37º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
ST 33
AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
A CONSTRUÇÃO DO MITO “BRASIL, REINO DA CORRUPÇÃO”
NA MÍDIA NACIONAL
Lília Junqueira
UFPB
Setembro/2013
A construção do mito “Brasil: reino da corrupção” na mídia nacional
Lília Junqueira1
RESUMO: O texto apresenta os primeiros delineamentos de um
estudo sobre o mito presente na identidade nacional aqui
denominado “Brasil: reino da corrupção”, priorizando a análise do
conteúdo moral gerado pelos produtos midiáticos, deixando em
segundo plano influências das questões político-industriais e
mercadológicas sobre este conteúdo. Em outras palavras, pretendese
fazer um estudo do mito “na” mídia (e não um estudo da corrupção
“da” mídia enquanto instituição social), refletindo sobre a influência
deste mito na produção e reprodução das crenças relativas à
identidade nacional junto ao público, tendo em vista que a dimensão
individual ainda é aquela na qual a mídia, enquanto instituição
socializadora, faz seu trabalho discursivo primordial: a atualização
cotidiana da estrutura social nos indivíduos.
Brasil: país da corrupção
A ideia de que o Brasil é um país corrupto está presente no imaginário
nacional desde os primórdios da formação da identidade brasileira. Esta ideia
forte tem assumido as mais diversas formas de manifestação no decorrer da
nossa história, mantendo-se presente nas expressões culturais e na vida
cotidiana dos cidadãos comuns. Encontra-se disseminada na literatura, no
teatro, no cinema e na televisão, no jornalismo, e até mesmo em livros
didáticos. O fato de ser uma percepção social arraigada na cultura comprova
sua composição em termos de sentimentos, pensamentos e energias sociais
que se fermentam na base de determinados tipos de ação social bastante
corriqueiros, mas nem sempre justos e éticos nas relações sociais e nas
interações cotidianas. Partimos do pressuposto que não é porque o país é de
fato corrupto que a ação social muitas vezes é corrupta, mas sim o contrário.
É pelo fato de acreditarmos piamente nesta representação medieval do
1 Professora no Departamento de Ciências Sociais da UFPB, autora do livro Desigualdades Sociais
e Telenovelas, relações ocultas entre ficção e reconhecimento, SP, Annablume 2009 e organizadora
da coletânea Cultura e classes sociais na perspectiva disposicionalista, Editora da UFPE, 2010.
nosso país que faz com que a ação de base corrupta muitas vezes seja
reproduzida mecanicamente nos termos de Bourdieu (1998,1999). A eficácia
do mito do ponto de vista prático gera a doxa, tendência “a impor a imposição
da ordem estabelecida como natural (ortodoxia)” (Bourdieu,1998:14).
A metáfora “Brasil: reino da corrupção” é um mito. Como todo mito ela é
fechada a interferências externas, isto é, ela rotiniza a ação social dentro de
parâmetros lógicos estáticos definidos internamente. E por ser um mito, a
tendência é a sua permanência na estrutura social, através de todo tipo de
atualização possível. Acessando a sociologia do conhecimento, é importante
que se pergunte: a quem interessa esta atualização? Souza (2000, 2001,
2010) em obra dedicada o aprofundamento do tema, vem desvelando a
engrenagem de nossa estrutura de classes e mostrando como a ideia de país
corrupto não é mais apenas a reprodução identitária negativa da estrutura de
desigualdades interna ao país, mas também é válida para as relações de
desigualdade entre o Brasil e os demais países. No intuito de colaborar com
esta construção argumentativa, o trabalho aqui proposto visa investigar a
presença e reprodução do mito do “Brasil corrupto” na mídia nacional.
Esta pesquisa se insere no projeto investigativo maior intitulado: “Mídia e
privilégio no nordeste brasileiro contemporâneo: como a televisão, o cinema e
o jornalismo impresso interagem nos mecanismos de autolegitimação da
classe média”. Trata-se de uma pesquisa interestadual (Paraíba e
Pernambuco) coordenada pela autora, abrangendo empiricamente João
Pessoa, Campina Grande e Recife, que trata dos acordos e
comprometimentos sentimentais, lógicos, psicológicos e ideológicos entre a
classe média e as instituições midiáticas no Brasil, visando trazer à tona os
delineamentos da autolegitimação e da distinção da classe média nordestina
através da análise do fenômeno da interação das pessoas com a mídia na
vida cotidiana. A metodologia adotada é a análise da produção midiática e
entrevistas em profundidade sobre disposições sociais e recepção de mídia
em Recife e João Pessoa, nos moldes de Bourdieu e Lahire. Esta pesquisa
regional , por sua vez, faz parte da pesquisa nacional coordenada pelo profº
Jessé Souza da UFJF intitulada: " A sociodicéia do privilégio: uma pesquisa
teórico-empírica sobre as classes dominantes no Brasil contemporâneo."
A identidade nacional na mídia
A mídia tem sido considerada pelas ciências sociais e pelas ciências da
comunicação contemporâneas um espaço público do qual emergem
demandas direcionadas ao funcionamento democrático das instâncias sociais
do direito e da administração (Costa, 1996). A investigação que propomos
leva em consideração este fato, apontando alguns argumentos teóricos e
dados empíricos que dão sustentação à ideia da existência de um campo de
discussão sobre a identidade nacional, gerado pela pluralidade de veículos,
abrangendo a mídia como um todo. A televisão , o cinema, o rádio, a internet
e seus produtos culturais característicos da América Latina e do Brasil,
mantém uma forte e constante comunicação com o público na qual questões
relativas à percepção, sentimento e à moral ligadas à construção da
identidade nacional na sociedade brasileira são tratadas em seus produtos
em pautas de ampla discussão nacional.
Para trabalhar nesta abordagem é necessário priorizar o estudo do
conteúdo moral gerado pelos produtos midiáticos, deixando em segundo
plano (mas não descartando da análise, ou seja, conferindo indiretamente o
devido peso às) questões político-industriais e mercadológicas influenciando
este conteúdo. Em outras palavras, pretendemos aqui fazer um estudo do
mito do “Brasil corrupto” “na” mídia (e não um estudo da corrupção “da” mídia
enquanto instituição social), refletindo sobre a influência deste mito na
produção e reprodução das crenças relativas à identidade nacional junto ao
público, tendo em vista que a dimensão individual ainda é aquela na qual a
mídia, enquanto instituição socializadora, faz seu trabalho discursivo
primordial: a atualização cotidiana da estrutura social nos indivíduos.
O objetivo metodológico é levantar alguns elementos indicadores da
construção moral e reprodução do mito do “Brasil corrupto” no conteúdo e na
criação dos produtos midiáticos, levando em consideração o contexto
mercadológico e as condições técnicas de um lado, e de outro as influências
de outros campos sociais, tais como os campos político, intelectual e literário
nesta construção. Neste contexto, realizou-se uma investigação de como a
ideia de país corrupto é construída no conteúdo da mídia nacional, tendo
como variáveis principais os gêneros midiáticos e seus condicionantes
externos, pensados à luz da teoria dos campos sociais de Bourdieu (2007).
Gêneros midiáticos
Os gêneros são “sistemas de regras aos quais se faz referência – de
modo explícito ou implícito – para realizar o processo comunicativo” (Wolf
apud Souza, 2004: 44) Existem miríades de concepções sobre os gêneros
nas ciências da comunicação, e já é consenso nas análises de conteúdo que
a intertextualidade é majoritária na expressão cultural contemporânea como
um todo, em comparação à classificação por gêneros. No entanto, os
consumidores e produtores continuam fazendo classificações com base nos
gêneros porque são familiares e fáceis de reconhecer, organizando com base
num consenso prático a compra, o consumo e a comercialização dos
produtos midiáticos. (Balogh, 2005: 146)
Para utilização metodológica da nossa pesquisa não entraremos na
polêmica das análises semiológicas e do discurso sobre os gêneros da
comunicação, adotando apenas duas categorias básicas de gênero. O
primeiro: “informação” é caracterizado por conteúdo “real” ou documental,
baseado em relato de fatos ocorridos na vida social e transpostos para os
mais diferentes produtos tais como jornais impressos, revistas, telejornais,
boletins diários, reportagens, filmes documentários, etc. O segundo: “ficção” é
caracterizado por conteúdo narrativo, ou seja, são produtos criados por
autores, artistas, roteiristas e publicitários, tais como literatura, filmes,
telenovelas, séries, anúncios, histórias em quadrinhos, etc. A maior
frequência destes dois gêneros na grade da TV, por exemplo, confere
representatividade do nosso universo de pesquisa dentro da mídia nacional:
GÊNEROS E HORAS TRANSMITIDOS PELA TV EM 2011
Gêneros transmitidos Horas de
exibição %
Informação 13 183:04 25,1
Ficção 11 243:40 21,4
Entretenimento 8 877:33 16,9
Religioso 4 965:38 9,5
Esporte 3 455:09 6,6
Educativo 317:41 0,6
Político 62:41 0,1
Outros 10 351:20 19,8
Total 52 456:46 100
Dados do anuário Obitel (Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva),
Lopes, Gómez (orgs.), Ed. Sulina, Porto Alegre, 2012.
1.
Gênero “informação”
O jornalismo no Brasil nasceu, como no resto do mundo, no contexto do
surgimento de uma esfera pública. Mas a necessidade crescente de
autonomia dos jornais levou à incorporação de tecnologia e a acordos
comprometedores com empresas e governos, o que acabou
descaracterizando a racionalidade da opinião. Do ponto de vista político, no
Brasil se dá uma evolução começando pelas posições políticas de esquerda
na primeira fase, censura, e surgimento de jornais de esquerda e de direita (a
partir da 1ª metade do séc. XX), na segunda fase, e inserção no mercado
mundial e informatização na terceira (a partir do final dos anos 70). No
entanto, mesmo com todo o avanço do campo jornalístico na atualidade, o
posicionamento moral dos jornais continua muito vulnerável às
movimentações do campo econômico e político, de forma que o teor deste
posicionamento varia conforme os períodos de alto ou baixo aquecimento do
mercado capitalista, substrato essencial de toda a mídia (Bourdieu, 1997).
Por isso o campo jornalístico continua lançando mão corriqueiramente dos
mitos na produção das notícias. O mito é uma mensagem de compreensão
instantânea, conhecida a fundo pelo senso comum, receita infalível de
sucesso na comunicação. Quando o jornalismo passa por períodos de
mudança profunda e é necessário aumentar a receita urgente, o mito é
empregado sem pudor, enquanto recurso discursivo de eficácia simbólica,
que reverte em eficácia comercial. É o que acontece nos dias de hoje em que
a mídia nacional se vê pressionada entre as exigências de mais qualidade na
produção para concorrência no mercado latino americano e internacional,
mas ao mesmo tempo, se vê pressionada a baixar a qualidade dos produtos
em termos de conteúdo para atender a mudança ocorrida na demanda
interna.
Esta mudança é social. Trata-se do impacto do peso da entrada de
cerca de 40 milhões de pessoas no mercado consumidor de mídia nos
últimos 10 anos, reconfigurando completamente o público midiático no país.
Na produção do conteúdo da mídia, a consequência é a mudança do padrão
social para baixo, ou seja, a mídia é obrigada a comunicar-se em grande
escala com a classe mais popular, deixando de estar voltada exclusivamente
para a classe média, como no passado.
“O crescimento do mercado consumidor foi extraordinário em todo o
setor de telecomunicações do país em 2011. O crescimento da TV
paga, por exemplo, foi de 31,4%, alcançando um total de 42 milhões
de pessoas ou 22% da população. Esse resultado eleva para 12,7
milhões o número de assinantes, tornando o Brasil o maior mercado
de TV por assinatura da América Latina em números absolutos. Os
dados positivos devem-se especialmente ao aumento do poder de
compra da classe C, que passou a representar 30% dos assinantes.
Como efeito desse processo de democratização havido no sistema
das comunicações no país em 2011, o perfil dos assinantes da TV
paga passou a ser: 43% da classe C; 26% da classe B; 24% da
classe A; e 7% da classe D.” (Obitel Brasil 2012)
Decorrente, entre outros, destes condicionantes sociais sobre o
jornalístico, fortalecem-se, no Brasil, hoje, algumas características notáveis
do fazer jornalístico nacional facilmente perceptíveis por qualquer leitor ou
telespectador atento às notícias disponibilizadas nos mais diferentes veículos
brasileiros, que reproduzem de forma prática o substrato favorável para a
reprodução dos mitos em geral através do próprio ethos jornalístico:
a. Desrespeito às fontes
O forte teor jornalístico de “opinião” no qual as notícias são
frequentemente ensaísticas e personalizadas, o que se justifica na crença
interna e externa ao campo jornalístico do posicionamento social imparcial
privilegiado dos jornalistas. Estes se veem e são vistos como pessoas
portadoras de uma visão privilegiada, mais ampla, da sociedade. Na prática,
há pouca pesquisa e pouco recurso é feito a quem faz pesquisa para ser
fonte das notícias. No telejornalismo esse efeito mórbido da distinção social
entre o jornalista (a priori “culto”) e o público (inculto) se revela na atitude dos
repórteres brasileiros evitarem dar a palavra aos entrevistados durante as
reportagens. O entrevistado diz duas palavras e o repórter interrompe para
“traduzir” o que foi dito e em seguida desenvolve uma interpretação da
informação, não deixando espaço para que o espectador tire suas próprias
conclusões diante da informação dada pela fonte. Desvalorizando o discurso
da fonte e valorizando o próprio discurso, os repórteres e jornalistas
inconscientemente reproduzem mitos relativos à inferioridade cultural,
educacional e moral da população. O tratamento das fontes é muito mais
controlado no jornalismo internacional, de forma a exibir e transmitir um maior
respeito com as pessoas que prestam informações aos repórteres e
jornalistas, sejam eles expostos ou não ao público.
b. Superficialidade e sensacionalismo
Trata-se do fenômeno do jornalismo raso, condicionado pela
instantaneidade da produção, obrigando o apelo aos estereótipos. O mesmo
reverte frequentemente no aumento do apelo à má vulgarização científica na
interpretação dos fatos e na restrição da investigação à superfície dos fatos.
O aumento do apelo ao conteúdo “fácil” se acrescenta à valorização do
“sensacional”, efeito traduzido, por exemplo, no aumento da frequência e do
espaço e tempo dedicados às notícias policiais na pauta jornalística, de
forma a fomentar o escândalo. O jornalismo tenta a todo custo explorar
comercialmente a criminalidade procurando dar destaque aos crimes e às
questões ligadas à violência cotidiana. O aumento da exposição da violência
aumenta o sentimento de impunidade que por sua vez aumenta a certeza de
que vivemos num país desordenado, um espécie de terra sem lei.
Considerar o público leitor e espectador como social e culturalmente inferior é
uma estratégia psicológica profissional que facilita para o jornalista atuar
nesta dinâmica discursiva e prática formatada historicamente dentro do
campo profissional.
c. O transbordamento do gênero ficcional para o jornalístico e
político.
No âmbito do tratamento discursivo, temos a tradição da notícia
narrada como uma história. Faz parte da nossa cultura oral e ainda está
presente no repente e na literatura de cordel no nordeste. No contexto das
fragmentações discursivas (que atingem, na atualidade, o campo jornalístico
no mundo inteiro), no Brasil esta tradição facilita o transbordamento do
gênero ficcional sobre o jornalístico. Decorre daí o maior fomento à
criatividade do jornalista em detrimento do distanciamento com relação ao
acontecimento que seria o ideal para a elaboração racional da notícia. Este
fato fortalece o apelo aos estereótipos e a falta de isenção do profissional da
notícia. A campanha de Jarbas Vasconcelos para governador em 2006, por
exemplo, aprofundou a utilização deste recurso, apresentando suas
propostas no horário eleitoral em formato de novela.
A reprodução do mito no gênero jornalístico-documental
Tendo em vista a incorporação pelos repórteres e jornalistas do
habitus de produção de notícia favorável à utilização dos mitos, a seguir
levantamos alguns indicadores sobre como este mito seria reproduzido:
a. A hiperexposição do tema da corrupção política:
A hiperexposição levando a um superdimensionamento do problema.
Leques de produtos midiáticos são inteiramente produzidos para avaliar um
problema exacerbado pela mídia, utilizando como fonte, por exemplo o portal
da Transparência Brasil cuja trabalho social insuspeitado é priorizar e reforçar
a indignação pública do país consigo mesmo. A ideia da “honestidade” sendo
colocada como principal capital político, em detrimento da capacidade de
proposição, administração e gerenciamento de projetos e instituições
voltadas para o bem comum visando o real desenvolvimento nacional. O
debate sobre a corrupção é frequentemente um debate vazio, uma caça às
bruxas de cunho quase religioso que ocupa o lugar do verdadeiro debate
político. Deste ponto de vista, o combate à corrupção é pior para o país do
que a corrupção real.
b. A hiperexposição do tema da “impunidade”:
Os bandidos estão todos os dias durante muito tempo na fatia mais
nobre do horário da grade da TV, em cadernos especiais sobre violência dos
jornais estaduais e regionais impressos, nas colunas dos grandes jornais
nacionais, na internet e até no jornalismo a cabo. O jornalismo-denúncia,
servindo de apêndice funcional às instituições de controle e vigilância pública
é positivo, mas paradoxal, porque leva ao mesmo tempo, a uma mistura de
funções entre as instituições e ao empoderamento da mídia. Outra
consequência questionável da hiperexposição do tema da impunidade seria o
transbordamento das funções do ministério público e do judiciário para a
mídia. Tal fenômeno implica na institucionalização do “jornalista-herói”, ou
aquele que “tem a coragem de dizer as verdades sobre os verdadeiros
culpados”, ou pior ainda, o “jornalista-juiz”, na percepção popular.
c. Enquadramento ou “ângulo da notícia” pela dicotomia
correção x corrupção:
Dentro da tendência à fragmentação vivida pela mídia contemporânea,
o jornalismo ganhou liberdade de definir a pauta, ou seja de escolher o que
vai ser noticiado e consequentemente, para a sociedade, o que vai ser
discutido. Há um enfraquecimento do controle estatal na notícia. Por outro
lado há uma pressão para abordar certos temas que dão mais audiência e
visibilidade às empresas jornalísticas em que se privilegia a
espetacularização e o combate ao crime e a corrupção que acabam se
tornando apologias ao crime e a corrupção. A partir do jornalismo
tecnológico, o enfraquecimento das fronteiras entre os gêneros narrativos vai
fomentar a base de uma disseminação da lógica da corrupção em todos os
tipos de notícias de quaisquer temas e em todo os tipos de ficção nacional.
Mudanças recentes no campo jornalístico tais como a fragmentação do
conteúdo da mídia nas sociedades complexas, a informatização e ampliação
do mercado e da concorrência, a interatividade, levaram à autoreferencialidade
na qual, na construção de seu conteúdo, a mídia faz
referência a si mesma, eliminando a linha divisória entre produtor e receptor.
A notícia pode ser criada em pleno fluxo na rede. (Soster, 2009;
Jenkins,2008; Primo, 2011). Estes mecanismos reforçam o tratamento de
qualquer tema pelo viés da corrupção, a partir do enquadramento específico
do assunto, o ângulo da notícia, que vai posicionar a ideia em torno do eixo
da honestidade ou não, da corrupção ou não dos atores envolvidos.
2. Gênero “ficção”
A narrativa ficcional é a forma mais antiga de expressão de que se tem
notícia. Desde a antiguidade a humanidade expressa ideias em sequência
cronológica para todo tipo de finalidade comunicativa. No século XIX surge o
romance escrito e o romance folhetim, cujo desdobramento histórico está na
base da ficção como é conhecida hoje. O cinema, os filmes para TV, as
novelas, as séries e mini-séries, até o vídeo-clips são estruturados dentro do
mesmo formato sequencial. Na comunicação contemporânea as narrativas
ficcionais se multiplicaram vertiginosamente no interior dos veículos de
comunicação seja de forma separada, bem definida em determinados
produtos característicos, seja de forma difusa, menos definida, mas presente
pela intertextualidade com outros gêneros, no conteúdo dos mais diferentes
produtos.
No Brasil a dinâmica dos campos culturais reflete condicionamentos
relevantes também para a ficção nacional. Da mesma forma que acontece
com o campo do jornalismo, a ficção é fortemente ancorada nos campos
econômico e social, no entanto, do ponto de vista de sua origem discursiva, a
sobreposição ou área de interseção do campo da produção midiática ficcional
se dá em primeiro lugar com o campo intelectual, principalmente o literário.
Da mesma forma, quando este campo passa por dificuldades tais como as
atuais geradas no contexto do aumento súbito do mercado consumidor, a
ficção televisiva se comporta mais conforme o campo econômico e social e
menos com o intelectual e literário.
Este recuo para o atendimento de exigências econômicas e sociais
leva a um menor investimento criativo e a um respectivo empobrecimento do
conteúdo. Da ficção escrita para a ficção midiática, há uma perda de
racionalidade, já exaustivamente assinalada pela sociologia da comunicação
clássica, sobretudo a Escola de Frankfurt (Adorno,1987; Horkheimer;1985,
Benjamim;1986), o que facilita o apelo ao mito do Brasil: país da corrupção
no conteúdo:
a. Na busca da audiência (TV) e espectadores (cinema) acaba-se
apelando para o mesmo sensacionalismo do gênero jornalístico.
Não existe história sem o exótico, o diferente, o inabitual e sem
muito sofrimento por parte dos personagens. Na crise, o
investimento no sensacionalismo garante a estabilidade
comercial do veículo.
b. O recurso narrativo mais fácil e garantido do heroísmo versus
vilanismo é estruturado semiologicamente nesta oposição,
necessitando dos estereótipos de papéis sociais para construir
os personagens. Naturalmente ele se presta às oposições
personalistas entre honestos e corruptos, adequando-se muito
bem às matrizes narrativas modernistas e ao “modelo
semiológico Damattiano”.2
2 No livro “A casa e a rua, espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil”, RJ, Guanabara, 1987, Ro–
berto DaMatta desenvolve um modelo das relações de gênero e de classe no Brasil indicando a
presença de esterótipos destas relações na literatura moderna brasileira e nas novelas adaptadas
desta literatura. Alguns destes estereótipos são a “mulher da casa”, a “mulher da rua”, o “malan–
dro” e o “caxias”.
No Brasil temos acesso à produção em ficção de vários países, mesmo
que, no conjunto da mídia nacional a norte americana seja predominante. No
entanto, temos uma vasta produção de ficção nacional cujo carro chefe são
as telenovelas e mais recentemente o cinema nacional. Para estudar o “mito
do Brasil: país da corrupção”, a proposta é tomar como universo a ficção e o
jornalismo, dada a sua representatividade. Juntos, ficção e jornalismo
ocuparam, em 2011, 46% da programação televisiva no Brasil. Definida esta
opção metodológica, é importante sinalizar algumas características da ficção
nacional que dão indícios da presença do referido mito na ideia de identidade
nacional construída na nossa mídia.
A construção do mito no gênero ficcional
Na mídia nacional é comum o tratamento da desigualdade social por
meio de fórmulas narrativas personalistas estáticas. Heróis malandros,
mulheres e homens pobres buscando ascensão social via casamento, casais
românticos em que um dos dois é trânsfuga de classe e o “heroísmo bandido”
no cinema, são padrões, modelos narrativos quase estáticos e estereotipados
do papel e das relações sociais no país real.
Estudos em profundidade realizados para conhecer as práticas de escrita
de roteiros das telenovelas (Junqueira, 2009, 2010) e do cinema (Moreno,
1994) nos levaram a localizar a razão mais séria desta formatação. Ela está
na relação entre os campos de produção ficcional e literário românticomodernista
desde a primeira mídia nacional, a qual, apoiada na literatura e
nas ciências sociais, deu prioridade, alimentou, estimulou, fortaleceu, difundiu
e se constituiu de uma certa percepção do país típica da geração da classe
média de esquerda nos anos 1960 e1970.
Desde sua origem, a ficção midiática nacional apoiou-se na produção
intelectual brasileira, seja nas obras das ciências sociais, seja na literatura.
Nomes como Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Sérgio Buarque, e mais
recentemente Roberto DaMatta foram inspirações trazidas do campo
intelectual para a produção da ficção midática. No campo literário, as grandes
fontes inspiradoras foram principalmente a corrente romântica (com a
influência mais direta de autores como José de Alencar) e a modernista, (com
Jorge Amado e outros). Na obra destes autores, a construção das instituições
nacionais nunca apresentou o perfil necessário para o seu funcionamento
correto dentro de um sistema equilibrado de poderes e de distribuição de
bens. O Estado, o mercado, instituições responsáveis pela regulamentação
social capitalista, sempre foram deformados pelas relações sociais agrárias e
familiares, características do tempo do engenho de açúcar. Tais relações
exercem, na sociedade brasileira, uma função impermeabilizante à
socialização para uma vida social moderna. A obra de DaMatta sintetiza esta
teoria da identidade nacional em categorias mais concretas e objetivas, com
tipos definidos de homens e mulheres presentes na sociedade brasileira, que
estão na literatura modernista e foram reproduzidos na mídia.
O problema social colocado por este contato dos dois campos é o
resultado social diferente em termos de imaginário da identidade nacional
que esta relação produz e difunde nos produtos colocados à disposição para
o consumo nacional. O campo literário atinge população alfabetizada e
suscita reflexão. O midiático reproduz, banaliza, reforça, repete à exaustão,
faz verdadeira lavagem cerebral com os estereótipos e leva a população que
se vê no espelho da mídia a ver-se como ela diz, ou seja, num país
DaMattiano. Ou seja a teoria que era uma crítica séria e embasada na
história nacional na literatura e nas ciências sociais, reproduzida na mídia de
forma massiva e massificante principalmente nas excessivas horas de
novelas na TV e no cinema nacional, se torna uma apologia à falta de ética
nacional, e cristaliza no senso comum, todos os dias e todas as horas, uma
identidade nacional de país corrupto. Alguns mecanismos de construção e
reprodução do mito do Brasil corrupto podem ser identificados nestes
padrões ou elementos fixos das matrizes de escrita de roteiros e
personagens:
a. O herói malandro. Desde “Macunaíma” predomina no país o elogio
do herói malandro como mito do caráter brasileiro. Este mito é reforçado nos
anos 60 pela contracultura e o underground que atuaram no sentido de
contrapor-se ao governo militar e a uma ética ufanista que valorizava o
espaço privado, a família conservadora e a chefia do homem adulto, branco.
Para isso, várias manifestações culturais da classe média passaram a exaltar
a marginalidade e a violência.
“A marginalização é tomada (...) no sentido de ameaça ao sistema;
ela é valorizada exatamente como opção de violência, em suas
possibilidades de agressão e transgressão. A contestação é
assumida conscientemente. O uso do tóxico, a bissexualidade, o
comportamento descolonizado são vividos e sentidos como gestos
perigosos, ilegais e, portanto, assumidos como contestação de
caráter político.” (Holanda, 1992:52)
Neste bojo, outras marginalizações foram valorizadas, inclusive
aquelas tradicionais, sobre a preguiça e a malandragem, contidas nos
romances e nos livros de ciências sociais, e entraram forte no conteúdo das
peças de teatro, na literatura, no cinema e na televisão. Como a ficção
nacional está apoiada nesta produção intelectual e literária, o mito do “heróimalandro”
contaminou a mídia e se alastrou, incorporando definitivamente
esta visão do Brasil e dos brasileiros. Na teledramaturgia, os anos 69 e 70 o
surgimento do “anti-herói” nos roteiros de Dias Gomes (por exemplo Gabriela
cravo e canela, baseada na obra homônima de Jorge Amado) representa um
divisor de águas na história do produto (Campedelli, 1987).
Esta categorização mítica de personagens ficcionais construída a partir
de analogias com as categorias dos estereótipos brasileiros gerencia toda a
dinâmica das relações sociais na representação de sociedade brasileira feita
pela ficção nacional. Os papéis de gênero e de classe já vem prontos,
altamente estereotipados numa lógica perversa de permanência de uma
visão do país daquilo que ele não é mais. As trajetórias de trânsfugas de
classe da favela para os bairros nobres e vice-versa, por exemplo, já são
clássicas nas novelas.
b. A matriz narrativa da corrupção nas telenovelas: No citado
estudo da teledramaturgia (Junqueira, 2009) pode se perceber a
permanência da matriz narrativa do personalismo, cuja marca principal é a
identidade nacional corrupta se reproduzindo no decorrer das décadas a
partir dos anos 70, sendo passada de geração para geração de autores que,
ao trabalhar nos roteiros, mantém a estrutura das dicotomias entre
honestidade e corrupção, valorizando a corrupção e a marginalidade no perfil
psicológico do brasileiro. Autores como Gilberto Braga, por exemplo, ao
apresentar personagens ávidos por ascensão social em suas novelas,
apresenta os trapaceiros e corruptos como os heróis da situação. Os pobres
são pessoas que estão nas histórias para serem usadas pelos ricos e depois
abandonados. Os intelectuais e os telespectadores das classes mais altas
viram anti-maniqueísmo e sofisticação nos roteiros, e Gilberto Braga foi
considerado um mestre das telenovelas. Mas o verdadeiro resultado social de
sua obra foi o perverso reforço perceptivo, sentimental e moral, uma
verdadeira “lavagem cerebral” com o apoio e o aplauso de toda a classe
média para que todas as classes pensassem cada vez mais nossa
sociedade como um lugar de relações medievais que nunca vão mudar.
a. O herói bandido no cinema: Desde a cinédia até os filmes chamados
“de retomada”, passando pela “estética da fome” de Glauber Rocha, e pela
obra de Nelson Rodrigues, uma matriz semelhante de escrita de roteiros
reproduz no cinema nacional a perspectiva da inferioridade nacional e o mito
da corrupção endêmica no Brasil. Filmes como “O Bandido da luz vermelha”,
a recuperação histórica da imagem de Lampião nos anos 90 e a imagem da
polícia e da violência glorificadas em “Tropa de Elite” até o mais atual filme
sobre a história do doente mental que pensava ser o filho do dono da Gollinhas
aéreas. O estudo aprofundado da matriz da identidade nacional
baseada no mito do Brasil: país da corrupção no cinema ainda está para ser
feita, mas há abundância de indícios e dados que levam a pensar em
matrizes bem próximas às detectadas na “história” dos roteiros das
telenovelas, e consequentemente, à presença forte do mito do Brasil corrupto
também no cinema.
Hipótese
Jornalismo e ficção são, antes de mais nada, manifestações
superestruturais do campo econômico (Bourdieu, 1997). No entanto, no
primeiro as determinações deste campo são suavizadas pela necessidade de
conexão harmônica sobretudo com o campo político. Já na produção
midiática de ficção, as determinações do campo econômico são suavizadas
pela necessidade de conexão harmônica com o campo intelectual via
“cultura”. Esta diferença influencia na forma como o mito do Brasil corrupto se
manifesta e se reproduz em cada uma. De onde vem e como é feito o
trabalho que permite a permanência das matrizes em cada um. Nos
momentos de crise, há um recuo de ambas para o campo econômico. Pode
ter havido um momento de forte crise que “traumatizou”, ou paralisou a
evolução da reflexão do país sobre si mesmo, e a classe média está
fortemente implicada nesse processo, porque é nela que estiveram
posicionados os intelectuais e artistas responsáveis pela reflexão que deveria
renovar o imaginário nacional no que se refere à identidade nacional.
O fortalecimento dos contatos entre o campo intelectual e o literário
nas décadas de 1960 e 1970 geraram, através da mídia, uma valorização
cultural da marginalidade. No caso da teledramaturgia, este fato é
exemplificado na necessidade de capital simbólico para fundamentar suas
histórias, para falar do Brasil num contexto de repressão política. O campo
intelectual e acadêmico de esquerda por um lado, tinha o interesse de
difundir suas teorias junto ao senso comum, e o desenvolvimento desse
trabalho através das artes era interessante tanto eticamente quanto em
termos práticos, num contexto de regime militar, onde a censura atingia a
todos. De outro lado porque foi seduzido pela temática da marginalidade nos
termos colocados por Hollanda (1992). Em resumo, a valorização da
marginalidade seria um capital simbólico de contato entre campos culturais,
absorvido pela ficção midiática. De acordo com estes fatos, apresentamos a
seguinte hipótese para direcionar a investigação:
A permanência das matrizes de reprodução do mito do Brasil: país da
corrupção na mídia nacional seriam originados nas relações subjetivas de
interinfluência entre os campos midiático, político, intelectual e literário, por
força de acontecimentos históricos nos anos 1950-1960 que teriam causado
um forte impacto na classe média a ponto de causar a paralização da
evolução natural da autoimagem nacional (para a nossa real condição de
país caracterizado por relações sociais modernas) devido a causalidades
complexas, entrelaçadas. Estes impactos formataram negativamente o
imaginário cultural sobre a identidade nacional, que ficou bloqueada a partir
de então, sendo reproduzida sem grandes mudanças até os dias de hoje.
Três destas causalidades podem ser vislumbradas:
Política: No golpe militar houve um recuo do campo midiático para as
determinações econômicas, traduzida no âmbito do trabalho jornalístico e de
criação ficcional, através do reforço das matrizes de conteúdo ficcional
antiquadas, ultrapassadas, que não correspondiam mais ao estado de
desenvolvimento da sociedade brasileira. Uma espécie de efeito de trava
(Elias, 1994; Junqueira, 2003) teria acontecido na consciência coletiva da
classe média, que por meio de seu trabalho ideológico, contaminou toda a
sociedade.
Social: A urbanização muito rápida e desordenada do Brasil, sem apoio em
instituições coesas constitui um cenário de difícil ação positiva para a classe
média que , tendo comprado a ideia da inferioridade do Brasil diante dos
países desenvolvidos, criou sobre si mesma um sentimento de impotência
coletivo, dando lugar ao fenômeno que Elias chamou de “efeito de trava” e
impedindo o brasileiro de ver-se como ele realmente é e de assumir sua
condição social de homem moderno, e consequentemente sua função de
transmitir essa ideia ao conjunto da sociedade. Para produzir a ideia de
modernidade na mídia, a classe média dos anos 60 teria que ter uma
autoimagem positiva. Eles não tinham esse sentimento que naquele contexto
constituía um importante capital sócio-psicológico e moral.
Religiosa: A quebra da hegemonia da religião católica na representação da
configuração da vida social no Brasil, ocasionando uma mudança de
paradigma nos valores mal absorvida pela mídia, que manteve na criação
ficcional a ética católica do sofrimento nas interações sociais nacionais de
todo tipo. Mais uma vez a postura de autoinferioridade da classe média
(incorporada e inconsciente) atuou no reforço, ao invés do rompimento, com
a doxa do sofrimento de ordem religiosa que permeava as tensões
psicológicas no interior de nossas relações sociais. A modernidade deveria,
em tese, enfraquecer este tipo de tensão, reforçando a individualidade e
imparcialidade nas relações.
A investigação fará a crítica da consciência social da classe média da
época que, comprando a ideia da substancialização dos países centrais
como superiores, sem perceber, acabou colocando em funcionamento uma
máquina de reprodução de uma ideologia perversa sobre o Brasil que é o
fazer acreditar que o país não tem capacidade de mudança para melhor, a
despeito da mudança real para melhor. Esta classe média ainda se vê como
separada, pior ainda, como vítima da engrenagem psico-social excludente
que ela mesma ajudou a produzir.
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