16 de nov. de 2012

[Turismo de cruzeiros] O que afundam enquanto flutuam -Rodrigo Fernández Miranda


Adital

 Rodrigo Fernández Miranda

Depois de um importante processo de reconversão de uma indústria naval em decadência pelas inovações em matéria de transporte produzidas durante os períodos bélicos, no final dos ‘Anos Dourados’ da economia mundial (1948-1973) aparece o turismo de cruzeiros moderno. Naquele momento como uma modalidade elitista do turismo internacional. A partir de então, essa atividade tem mostrado um incremento exponencial da demanda e uma sensível inovação e evolução qualitativa da oferta.


Essa prática turística tem sua origem na fusão, por um lado, entre a indústria do ócio e o turismo e, por outro, a do transporte marítimo de pessoas. Assim, o turismo de cruzeiros representa uma combinação entre transporte, alojamento e entretenimento, unido em um mesmo espaço flutuante as infraestruturas necessárias para o deslocamento, a hospedagem, a distração e os demais serviços destinados aos consumidores.
Tal e como aconteceu com o turismo internacional de estância, o estouro do turismo de cruzeiros começou quando a atividade foi deixando de ser concebida como um luxo elitista e começou a ser comercializado também como um luxo, porém, destinado às massas consumidoras, principalmente de países centrais. Anos mais tarde do que o turismo internacional de estância, esse incipiente processo de massificação dos cruzeiros turísticos teve resultados similares: forte crescimento da demanda e diversificação da oferta, redução dos preços de venda e nascimento de novo itinerários e destinos. Da mesma forma, implicou em uma clara tendência à concentração dos operadores e incrementou sobremaneira as consequências negativas derivadas da atividade.
O turismo de cruzeiros é o subsetor que mais crescimento experimentou durante as últimas décadas na economia globalizada: a demanda mundial multiplicou-se quarenta vezes em quatro décadas e durante os últimos seis anos duplicou, superando, em 2011, os vinte milhões de consumidores. No entanto, seu teto parece estar ainda longe de ser alcançado. Quanto à oferta, que está cada vez mais segmentada(1), a bordo das embarcações, que chegam a ter capacidade para até seis mil pessoas, incluem-se serviços como pistas de tênis e de patinação no gelo, piscinas, cassinos, centros de beleza, planetário, centros comerciais, campos de golfe, galerias de arte, centros de negócios, cinemas, SPA, escalada, trampolins, capelas, lavanderia, serviços fotográficos e de revelação e até piscinas com ondas especiais para surfar, entre outras coisas.
Trata-se de uma atividade na qual o território do Estado espanhol, principalmente alguns de seus portos, tende a posicionar-se entre os principais mercados da União Europeia: como país emissor, a demanda se quintuplicou nos últimos dez anos, e como receptor, em 2011, houve mais de cinco milhões de visitas de cruzeiristas. Enquanto isso, o Mediterrâneo quase duplicou sua quota de mercado mundial como destino dos cruzeiros nos últimos cinco anos.
Nessa corrida pelo crescimento, o rastro social, econômica e no meio ambiente que vão deixando atrás de si agrava-se de maneira proporcional a seu crescimento. A massificação dessa atividade, cada vez mais integrada nos padrões de consumo turístico nos países centrais, deriva em que seus impactos sejam cada vez mais profundos e, muitos deles, irreversíveis.
Um paradigma da globalização
Por outro lado, o turismo de cruzeiros é um nítido paradigma do funcionamento da globalização econômica no Século XXI. Em primeiro lugar, características definitórias dessa atividade (como a mobilidade física, a possibilidade de recolocação do capital em tempo e lugar segundo a conveniência dos interesses das operadoras, contar com uma população trabalhadora que possa proceder de qualquer parte do planeta, a possibilidade de selecionar as condições fiscais e trabalhistas nacionais que resultem mais proveitosas para as empresas ou a ausência de regulações globais estritas para a atividade, entre outras), apesar de que mais radicalizadas, são também características definitórias dessa globalização.
A isso, somam-se outros dois aspectos: em primeiro lugar, na oferta o nível de concentração das operadoras é superior seguramente a todas as atividades econômicas globalizadas, com três empresas transnacionais oligopólicas que controlam praticamente todo o mercado mundial. O segundo aspecto são as condições trabalhistas "de conveniência” as quais estão submetidas as pessoas trabalhadoras a bordo: uma precarização extrema do emprego facilitada pelo uso das "bandeiras de conveniência” nesse tipo de embarcações.
Por outro lado, na demanda é destacável que, através de um forte incremento no investimento publicitário, se está conseguindo que os cruzeiros turísticos comecem a integrar os padrões de consumo de ócio nos países do Norte econômico, tendendo a configurar-se como um objeto de desejo massivo e promovendo assim o consumo aspiracional entre as classes médias consumidoras.
Finalmente, também são um emblema dessa globalização econômica os graves impactos que essa atividade traz em todos os níveis, constituindo-se também como um paradigma das desigualdades estruturais, da insustentabilidade do modelo produtivo e do estilo de vida hegemônico nos territórios opulentos do planeta.
Os principais impactos dessa atividade podem ser resumidos da seguinte maneira: a contaminação do ar, da água e da terra e a destruição da biodiversidade marinha em matéria de meio ambiente. No âmbito social, a violação sistemática de direitos sociais, trabalhistas e sindicais, e práticas discriminatórias por motivos de origem étnica ou racial, nacionalidade ou gênero às pessoas trabalhadoras a bordo das embarcações. Por último, a impunidade fiscal e o obscurantismo financeiro através do uso de "bandeiras de conveniência” e paraísos fiscais, além das fortes dinâmicas de controle e de concentração dos benefícios da atividade, com uma competição desigual para as pequenas e médias explorações turísticas nos destinos e praticamente sem derramas para as populações anfitriãs.
Por trás do cenário do luxo e da exclusividade, os bastidores do turismo de cruzeiros põem em evidência um exemplo radical dessa globalização econômica desenhada unicamente para o benefício do grande empresariado e que está resultando empobrecedora para as maiorias, exploradora para os trabalhadores/as, saqueadora para os recursos e para os materiais e devastadora para as condições naturais do conjunto do planeta.
O pior está por vir?
No storytelling(2) dominante existe um esquecimento proposital dos limites biogeofísicos de inputs (por exemplo, o esgotamento dos recursos) e de outputs (por exemplo, a saturação dos sumidouros) com os quais, necessariamente, se enfrentam os modelos de produção, transporte, distribuição e consumo. Esse é um dos relatos ficcionais com um forte conteúdo ideológico e, com certeza, com uma menor carga lógica e verídica. Apesar disso, conseguiu converter-se em um reflexo do imaginário coletivo das sociedades de consumo.
No entanto, a realidade se impõe e mostra que as evidências no meio ambiente devido à insustentabilidade do modelo são cada vez mais inquestionáveis. Por exemplo, a mudança climática, a contaminação da água, da terra e do ar, a perda de biodiversidade ou o esgotamento das matérias primas, dos recursos e das fontes de energia são alguns dos elementos que podem ilustrar esse cenário.
Nesse contexto de crise ecológica, energética e climática que o planeta atravessa, o turismo de cruzeiros aparece como uma aposta de presente e futuro do grande empresariado turístico, em um sentido contrário a essa realidade dos limites. Enquanto que o turismo internacional massivo de estância parece aproximar-se a uma situação de saturação, a história comercial dos cruzeiros turísticos parece estar começando a ser escrita. O fato de pensar que o auge e os recordes de deslocamentos desse subsetor podem estar ainda por chegar, obriga a pôr atenção especial nessas questões.
O modelo de desenvolvimento turístico no capitalismo global está se autocondenando ao crescimento infinito para garantir sua própria sobrevivência, pelo que, vivendo em um mundo finito e de recursos limitados, se poderia dizer que é um modelo suicida. Por isso, para contrapor esse absurdo, torna-se cada vez mais imprescindível uma reflexão crítica sobre as formas de viajar, de desfrutar, de conhecer e de descansar no marco das sociedades de consumo, ao mesmo tempo em que se vão construindo e promovendo alternativas Norte-Sul para outros turismos.
Assim, as iniciativas impulsionadas desde os movimentos por um turismo responsável se apoiam em um conjunto de princípios e critérios fora das lógicas produtivistas e economicistas e relacionados com valores como equidade, solidariedade, justiça ou respeito pelo meio ambiente. Quanto as formas de produção, se propõe que um turismo responsável deve promover o desenvolvimento local das comunidades receptoras, contribuir à proteção e conservação das condições naturais do território, ser social e economicamente sustentável, ser produzida em pequena escala e com condições trabalhistas dignas. Com relação às formas de consumo, se propõe um turismo fora das lógicas e dinâmicas do consumismo, se apela à responsabilidade das pessoas que viajam, se insta a respeitar as culturas locais e a realizar intercâmbios interpessoais com papeis horizontais.
Nesse sentido, trata-se, por um lado, de uma transformação sociocultural que incida diretamente em uma mudança essencial no estilo de vida das classes médias consumidoras nas sociedades do Norte econômico. Por outro lado, de uma evolução que coloque a vida no centro, a economia a serviço das pessoas e a sustentabilidade social e do meio ambiente como norma de um novo modelo econômico, produtivo e de desenvolvimento.
Notas:
(1) Entre os distintos segmentos no turismo de cruzeiros, pode-se destacar: cruzeiros de golfe, enológicos, para singles, temáticos, para gays, naturistas, para empresas, de grande luxo, entre outros.
(2) Esse conceito pode ser explicado da seguinte maneira: "...o pdoer que têm as histórias para constituir uma realidade [...]. E o storytellingchegou a rivalizar com o pensamento lógico [...]. Uma história que procura uma explicação tranquilizadora dos acontecimentos também pode enganar ao eliminar as contradições e as complicações”. Fonte: Lynn Smith, "Not the same old story”, The Los Angeles Times, 2001.
Matéria reproduzida do portal Adital
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