reconhece na luta. “A força delas é impressionante. É muito bom a gente conhecer pessoas que lutam pelos mesmos ideais sejam em qualquer lugar do mundo”, diz.
Futuro incerto na América Latina
Oscar Aldana, 16 anos é estudante em Chiquimula, Guatemala, e líder da juventude na comunidade de Plan del Jocote. Estuda inglês duas vezes na semana e quer aprender português. Está interessado nas mudanças políticas que acontecem no mundo, sobretudo na América Latina. “Como está a política no Brasil? O governo ajuda as pessoas?”, pergunta o curioso rapaz que pretende estudar relações públicas. “Penso em estudar e trabalhar fora. Aqui não há muitas oportunidades. O governo também não ajuda”, revela.
As perspectivas nebulosas na Guatemala e em El Salvador não são uma realidade isolada na América Central. No Brasil, tensões políticas e sociais também constroem um horizonte de incertezas. Para muitos agricultores do Semiárido que participaram do intercâmbio no Corredor Seco, as realidades estarrecedoras de desamparo dos governos e miséria em algumas comunidades despertaram uma profunda identificação com lutas do passado e do presente do Sertão. O temor, entre eles, é que essas lutas voltem a ser a realidade dominante na região.




Oscar Aldana (ao centro) é uma liderança jovem na Guatemala
Entre os produtores rurais do Semiárido que participaram da experiência há um consenso de que os avanços sociais no Brasil, sobretudo na última década, resultaram na melhoria da qualidade de vida em suas regiões. Muitos conquistaram o acesso à água e de viver, com dignidade, de suas produções agrícolas. Mas, as instabilidades políticas e sociais são hoje uma ameaça real a essas conquistas. “Em decorrência do processo de golpe que sofremos no Brasil, políticas públicas fundamentais para o Semiárido têm sido esvaziadas”, alerta o coordenador executivo da ASA Brasil em Pernambuco, Alexandre Pires.
No ano passado, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que estimula a produção de pequenos agricultores sofreu um corte de 40% no orçamento. A redução atinge diretamente as vendas de pequenas cooperativas. Além disso, a fragilização de programas de transferência de renda como o Bolsa Família e das leis trabalhistas também têm prejudicado os trabalhadores do Semiárido, onde se concentra um terço da produção da agricultura familiar, responsável por 70% da produção de alimentos que abastecem a população, de acordo com a ASA.
A fome - maior flagelo das secas - voltou a rondar os sertões brasileiros. Este ano, a ONU alertou que o desemprego e os cortes nas políticas públicas de assistência e transferência de renda podem fazer o Brasil voltar para o Mapa da Fome, do qual o país está fora desde 2014. “É uma realidade da qual, infelizmente, não estamos completamente livres. Esse intercâmbio reforça a importância dos avanços que conquistamos no Brasil e a troca de experiência fortalece as lutas dos camponeses de ambas as regiões. Não podemos abrir mão desses avanços", reforça Alexandre Pires da ASA Pernambuco. Ele espera que o retrocesso não seja o próximo ponto de encontro do Corredor Seco e do Semiárido brasileiro.
*A repórter viajou para o Corredor Seco a convite da ASA Brasil e da FAO 
http://marcozero.org/sertoes-das-americas/

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