7 de dez. de 2015

A memória não morre

Em um país que gostaria de apagar o passado, um museu insiste em exibir as imagens da barbárie da guerra civil
Tarik Samarah
Corpos-Bósnia
As centenas de corpos após o conflito
* De Sarajevo
As marcas da guerra civil em Saravejo, capital da Bósnia-Herzegóvina, estão por toda parte. Prédios cravejados de balas, marcas vermelhas no asfalto onde granadas despedaçaram civis. Vinte anos após o seu fim, o conflito permanece à vista, mas raramente frequenta a conversa dos moradores.
A Galerija 11/07/95 é uma exceção. O pequeno espaço no centro da cidade é o primeiro museu memorial da Bósnia, uma área fixa para manter viva a lembrança do genocídio de Srebrenica. Objetivo que a galeria cumpre com louvor, ao chocar os visitantes.
Nas paredes, a escala do massacre: estão impressos os 8.372 nomes das vítimas, acompanhados por centenas de retratos. “A primeira e mais importante coisa a se colocar na galeria foi o nome das vítimas. Todos aqueles homens foram mortos apenas por serem muçulmanos”, conta, entre tragadas no cigarro, Tarik Samarah, diretor da galeria e autor de parte das imagens expostas.
Nascido em Zagreb, hoje capital da Croácia, o fotógrafo passou a guerra civil sitiado em Sarajevo, onde viveu nos últimos 30 anos. Suas imagens dos anos pós-genocídio em Srebrenica foram exibidas em renomadas galerias e museus, entre eles a sede da Organização das Nações Unidas em Nova York, o Museu do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington, e a Abadia de Westminster, em Londres.
“Passei o cerco de Sarajevo aqui. Antes, tínhamos uma vida normal. Era um estudante. Então começou a guerra e, de repente, nossas vidas deixaram de ser normais. Foi uma experiência chocante. Assistíamos aos civis serem mortos diariamente”, relembra Samarah.
Episódios mais brutais ocorreram no leste do país, em Srebrenica. A exposição permanente é uma espécie de documentário multimídia com imagens chocantes do pós-genocídio de 11 de julho de 1995, quando tropas bósnio-sérvias invadiram a cidade e massacraram homens muçulmanos. O evento provocou a intervenção da Otan, a aliança militar das potências ocidentais.
Muçulmanos
Os muçulmanos assassinados no genocídio de Srebrenica (Tarik Samarah)

“Se não houver uma cultura de lembrança, não teremos história. Nossa lembrança cultural é importante, especialmente quando falamos de guerras. A fotografia tem o poder de capturar os momentos mais horríveis de todas essas situações. Ela nos retorna ao passado.”
Ao trabalhar com um tema controverso, principalmente pelo fato de os sérvios ainda se recusarem a usar o termo genocídio, a galeria não se furta de exibir imagens fortes, embora belas. “Nada poderia me preparar para o que vi no leste da Bósnia. Quando andava em volta de partes de corpos, animais espreitavam nas florestas”, conta o croata.
“Sabia que não seria uma testemunha comum de algo tão horrível. Levar essas imagens ao mundo se transformou em uma obrigação. Se você não aceita essa obrigação, então em silêncio aceita a injustiça.”
Samarah
Samarah, o curador
O objetivo da Galerija, diz Samarah, é tornar-se um símbolo contra “toda e qualquer forma de violência no mundo” e “do sofrimento de inocentes e da indiferença de outros”. Enquanto a maior parte prefere esquecer, o fotógrafo promove debates sobre os conflitos e programas educacionais sobre eventos modernos e da antiga Iugoslávia.
“Todos os dias educamos e informamos os cidadãos a respeito dos acontecimentos, mas também temos novas exibições. Dessa forma, procuramos abrir um diálogo com a mídia, levantando a nossa voz.”
No ano passado, o museu realizou uma exposição com fotografias da Síria realizadas pelo mexicano Narciso Contreras, vencedor do Prêmio Pulitzer em 2013. No próximo ano, haverá uma mostra sobre a Ucrânia.
Em um ano marcante para a Bósnia, Samarah recorre ao passado para destacar coincidências contemporâneas: em 2015 completam-se duas décadas do genocídio em Srebrenica e do acordo de paz que encerrou a guerra civil do país, ao mesmo tempo que se celebra o 70º aniversário da liberação do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia.
“Nestes tempos, presenciamos o aumento da islamofobia, antissemitismo, xenofobia e novas guerras. Esperaremos por tempos e por sociedades mais tolerantes”, afirma. “Mas, antes disso, não devemos perder a esperança de que viveremos em um mundo melhor. Temos de lutar por isso. Educação e cultura são a forma correta de alcançá-lo.”
http://www.cartacapital.com.br/revista/878/a-memoria-nao-morre-6186.html
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