E que eu não vou ser nunca. Jamais. Em tempo algum
Ilustração: James Vaughan
Não, eu não posso achar que um pênis é apenas um pênis. Eu tenho que achar que o órgão sexual masculino em uma exposição de arte que recebeu uma criança com sua mãe é pedofilia. Nossa, se eu não achar isso sou uma péssima mãe, que precisa perder a guarda do filho, aliás. Haja ginástica mental para acompanhar esse raciocínio e seus desdobramentos, mas vamos lá.
Eu também não posso achar que a música da Anitta não é apropriada para crianças sob pena de entrar em contradição com o raciocínio avacalhadamente expandido do parágrafo anterior. Mas se você acha que o ‘Show das Poderosas’ não é música para crianças, uma exposição de arte com um peladão é?, ahaha, te peguei, sua esquerdalha. Desatar esse nó górdio da indigência mental demanda tempo e paciência.
A exposição do MAM não era para crianças, mas recebeu algumas cujos pais acharam por bem levá-las. No mínimo porque, ao se depararem com uma performance de um artista nu, logo lembraram que um pênis é apenas um pênis e que pedofilia, segundo Antonio Houaiss (filólogo e autor de um dicionário, tá? Não é um pensador comunista-petista-vermelho e dicionários são livros aceitos em todos os países capitalistas, ok?) não tem a ver com o órgão sexual masculino fora da cueca, mas sim é a “perversãoquelevaumindivíduoadultoasesentirsexualmenteatraídoporcrianças” e a “práticaefetivadeatossexuaiscomcrianças”.
Não, o homem não estava ali pelado esperando pelas criancinhas e nem os pais saíram de casa para mostrar aos filhos um adulto despido. Eles foram ao Museu de Arte Moderna, uma das mais importantes instituições culturais do Brasil e encontraram, entre uma sala de exposição e outra, um artista fazendo, segundo o MAM, uma “leitura interpretativa da obra ‘Bicho’, de Lygia Clark”. As crianças viram a performance, uma delas encostou no pé do artista (e não no pênis, como os compartilhadores seriais de fake news disseram por aí) e a vida seguiu. Na verdade deveria ter seguido, né? Mas, como havia imagens dessa criança em “situação de risco”, alguém muito preocupado com o futuro dela achou por bem compartilhar o vídeo nas redes em nome da “moral e os bons costumes” e para salvar o “país de uma agenda de esquerda”. Salvaguardaram o Brasil, os princípios, mas não a identidade da menina. (Ah, e nem a imagem do meu filho, já que algumas fotos dele que estão no meu Instagram, agora fechado para quem não é amigo, também foram atacadas – mas os direitos à imagem do meu filho são apenas detalhes desimportantes nessa luta por um país ameaçado pela“ditadura da esquerda que apóia a pedofilia”).
Escultura Mochica do Museu Nacional de Arqueologia, Antropologia e História do Peru
Eu já estava na mira do ódio porque apoiei a exposição do QueerMuseu, cancelada em Porto Alegre. Como uma mãe cogita a ideia de levar o filho a uma exposição maldita que fala sobre “crianças viadas”? Ora, ora, uma mãe que quer que o filho conheça arte leva ele a toda parte: para ver as obras da Bia Leite no Santander Cultural, a Monalisa no Louvre, os Toulouse Lautrec no MASP ou os reis fálicos da cultura Mochica onde quer que estejam expostos. Não serão as irmãs Cajazeiras do MBL ou bots sem rosto do Twitter que vão me dizer o que é arte, o que é literatura e onde eu posso ou não levar meu filho. O fato dele saber que os antigos habitantes do Peru veneravam o órgão sexual masculino vai fazer apenas que entenda o que é o falocentrismo, olha o Houaiss aqui para ajudar de novo. É a “doutrinaoucrençacentradanofalo, naconvicçãodasuperioridadedosexomasculino”. Um pênis é apenas um pênis. Um órgão que é extremamente superestimado, precisava contar isso também para vocês.
O argumento que pretendo desenvolver neste estudo, é que, para se pensar na tradição africano-brasileira, como forma verdadeiramente expressiva na criação artística, torna-se necessário levar em consideração, os valores da cultura em questão. Considerando-a como agente de integração que pode estabelecer uma coerência, uma organicidade entre a tradição de um povo, e o conhecimento da arte teorizado, possibilitando o enriquecimento da nossa cultura.
Trata-se da busca na criação artística, e consequentemente a origem de uma proposta pluricultural na dança-arte-educação brasileira, através da história do indivíduo e da mitologia. Examinando também nesta experiência, a possibilidade de uma base de expressão, dentro de uma perspectiva histórica, religiosa, artística e intuitiva.
Foi fundamental compreender o processo, esta busca de espaço, a fim de torná-lo mais significativo aos artistas e educadores brasileiros, os quais se comunicam com a sociedade, no decurso de uma identidade cultural, ou aqueles que buscam uma educação pluricultural.
“Transformar a educação atual, defendendo uma educação para todos, que respeite a diversidade, as minorias étnicas, a pluralidade de doutrinas, os direitos humanos, eliminando estereótipos, ampliando o horizonte de conhecimentos e de visões de mundo.” (GADOTTI, 1993, p.1)
Pondero, entre outros atributos, a performance como vivência pessoal, aquela que tem me proporcionado a consciência corporal do meu ser, e a histórica do que sou. Foi sempre na tradição africano-brasileira que busquei inspiração, informação, tanto no aspecto profissional quanto na filosofia de vida. Esta expressão estabeleceu a origem da hipótese de criação, de uma expressão artística no cenário da dança-educação brasileira.
Percebo a importância da contribuição, e ao mesmo tempo, o desafio e complexidade de fazer-me compreendida, como uma artista-educadora, nos parâmetros do universo acadêmico. O aspecto fundamental seria, ter todo o processo consciente e informado. Foi necessário para elaborar e divulgar o trabalho, conhecer, investigar a realidade do universo ao qual tinha experienciado. Nesta aventura criativa, procurei respeitar os espaços, ou seja, refletindo sobre a função do dançar nos rituais dos terreiros de orixás, e sobre o que seja dançar, nas composições coreográficas teatrais.
Discernindo a vivência intuitivo-criativa da vivência religiosa neste universo. Embora nos dois contextos as suas compreensões sejam realizadas pelo seu próprio conteúdo, na arte, a criação e na religião a razão do mito. Todavia, na criação, o artista une-se à ciência através da sua capacidade intelectual, abstrai da forma real um novo conceito estético-simbólico, dominando seu instrumento através da técnica, experiências acumuladas, emoção, sensibilidade e profunda consciência do seu ser.
Enquanto que no contexto religioso, os mitos transmitem os valores, os princípios, as crenças, os ritos reforçam, moldam a vida da comunidade, onde a função da arte é de presentificar a força da natureza ou a de um ancestral. O mito é compreendido, na atividade ritual na tradição Yorubá, para reconstruir a vida no terreiro, arrebanhando um sistema de valores míticos e que influenciam os pensamentos, a natureza e a forma da cultura africano-brasileira.
O vínculo com o tema escolhido, um dos mitos de origem do tambor bàtá, poderia parafrasear Joseph Campbell, fui capturada por este, e então o que ele pode fazer por mim de fato! (CAMPBELL, 1992, p. 3)
PASSOS DA CRIAÇÃO POÉTICA
“… O artista se vê, naturalmente a sem quaisquer dúvidas como algo mais que um narrador ou intérprete: acima de tudo, ele é um indivíduo que decidiu formular para os outros, com absoluta sinceridade, sua verdade sobre o mundo…” (TARKOVSKI, 1990, p. 119)
Embora, que no sentido de tornar claro o discurso, estou expondo o processo como forma direta, mas é impossível afirmar os momentos específicos nos quais muitas idéias iam surgindo enriquecendo a experiência e os momentos que outras eram removidas por falta de consistência do argumento corporal e intelectual. Ou seja, houve, toda uma “ginga” um “negaceio”, “vai-mas-não-vai”. Um jogo de cintura, para dar origem à “esperteza” do trabalho.
Primeiro Passo: Saturação
Para se pensar na criação cênica dessa matéria cultural, procurei assimilar de forma teórica e prática, o modo que os fenômenos se configuravam, ou seja, as relações dentro do conteúdo significativo do universo bàtá. Procurando trabalhar o sentido prático da vivência como protagonista da ação.
O bàtá é dança dramática religiosa, pertencente a um dos numerosos e mais antigos grupos étnicos do sudoeste da Nigéria, no continente Africano. Os Yorubás possuem movimentos vigorosos, espasmódicos, percussivos, vibratórios produzindo sensações de tensão e suspense, representa no seu aspecto mítico o relâmpago, o trovão, natureza simbólica do orixá Xangô.
Na cidade de Oyó, Nigéria; é onde se encntra seu grande templo, mas ele é cultuado em todo o estado Yorubá, no Brasil, Cuba e em outros países das Américas.
A dança bàtá, é a representação corporal do ritmo produzido pela orquestra composta dos tambores bàtá que a nomeia.
Folabo Ajayí comenta sobre o bàtá na Nigéria.
“Bàtá é rápido, dança energética raramente interpretada por mulheres. É caracterizada por movimentos bem marcados, definidos, rápidos, torções e de intrincados passos… A forma dessa dança está relacionada à dança de possessão que acontece durante o ritual de Xangô e do ritual Egungun. É essencialmente uma forma de dança do norte da região Yorubá. As revisões do alarinjó, grupo teatral, geralmente dançam o bàtá como forma de representação através de temas satíricos.” (AJAYI, 1989, p.2)
A dança é revelada precisamente através da expressão do ritmo produzido pelos tambores bàtá, no contexto nigeriano, e pelos atabaques no contexto brasileiro.
Segundo Passo: Incubação
“O subconsciente é o depósito de tudo que você aprendeu e experimentou na vida… O relaxamento é a chave do funcionamento do subconsciente.” (PETERSON, 1991, p.22)
Nesta perspectiva, a idéia principal surgiu no transformar o conto mítico em poema. O poder da palavra na constituição do sistema nagô mostra que:
“A palavra proferida tem um poder de ação. A transmissão simbólica, a mensagem, se realiza conjuntamente com gestos, com movimentos corporais, a palavra é vivida, pronunciada, está carregada com modulações, com emoção, com a história pessoal, o poder e a experiência de quem profere.” (SANTOS, 1976, p.12)
Estas palavras na cultura Yorubá, e por extensão, na afro-brasileira estão nos mitos, nos contos, nos “Orikís” (poemas originados do sistema divinatório oracular do Ifá, que por sua vez se combinam em sub-conjuntos dos Odu). Nos festivais dos orixás; os mitos são revividos através da experiência religiosa. O orixá homenageado, é evocado, e com sua presença ele vive no presente o tempo primordial, na época em que o evento teve lugar pela primeira vez. Mircea Eliade argumenta que se pode falar: “… no tempo do mito, e o tempo prodigioso “sagrado”, em que algo novo, de forte e de significativo se manifestou plenamente, e reviver esse tempo, reintegrá-lo … é reaprender sua lição criadora.” (ELÍADE, 1972, p.22)
Terceiro Passo: Iluminação
Surgiu assim a personagem Ayán, princípio de vida do tambor bàtá, que trouxe de forma intrínseca os elementos corporais, rítmicos, vocais e visuais.
Ayán
Princípio vibrante
Divaga
Iyó-orun, ewó-orun.
Nascente, poente
Vida e morte,
Meditação intermitente
Crente
Odu traçado
Destino amarrado
Entranhas emaranhadas
Degusta afazeres, lazeres
Verte amores, desamores
Atenta
Orixirixi
Expelindo desejos latentes
Emerge a dinâmica
Exú
Interage, intercede
Ayán
Expande pele espessa
Repercute, curtida
Nutrida batida
Ayán
Espasmódica
Impetuosa, intensa
Breve e seca
Ayán
Transcende, transfigurada
No fundamento
simbólico
Do fogo.
Quarto Passo: Verificação
“É perfeitamente lógico que a verificação venha no final do processo criativo, pois aplicá-la antes causaria uma interrupção no fluxo de idéias.” (PETERSON, 1991, p.26)
Era imperativo para a realização deste trabalho, a união da teoria e da prática. Que este refletisse aspecto fundamental da pesquisa, na performance artística como um meio de comunicação-expressão.
Obtidas as informações do vocabulário pesquisado, da identificação daqueles movimentos e gestos pertinentes, ou seja, aqueles que recorriam com maior freqüência nas danças produzidas pelo ritmo bàtá. A organização sistemática desses dados, visava a possibilidade da reflexão permanente. Vai, portanto, resultar na elaboração de uma linguagem específica, dentro de um conteúdo ainda não figurado concretamente pelo corpo, encontrando-se oculto, esperando justamente a realização.
Assim, procurei construir com base concreta no ritmo, nas suas implicações no corpo, no espaço, na qualidade dos movimentos, nos gestos, nas palavras. Fazendo com que a influência desses, ocorressem nos planos objetivo e subjetivo.
Durante os exercícios de laboratório, o conhecimento adquirido tornava-se verdadeiro, incorporado a minha pessoa, a percepção se transfigurava. Fui adquirindo consciência, e aos poucos, ia formando um vocabulário com movimentos que se repetiam com freqüência nas improvisações. Estes movimentos, então, vão ser experienciados com variações estruturais diferentes, na elaboração da configuração cênica.
A linguagem cenográfica, espaço, tempo, música, ritmo, figurino, interagindo dialeticamente. Na originalidade, da apreensão de síntese da forma, decodificando a experiência vivenciada incorporada, em uma experiência artística, num processo de justaposição, deixando sempre um espaço, para o voluntário.
Portanto, a realidade temática estava no exterior, mas a sua realização transformava no meu subjetivo, no inconsciente, e voltava à superfície concretizando o espaço interior.
“A linguagem narrativa segmenta um evento em partes e vai roteirizando no tempo a compleição do todo. Desse modo, temos ações seguidas de outras, cujas ligações obedecem à ordem proposta pelo tempo.” (PLAZA, 1987, p.137) O argumento do texto, expressão estética, fundamentou-se numa narrativa sucessiva, no qual as ações entre os versos decorrem no tempo, coordenados de forma direta, cada acontecimento resulta do precedente.
CONCLUSÃO
O referencial prático-teórico-metodológico, traduziu uma poética intertextual com uma idéia de significação de movimentos corporais, de imagens, de ritmos, de palavras e de elementos cênicos. Tendo como referência pragmática, a releitura icônica significativa do tambor bàtá, através do método da tradução intertextual, com a variação semântica de transcrição, com o investimento estético, com um olhar criativo e renovador. A montagem cênica pretendeu mostrar sobretudo, a personalidade de Ayán. Teve como suporte enfático-melódico o bàtá, ritmo produzido nos terreiros nagô na cidade de Salvador (Brasil), enquanto que o vocabulário corporal teve a qualidade estilística do bàtá-corporal da cidade de Oyó (Nigéria).
Desta forma, originou-se um idioleto experimental, semântico, narrativo, cinestésico, transcrito e subjetivo, uma proposta também didática no cenário contemporâneo da arte/educação brasileira.
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Ensaio publicado no livro Pluralidade Cultural e Educação.LUZ,Narcimária(ORG.)Secretaria da Educação e Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil -SECNEB, Salvador, 1996.
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SNYDERS, Georges. A Alegria na Escola. São Paulo: Manole, 1988.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
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A história do negro no Brasil foi marcada por grandes acontecimentos, lutas e resistências, mas a memória do país sempre foi curta e seletiva. Apesar do oficial e justo reconhecimento de Zumbi dos Palmares, muitos dos grandes artistas e líderes continuam ignorados e a história ainda privilegia a folclorização da cultura afro-brasileira.
No mundo, movimentos como os de libertação dos povos africanos nas décadas de 70 e 80, de Martin Luther King e os Panteras Negras nos EUA e da longa luta contra o apartheid na África do Sul - o que levou Nelson Mandela a dimensão de líder mundial - tiveram forte repercussão. Por aqui, surgiram importantes ações nas décadas de 40 e 50, tais como a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, de Abdias de Nascimento. Na década de 70, pensadores como a socióloga Lélia Gonzales e a antropóloga Beatriz Nascimento modernizaram o pensamento afro-brasileiro. Nesta época, nasceu o MNU (Movimento Negro Unificado), o IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras), os Filhos de Gandhi, o Renascença Clube no Andaraí, o Jongo da Serrinha e a escola de samba Quilombo, de Mestre Candeia. Apareceram também os blocos afros de Salvador: Ilê Aiyê, Malê Debalê, Araketu e Olodum, seguidos no Rio de Janeiro pelos blocos: Axé Terê Baba, Agbara Dudu, Dudu Odara, Filhos de Dã, Lemi Ayô, Orunmilá, etc. Naquela época a estética black era o eco visual da política de libertação, dos cabelos à roupa, na música e maneiras de dançar, do James Brown ao Charme, do Soul ao Afoxé.
Já no início da década de 80, apareceram produtores atentos à toda esta movimentação e capacitados para registrar essa efervescência: Ras Adauto e Vik Birkbeck fundaram a Enúgbarijo Comunicações, que levou o nome do exu mensageiro, a Boca Coletiva. Filó Filho e Carlos Alberto Medeiros fundaram a Cor da Pele Produções, além do conceito Griot, via Quilombo Eletrônico. Com o advento das primeiras câmeras de vídeo portáteis e independentes, percorreram toda cidade do Rio de Janeiro, onde eram facilmente avistados pelas ruas, morros, avenidas, salões, além de passarem pelo Clube Palmares de Volta Redonda e filmarem os agitos nas cidades de Juiz de Fora, Belo Horizonte, Salvador e São Paulo. O resultado é um gigantesco acervo de material em vídeo.
Hoje, com a revolução digital surge a oportunidade de disponibilizar todo este registro ao grande público, contribuindo de maneira efetiva para a interatividade com as gerações atuais e vindouras, sintetizando uma parte da história brasileira, que até pouco tempo era escamoteada ou ignorada por grande parte da sociedade brasileira. Atualmente, é possível gravar a história, editar rapidamente o conteúdo, jogar na rede e propagar a mensagem para todos. Como dizia o Ministro das Comunicações dos Panteras Negras: "A informação é disseminadora".
Pois bem, estamos na era da disseminação de conteúdos digitalizados, esse projeto está em sintonia com seu tempo. Agora, um rico universo de formas está disponibilizado via internet, ao alcance de apenas alguns cliques, disponível para estudos, pesquisas, jornalismo, releituras e remontagens.
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Cerca de 2 mil pessoas paralisaram, na manhã deste sábado (30), a rodovia Transamazônica, na altura do município de Balsas, região Sul do estado do Maranhão. A via ficou bloqueada por duas horas, e o ato marcou o início da primeira edição da Romaria Nacional do Cerrado, que reúne representantes de povos de pelo menos nove estados para denunciar os impactos do agronegócio no bioma.
A caminhada teve início às 7h, mas, desde a madrugada, os romeiros se concentravam na Praça da Liberdade, onde ocorreu uma feira de economia solidária e troca de sementes.
Maria Conceição Barbosa da Silva, presidenta do Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais de Sítio Novo, é do extremo norte do estado do Tocantins. Ela levou confecções próprias de tapetes e turbantes para vender. Para ela, a feira da economia solidária foi o espaço de visibilidade da produção camponesa, indígena e de povos tradicionais:
“É uma forma de angariar algum fundo, mas é também um jeito de mostrar e valorizar aquilo que a gente faz”.
No evento, havia frutas, legumes e ervas típicas do cerrado, como o cajuí (um caju menor, que só dá neste bioma), o timbó (planta usada para ajudar a atordoar os peixes e facilitar a pesca), o baru (legume que amadurece nesta época de setembro a novembro) e o jatobá (fruto da árvore de mesmo nome, que nasce em quase todos os biomas brasileiros). Também se vendeu doce de leite, cachaça, plantas e raízes medicinais, artesanatos e outros produtos.
Por volta das 23h, os romeiros acenderam tochas em memória das vítimas dos conflitos nos campo. Durante a madrugada, houve manifestações culturais regionais, como o forró e o tambor de crioula.
Denúncias
No início da manhã, os romeiros e as romeiras iniciaram a caminhada pelas principais ruas da cidade de Balsas. O tom político e ecumênico permaneceu do início ao fim da romaria. Uma cruz feita de buriti abria os caminhos do ato. Usada pela primeira vez na Bahia há quatro anos, o objeto foi confeccionado por geraizeiros, que são criadores de gado livre e orgânico.
A quilombola maranhense Fátima Barros anunciava no microfone: “Nós também invocamos os orixás e nossos encantados contra a força do agronegócio e do capital”.
Miguel Souza, assentado da reforma agrária no município de Riachão das Neves, oeste da Bahia, foi um dos participantes que permaneceu em vigília até o nascer do sol. Segurando um cartaz em uma mão e uma pistola antiga em outra, ele denunciava a falta de segurança no campo:
“A polícia é paga e usa todo o aparato do Estado para defender o agronegócio, e o pobre não tem como se defender”.
Em frente à empresa Agromaranhão, o ato fez uma parada para denunciar ao subsídio do Estado aos grandes proprietários de terra e o descaso com os pequenos produtores.
“Estamos no centro do agronegócio. Quem é considerado aqui nesta cidade são apenas os fazendeiros. Estamos aqui para mostrar que Balsas também tem um povo lutador, e que aqui existem povos tradicionais”, disse Isolete Wichinieski, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
Líderes comunitários usaram o espaço do carro de som para divulgar a situação específicas de suas comunidades. Os moradores de Riachão e São Raimundo das Mangabeiras (MA), por exemplo, denunciaram a seca dos rios da região por conta de açudes para criação de peixes. Eles calculam que 3 mil pessoas estão sendo impactadas pela prática.
Já o povo indígena Krenyê, da Aldeia São Francisco, localizada a seis quilômetros da cidade de Barra do Corda (MA), pediu a solução para um conflito que já dura dois anos: que a Fundação Nacional do Índio (Funai) cumpra o acordo de compra das terras. O indígena Antônio Carlos contou que a aldeia ficou restrita a uma área “do tamanho de um campo de futebol”, e que diversos indígenas tiveram que migrar para as periferias de outras cidades. Hoje, apenas dez famílias vivem no local.
Além das situações específicas, os povos também se posicionaram contra a reforma da Previdência e contra os cortes em programas do governo federal.
A romaria, que ocorreu em seguida do Encontro dos Povos do Cerrado, se encerrou na Igreja da Matriz de Balsas, por volta das 9h da manhã.