4 de mai. de 2018

A gentrificação do Horto Florestal do Rio de Janeiro. - Editor - É A ESPECULAÇÃO EXPULSANDO OS MAIS VULNERÁVEIS. DEMOCRACIA URBANA.

A gentrificação do Horto Florestal do Rio de Janeiro

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O Horto Flo­restal, bairro da zona sul do Rio de Ja­neiro, vem pas­sando por um pro­cesso de to­mada vi­o­lenta de terras co­muns. Esse pro­cesso foi te­o­ri­zado por Klaus Dörre, so­ció­logo alemão, que ela­borou um mo­delo para se com­pre­ender di­nâ­micas em que o ca­pi­ta­lismo de­pende da ex­pro­pri­ação de es­paços que pro­duzem pouco valor para per­mitir a ex­pansão da pró­pria acu­mu­lação do ca­pital.

Dörre ana­lisa as formas de acu­mu­lação pri­mi­tiva na con­tem­po­ra­nei­dade, ob­ser­vando como o con­ceito pode ser uti­li­zado para en­ten­dermos a di­nâ­mica do atual ca­pi­ta­lismo fi­nan­ceiro. Como o Rio de Ja­neiro vem pas­sando por pro­cessos muito fortes de ex­pli­ci­tação de con­ceitos e está sendo atin­gido di­re­ta­mente pelas di­nâ­micas do ca­pi­ta­lismo global, é pre­ciso que nos de­bru­cemos sobre a aná­lise do so­ció­logo para que en­ten­damos me­lhor de que forma esse pro­cesso se dá lo­cal­mente.

Em re­sumo, Dörre ana­lisa a pre­ca­ri­zação do tra­balho para ex­plicar a Land­nahme (“to­mada de terras”) no ca­pi­ta­lismo fi­nan­ceiro. A Land­nahme, para o autor, é a forma atual de acu­mu­lação pri­mi­tiva, e ele a en­tende como um me­ca­nismo de au­to­es­ta­bi­li­zação do ca­pi­ta­lismo, ou seja, como um pro­cesso per­ma­nente de de­sen­vol­vi­mento do modo de pro­dução ca­pi­ta­lista, sem o qual ele não é capaz de se re­a­tu­a­lizar e se manter, visto que existe uma ten­dência de ins­ta­bi­li­dade sis­tê­mica do ca­pital.

Para re­solver o pro­blema da so­bre­a­cu­mu­lação, o ca­pi­ta­lismo pre­cisa se au­to­negar, ou seja, criar um Es­tado que in­vista po­lí­tica e eco­no­mi­ca­mente, fe­rindo o ideal de “equi­lí­brio de mer­cado”, na cons­trução de uma di­a­lé­tica in­terno-ex­terno, isto é, de re­la­ções de troca com o es­paço não ca­pi­ta­lista.

Dörre com­pre­ende essa to­mada do es­paço não ca­pi­ta­lista como um pro­cesso per­ma­nente, e não como um pro­cesso es­go­tável que le­varia ao fim do modo de pro­dução ca­pi­ta­lista. Isso porque, para ele, essa di­a­lé­tica in­terno-ex­terno é um pro­cesso de pro­dução e des­truição de es­paços, ou seja, de pro­dução ativa de ex­ternos para a re­a­li­zação de ca­pital ex­ce­dente e cri­ação de formas de acu­mu­lação. A Land­nahme, então, é um pro­cesso de vi­o­lência si­len­ciosa, onde pre­ca­ri­zação e ex­clusão ga­nham mais im­por­tância es­tra­té­gica do que a bar­bárie ex­plí­cita.

Essas di­fe­rentes es­tra­té­gias de pro­dução ativa do Outro sobre o qual ha­verá ex­pro­pri­a­ções ca­pi­ta­listas que pos­si­bi­litam a acu­mu­lação do ca­pital são o que o autor chama de Land­nahme. Para ele, a partir da dé­cada de 70, com a crise do For­dismo, foi re­to­mada a Land­nahme de for­mação de exér­cito in­dus­trial de re­serva e in­te­gração de mer­cados ex­te­ri­ores para ex­pansão do lucro. Assim, vimos a ten­dência à fi­nan­cei­ri­zação do ca­pi­ta­lismo, pri­va­ti­zação de ins­ti­tui­ções pú­blicas e pro­dução e apro­vei­ta­mento da pre­ca­ri­e­dade, de­sem­prego e de­si­gual­dade cres­centes como formas de acu­mu­lação.

O caso do Horto, por­tanto, é um exemplo gri­tante dessa nova fase de Land­nahme. Dois mil mo­ra­dores do bairro, apro­xi­ma­da­mente, estão sendo ame­a­çados de re­moção, num pro­cesso que dura já cerca de trinta anos e se in­ten­si­ficou nos úl­timos tempos. Atu­al­mente, 215 ações de rein­te­gração de posse já tran­si­tadas em jul­gado podem ser exe­cu­tadas a qual­quer mo­mento e co­locam as mais de 500 fa­mí­lias em cons­tante es­tado de alerta.

Si­tuado em uma área es­pe­ci­al­mente bem lo­ca­li­zada e pre­ser­vada do Rio de Ja­neiro, o bairro é ocu­pado por uma po­pu­lação que tem sua origem com a vinda de mão de obra es­crava para a cons­trução do parque do Jardim Bo­tâ­nico na se­gunda me­tade do sé­culo 19 e, na pas­sagem do sé­culo 19 para o 20, com a for­mação de vilas de ope­rá­rios da Com­pa­nhia de Sa­ne­a­mento e da fá­brica de te­cidos Amé­rica Fa­bril. Desde então, con­vivem em har­monia com o meio am­bi­ente, sendo re­co­nhe­cidos pela Unesco como uma co­mu­ni­dade bem in­te­grada ao local. Além disso, a área ur­bana do Horto cresceu em pro­porção muito menor que o res­tante da ci­dade, in­clu­sive que o bairro vi­zinho, o Jardim Bo­tâ­nico.

Em 2006, a Se­cre­taria de Pa­trimônio da União (SPU), em par­ceria com a Fa­cul­dade de Ar­qui­te­tura e Ur­ba­nismo da Uni­ver­si­dade Fe­deral do Rio de Ja­neiro (FAU-UFRJ), ini­ciou o pro­cesso de re­gu­la­ri­zação fun­diária do local, com am­pli­ação da área do Ins­ti­tuto de Pes­quisas do Jardim Bo­tâ­nico (IPJB) que, até então, era de apenas 54 hec­tares dos 142 que per­tencem à União.

A co­mu­ni­dade do Horto, por sua vez, seria aden­sada, com al­gumas re­a­lo­ca­ções e de­so­cu­pa­ções de áreas de risco. O pro­jeto le­varia em con­si­de­ração todos os in­te­resses em jogo e o con­flito his­tó­rico entre o IPJB e os mo­ra­dores do bairro po­deria, fi­nal­mente, ser dis­sol­vido. Em 2012, porém, a As­so­ci­ação de Mo­ra­dores do Jardim Bo­tâ­nico (AMA-JB) en­trou com um pro­cesso no Tri­bunal de Contas da União (TCU) que pa­ra­lisou a re­gu­la­ri­zação fun­diária e, jul­gado, con­feriu o do­mínio pleno dos 142 hec­tares da União ao IPJB.

Cla­ra­mente o que se vê, no caso, é a pro­dução ativa de um Outro, com a imagem di­fun­dida pela grande mídia e pelo senso comum de que os mo­ra­dores do bairro são in­va­sores da área do IPJB, des­matam e po­luem a re­gião e, até mesmo, com a cons­trução da imagem de um local com alta taxa de cri­mi­na­li­dade, o que ja­mais foi com­pro­vado. Assim, há a fa­bri­cação da imagem de uma área de­gra­dada com mão de obra ociosa, como diz Dörre.

Tal pro­dução é im­por­tante para que se con­fi­gure uma nova di­nâ­mica de acu­mu­lação. Nos úl­timos anos, o Es­tado tem sido con­dutor ativo dessa di­nâ­mica, já que as terras per­tencem à União. Além disso, as inú­meras de­ci­sões ju­di­ciais, tanto do TCU quanto as ações de rein­te­gração de posse, ra­ti­ficam esse dis­curso e ca­mi­nham no sen­tido de abrir es­paço para a re­a­li­zação do ca­pital no local.

O Horto, antes mesmo das re­mo­ções acon­te­cerem de forma plena, já vem se trans­for­mando e se ade­quando ao ca­pi­ta­lismo fi­nan­ceiro, sendo ní­tido o pro­cesso de gen­tri­fi­cação no bairro. Em 2016, a única linha de ônibus que fazia a in­te­gração dos mo­ra­dores do Horto com o centro da ci­dade e com a Zona Norte teve o seu tra­jeto cor­tado pela ad­mi­nis­tração mu­ni­cipal para Horto-Bo­ta­fogo, e a de­cisão só foi re­ver­tida pela mo­bi­li­zação e en­ga­ja­mento dos mo­ra­dores.

Pa­da­rias e pe­quenas vendas do bairro, antes po­pu­lares, foram re­for­madas e se ade­quaram ao pa­drão dos bairros de classe média, com au­mento con­si­de­rável no preço dos pro­dutos, além de es­ta­be­le­ci­mentos novos como ate­liês, res­tau­rantes e lojas de pro­dutos para ci­clistas. Assim, o perfil dos mo­ra­dores de al­gumas re­giões do bairro tem se al­te­rado para uma po­pu­lação de classe média e classe média alta, em­bran­que­cida.

Fora isso, grande parte dos tra­ba­lha­dores do IPJB é de fun­ci­o­ná­rios ter­cei­ri­zados, além de exis­tirem inú­meros es­ta­be­le­ci­mentos co­mer­ciais dentro do Ins­ti­tuto, como lojas, es­ta­ci­o­na­mento, pa­daria gourmet e casa de es­pe­tá­culos. Sem des­me­recer a qua­li­dade da pes­quisa efe­ti­va­mente re­a­li­zada, é im­por­tante que se leve essas ques­tões a de­bate.

O Grupo Globo, prin­cipal pro­pa­gador do dis­curso de pre­ca­ri­zação do local e de que os mo­ra­dores da co­mu­ni­dade se­riam “in­va­sores” da re­gião, também tem ter­renos no bairro. Foi no­ti­ciado pelo jornal da cor­po­ração, em março deste ano, que uma área de mais de 250 mil me­tros qua­drados foi doada pelos ir­mãos Ma­rinho ao Ins­ti­tuto de Ma­te­má­tica Pura e Apli­cada (IMPA), que tem sua sede no bairro, para a cons­trução de um novo campus em 2021, fi­nan­ciada pelo Mi­nis­tério da Edu­cação.

Na re­por­tagem, termos como “baixo im­pacto am­bi­ental”, “in­te­gração à na­tu­reza” e “gestão in­te­li­gente” con­trastam com a forma com que os meios de co­mu­ni­cação se re­fe­riam às ha­bi­ta­ções po­pu­lares na época em que a re­gu­la­ri­zação fun­diária es­tava sendo pro­posta com grande su­porte téc­nico pela SPU e pela FAU-UFRJ.

Em suma, o bairro tem sido res­sig­ni­fi­cado com a cri­ação de um novo es­paço al­ta­mente ren­tável e co­mer­ci­a­li­zável, pos­si­bi­li­tando es­pe­cu­lação imo­bi­liária e fluxo de ca­pital, com maior pos­si­bi­li­dade de in­ves­ti­mentos lu­cra­tivos. E a per­ma­nência de sua po­pu­lação his­tó­rica está cada vez mais ame­a­çada, fa­zendo com que se trans­forme de­fi­ni­ti­va­mente em mais um bairro de classe média alta da zona sul ca­rioca. Assim se dá a nova acu­mu­lação pri­mi­tiva no Horto Flo­restal do Rio de Ja­neiro.

Re­fe­rên­cias bi­bli­o­grá­ficas:

AMAHOR. Vídeo conta a his­tória do Horto Flo­restal do Rio de Ja­neiro. Dis­po­nível em: http://​www.​amahor.​org.​br/​5278. Acesso em: abril 2018.

DÖRRE, Klaus. A nova Land­nahme. Di­nâ­micas e li­mites do ca­pi­ta­lismo fi­nan­ceiro. Tra­dução de Ca­ro­lina Ves­tena, Iasmin Góes e Gui­lherme Leite Gon­çalves. Re­vista Di­reito e Práxis, Rio de Ja­neiro, vol. 6, n.3, p. 536-603, 2015. Dis­po­nível em: http://​www.​e-​pub​lica​coes.​uerj.​br/​index.​php/​rev​ista​ceaj​u/​article/​view/​19233. Acesso em abril 2018. DOI: 10.12957/dep.2015.19233.

HORTO FICA. Dis­po­nível em http://​www.​hor​tofi​ca.​com.​br. Acesso em: abril 2018.

MUSEU DO HORTO. Fá­brica de Te­cidos Ca­rioca. Dis­po­nível em: http://​www.​mus​eudo​hort​o.​org.​br/​F%C3%A1b​rica​_​de_​Tecidos_​Carioca?​id=1097. Acesso em: abril 2018.

O GLOBO. Ins­ti­tuto de Ma­te­má­tica Pura e Apli­cada terá novo campus em 2021, 23 de março de 2018. Dis­po­nível em: https://​oglobo.​globo.​com/​rio/​ins​titu​to-​de-​mat​emat​ica-​pura-​apl​icad​a-​tera-​novo-​campus-​em-​2021-​22519681. Acesso em: abril 2018.

VIGNA, Anne. No Rio, co­mu­ni­dade fun­dada nos tempos da es­cra­vidão luta para ficar. Pú­blica: agência de jor­na­lismo in­ves­ti­ga­tivo, 16 de março de 2017. Dis­po­nível em: https://​apu​blic​a.​org/​2017/​03/​no-​rio-​com​unid​ade-​fundada-​nos-​tempos-​da-​esc​ravi​dao-​luta-​para-​ficar. Acesso em: abril 2018.

Nina Zur é poeta e gra­duada em Di­reito pela UERJ
http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13236-a-gentrificacao-do-horto-florestal-do-rio-de-janeiro

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