23 de jun. de 2017

Como o Brasil pode responsabilizar agentes da ditadura

Como o Brasil pode responsabilizar agentes da ditadura

Apesar de a lei impedir punição a agentes da repressão no Brasil, Ministério Público Federal atua para investigar crimes

http://www.nocaute.blog.br/brasil/como-o-brasil-pode-responsabilizar-agentes-da-ditadura.html
*Por Daniella Cambaúva
Se existiu uma Comissão da Verdade no Brasil, é porque Inês Etienne Romeu denunciou as torturas que aconteceram na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). É o que argumentava Maria Amélia de Almeida Teles, também vítima da ditadura, quando defendia a instalação de uma placa que homenageasse Inês no prédio do Arquivo Histórico de São Paulo.
Inês Etienne Romeu é a única sobrevivente da Casa da Morte, o maior centro de prisão clandestina e de tortura de ditadura de que se tem conhecimento no Brasil. Em 1971, passou 96 dias ali. Depois de libertada – foi a última presa da ditadura a ser libertada – e anistiada de uma condenação de prisão perpétua, em 1979, denunciou o cativeiro.

Condenada à prisão perpétua, Inês foi a última presa da ditadura a ser anistiada em 79
Deve-se a Inês todo o conhecimento que se tem sobre o que aconteceu na Casa da Morte.
Ela testemunhou inúmeras vezes, entre 1979 e 2014; à Comissão Nacional da Verdade, à Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ao Ministério Público Federal e à Ordem dos Advogados do Brasil.
O caso de Inês consta na publicação “Crimes da ditadura”, lançada neste sábado (24/6), no Memorial da Resistência, em São Paulo. O evento conta com a participação de representantes do MPF e de Maria Amélia Teles, Marcelo Rubens Paiva, Victória Grabois e Iara Xavier Pereira, todos vítimas e familiares de vítimas do regime.
“Crimes da ditadura”, já em sua 2ª edição, é um relatório, publicado como livro, produzido pelo Ministério Público Federal das atividades sobre investigações criminais feitas entre 2013 e 2016 sobre graves violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado brasileiro entre 1964 e 1984.
Apesar de a lei de anistia, de 1979, impedir a punição daqueles que praticaram crimes durante a ditadura, o MPF investiga alguns casos para descobrir mais informações sobre torturas e desaparecimentos, e apresentar ações na Justiça para responsabilizar quem cometeu as violações.”A fim de realizar o dever de contribuir para a justiça, a memória e a verdade sobre esse período histórico”, explica o MPF.
Até a data de conclusão do relatório, dezembro de 2016, o Ministério Público Federal havia proposto 27 ações penais contra 47 agentes envolvidos em 43 crimes cometidos contra 37 vítimas.
São listados 11 homicídios, 9 crimes por falsidade ideológica, 7 sequestros, 6 ocultações de cadáver, 2 quadrilhas armadas, 2 fraudes processuais, 1 estupro, 1 favorecimento pessoal, 1 transporte de explosivos, 1 lesão corporal e 2 abusos de autoridade.
A ação sobre o caso de Inês foi apresentado pelo MPF em dezembro de 2016 à 1ª Vara Federal de Petrópolis. A denúncia foi rejeitada em 8 de março de 2017. O MPF já recorreu ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região e aguarda a resposta.

Casa da Morte: Centro clandestino de tortura e desaparecimento
“Na versão do tenente-coronel Paulo Malhães (conhecido torturador e agente do CIE, falecido em 2014), no jargão do regime militar, a Casa da Morte era denominada de centro de convivência e usada para pressionar os presos a mudarem de lado e passarem a ser informantes infiltrados”, segundo texto do MPF. Para Malhães, que atuou na Casa da Morte, o erro da ditadura foi ter deixado Inês ter saído viva de lá.
Como Inês foi a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, seu testemunho possibilitou a identificação da rua, da casa, do proprietário e de alguns agentes, dos quais ela sabia o codinome.
O que consta no livro “Crimes da ditadura” sobre Inês é resultado de uma série de investigações feitas pelo MPF, usando provas orais e documentais. As imputações são estupro (artigo 213 do Código Penal) e sequestro qualificado (artigo 148).
A Casa da Morte de Petrópolis é considerada um centro de prisão clandestino porque não estava registrada oficialmente enquanto delegacia ou qualquer instituição vinculada ao Estado brasileiro, embora tivesse sido criada e mantida pelo CIE (Centro de Informações do Exército).
Segundo o relatório da CNV, o proprietário da casa era Mario Lodders, que havia empresado o imóvel, em 1971, para o ex-interventor de Petrópolis, Fernando Ayres da Motta, que cedeu o lugar para a repressão.
Localizada em uma rua pouco movimentada em Caxambu, um bairro residencial de classe média da cidade de serra fluminense, a casa não chamava atenção dos vizinhos. Naquele bairro, em algumas das casas, sequer há moradores permanentemente. São residências usadas em temporadas e fins de semana. A probabilidade de que alguém escutasse os gritos das vítimas era mínima.
Nem a Inês, nem a qualquer das pessoas que passou pela Casa da Morte era permitido o contato com familiares e amigos.
“Além das torturas reconhecidamente aplicadas como padrão aos presos políticos do regime militar – choques elétricos, pau de arara, cadeira do dragão – Inês ainda sofreu com a maldade de seus carcereiros, que a maltratavam apenas para seu divertimento. No inverno de Petrópolis, onde a temperatura podia chegar a menos de 10º C, era obrigada pelos carcereiros a deitar nua no cimento molhado”, descreve o MPF.
Tentou se matar quatro vezes, mas sempre foi mantida viva por médicos militares. Em uma delas, a punição pelo suicídio frustrado foi intensa. “Fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, “telefone”, palmatória (…) A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais”, relatou.
Em agosto de 1971, em um intervalo de cinco dias, foi estuprada duas vezes por “Camarão”, codinome de Antonio Weiner Pinheiro Lima, o caseiro do lugar. “Era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros”.
Em diversas investigações, o MPF tentou identificar quem eram os agentes da Casa da Morte. Foram muitas as buscas até descobrir a identidade do Camarão, considerado um nome fundamental para descobrir fatos novos sobre o lugar e, principalmente, quem foram as outras vítimas – é possível que mais de 20 pessoas desaparecidas possam ter sido assassinadas ali.
A primeira pista apareceu em uma agenda telefônica de Malhães: a anotação “Camarão”, acompanhada de um número de telefone fixo. Depois de uma série de buscas e cruzamentos de dados, chegou-se a Antonio Wainer Pinheiro Lima.
Com uma ficha de antecedentes criminais que incluíam tentativa de homicídio, furto, lesão corporal, porte de arma, na democracia, Antonio já não queria mais o apelido Camarão, devido ao risco de denunciar seu passado. Preferia “Neir”, diminutivo de Wainer.
Inês identificou e confirmou que era ele mesmo o Camarão. Intimado pelo MPF para depor, fugiu de sua casa em Araruama (RJ). Foi encontrado em Tauá, no interior do Ceará, e conduzido coercitivamente. Confessou ter sido o caseiro, mas negou ter praticado qualquer crime.
Ela conseguiu denunciar também o médico e ex-militar Amílcar Lobo, responsável por ela na casa. De codinome “doutor Carneiro”, ele teve o registro cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro.
Comissão Nacional da Verdade 

Celina acompanha a irmã em depoimento à CNV. (Foto: Paula Macedo /ASCOM-CNV)
Na CNV, Inês falou da perseguição que sofreu pelo Estado brasileiro desde 1964.
No dia do depoimento na CNV, uma de suas irmãs, Celina Romeu, declarou: “a sua história é de heroísmo, você não tem mais o que temer. Você venceu”.
Mineira de Pouso Alegre, Inês era formada em história e bancária em Belo Horizonte (MG).
Foi militante do Sindicato dos Bancários e do Movimento Estudantil. Depois do golpe, foi para a clandestinidade e para a luta armada.
Acabou presa em 5 de maio de 1971, levada para o DOPS e, de lá, para Petrópolis.
Da Casa da Morte saiu viva por aceitar a proposta de se tornar uma agente infiltrada da repressão em  organizações de guerrilha urbana. Para garantir que não seriam traídos, os repressores forçaram Inês a assinar acusações contra uma de suas irmãs, que sequer exercia alguma militância política. Também foi obrigada a gravar um vídeo em que confessava ser agente do governo.
Quando saiu de lá, foi entregue na casa de uma de suas irmãs, em Belo Horizonte, pesando 32 quilos. A família a levou para um hospital, onde foi presa oficialmente pela ditadura e passou mais oito anos detida.
Em 2003, aos 61 anos, sofreu um atentado em casa. Foi encontrada caída e ensanguentada, com traumatismo cranioencefálico por golpes múltiplos diversos, depois de receber a visita de um marceneiro contratado para um serviço doméstico. Sobreviveu, mas precisou fazer uma série de tratamentos para recuperar a fala e as funções motoras.
Inês morreu dormindo, em sua casa, em Niterói, aos 72 anos, em 27 de abril de 2015.

Assista a entrevista com o procurador da República, Sergio Suiama. Por Manuela Azenha
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