23 de mai. de 2017

Diretas Já! Ontem e hoje


Fotografia de Luana Kava
Fotografia de Luana Kava

Diretas Já! Ontem e hoje

Samuel Fernando da Silva Junior

A divulgação da gravação feita por Joesley Batista (um dos donos da JBS) para a Procuradoria-Geral da República (PGR), envolvendo diretamente o ilegítimo presidente da República, Michel Temer, em práticas claramente ilícitas e corruptas, suscitou novamente – a última vez foi quando do golpe na ex-presidente Dilma Rousseff – as reivindicações por Diretas Já em grande parte do espectro político da esquerda e de pequenas frações à direta.
Evidentemente que quando falamos em Diretas Já lembramos do período entre 1983 e 1984 no qual o deputado federal do estado de Mato Grosso, Dante de Oliveira, conseguiu as assinaturas necessárias e colocou em tramitação, na Câmara dos Deputados, a PEC homônima que, curta e objetivamente, defendia o sufrágio imediato para presidente da República em 15 novembro de 1984, um ano antes do término do mandato presidencial[1].
A fração minoritária “autêntica” do PMDB via na campanha por eleições diretas um meio de promover Ulysses Guimarães como um candidato de oposição popular – imagem que começou a ser construída ainda em 1974 quando se candidatou para presidente da República em oposição ao general Ernesto Geisel –, como também via nas eleições diretas o único meio de construir um consenso, um clima de paz e tranquilidade para a transição. Essa tática dos “autênticos” acabou sendo apropriada e modificada pelos “moderados” liderados por Tancredo Neves na disputa intrapartidária. Ou seja, paulatinamente, ao longo da campanha pelas Diretas e principalmente nos comícios em Belo Horizonte (23/02/1984) e em São Paulo (16/04/1984), já vinha sendo trabalhado no imaginário da população uma possibilidade de consenso nacional não mais pelas eleições diretas em novembro de 1984, mas de maneira indireta em janeiro de 1985 no Colégio Eleitoral. Tanto que, após a derrota da Emenda Dante de Oliveira na Câmara dos Deputados, no dia 25 de abril de 1984, as mobilizações pelas Diretas Já se transformaram em mobilizações por Mudança Já; de movimento pró-Diretas para movimento pró-Tancredo.
Cabe ressaltar que, por detrás da Emenda Dante de Oliveira, ocorreu uma intensa batalha intrapartidária e entre os partidos que chamamos de “oposição” burguesa (PMDB, PDT e frações dissidentes do PDS), para canalizar os movimentos populares para fins estritamente político-institucionais. Em outras palavras, encampar as mobilizações populares para fins exclusivos de manutenção da ordem burguesa na transição. Como o próprio Tancredo Neves certa vez afirmou: “A campanha pelas Diretas é necessária, mas lírica”[2], demonstrando um certo descaso com a pauta principal da mobilização, o voto popular; porém, necessária para viabilizar certa popularidade ao PMDB no processo sucessório.
Dentre os partidos que apoiavam e participavam das mobilizações pelas Diretas (PDT, PMDB, PTB e dissidentes do PDS), haviam outras frações organizadas como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), presidida por Jair Meneguelli, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, de Joaquinzão, o Alicerce da Juventude Socialista (AJS), a Conclat, a Contag e o próprio PT que, embora expressivamente minoritários na campanha pelas Diretas, lutavam para impor suas pautas no movimento. A CUT com o apoio da AJS[3] começou a chamar, desde novembro de 1983, a greve geral como a única tática possível para pressionar o voto favorável dos parlamentares pedessistas à Emenda Dante de Oliveira. Esta reivindicação foi aprovada formalmente somente no dia 4 de abril de 1984 dentro do Comitê Nacional Suprapartidário Pró-Diretas, oficializando a greve geral para o dia 25 de abril, o mesmo dia da votação da referida emenda.
Entretanto, no dia 10 de abril de 1984, em comício na Candelária, no Rio de Janeiro, os militantes do AJS haviam estendido uma grande faixa em frente ao palanque, divulgando a greve geral para o dia da votação da Emenda Dante de Oliveira. Porém, o então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, ordenou que a PM retirasse a faixa do AJS e impediu que qualquer faixa que exigisse greve geral fosse exposta durante a mobilização. Brizola havia convocado alguns militantes do PDT para “patrulhar” a mobilização na Candelária, com o objetivo de impedir qualquer manifestação contrária ao dos partidos dirigentes das Diretas Já, ”mesmo que fosse preciso o uso da força, que foi o que os correligionários de Brizola fizeram ao espancar os militantes da tendência Alicerce da Juventude Socialista”[4] com a justificativa de não “incomodar o Sr. Figueiredo”. Aliás, foi trabalhado incessantemente, por meio de jornais, como a Folha de São Paulo, para que o movimento pelas Diretas ganhasse uma forma cívica, ordeira e pacifista, com direito ao canto do hino nacional ao final das mobilizações. Era difundido pelos partidos e pela imprensa um clima de “festa” cívica e não de seriedade, de comoção nacional e não de luta. Em outras palavras, uma ideologia de transição sem brechas para qualquer ímpeto radical e combativo.
Logo após as mobilizações do dia 10 de abril na Candelária, a OAB e os partidos da oposição burguesa logo interviram ordenando que a reivindicação pela greve geral fosse substituída pela “vigília cívica” para o dia 25 de abril. Com a pressão do PMDB e do PDT, o PT acabou abandonando a proposta de greve geral e se submeteu à unidade com a oposição burguesa até o dia da votação da PEC. O próprio deputado federal Ayrton Soares, do PT, chegou a afirmar que a proposta de greve geral não passou de um mal-entendido e o que deveria ser feito, na verdade, era uma “vigília cívica” nos locais de trabalho.[5] Resumo da história, nem a “vigília cívica”, seja em Brasília, ou seja no trabalho acabou ocorrendo. O que ocorreu no final das contas foi a instalação do “placar das Diretas” nas praças de algumas das principais capitais do Brasil.
Portanto, a única arma concreta de luta dos trabalhadores contra o regime de exceção fora abandonada pela oposição burguesa, com apoio do próprio PT da CUT e do Sindicato dos Metalúrgicos de SP, sendo substituída pela “vigília cívica”. Ou seja, o que a oposição burguesa desejava era a estrita volta do Estado democrático de direito, “estes precisavam demonstrar à classe dominante brasileira e internacional que eram confiáveis, que podiam conduzir a transição e posteriormente as políticas de Estado sem pôr em risco os negócios privados.”[6]
As Diretas Já, de 1983-84, escondiam a dificuldade da burguesia brasileira em chegar a um nome consenso para a sucessão de Figueiredo. As possibilidades políticas foram as mais diversas, de Mário Andreazza até Tancredo Neves, passando por Paulo Maluf e o candidato predileto da burguesia brasileira, Aureliano Chaves, à época, vice-presidente da República. O que foi desenhado no seio das Diretas Já foi um candidato que se encaixasse no binômio: credibilidade (para as classes dominantes) e popularidade (para as classes populares). O único problema de Aureliano Chaves era a sua baixa popularidade.
O que começou a ser candente para a transição política, em 1985, era a necessidade de um candidato conciliador, desmobilizador dos conflitos de classe e não “revanchistas” contra o regime de exceção que, em parte, estava acuado por causa dos desdobramentos finais da Guerra das Malvinas (1982) que resultou na desmoralização das Forças Armadas argentinas. Essa forma de transição não poderia ocorrer no Brasil. Porém, essas características de um político de cúpula para a transição, necessitava de um maior contraste para legitimar o processo sucessório. É aí que entra o papel das Diretas Já, enquanto um processo que popularizou o que era impopular, legitimou o que era combatido e ilegítimo para oposição política da época, o Colégio Eleitoral. O único partido de oposição que permaneceu contrário ao Colégio Eleitoral foi o PT, que expulsou três de seus deputados federais que votaram em Tancredo Neves: Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes.[7]
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Para ficarmos em um único exemplo – a pauta pela greve geral nas Diretas Já em 1984 –, queremos demonstrar que a campanha apresentada como suprapartidária em 1983-84 tinha, na realidade, uma direção burguesa que equacionou e manipulou os anseios populares para um consenso nacional, uma conciliação entre todas as frações das classes sociais. Por exemplo, a Aliança Democrática, chapa formada por Tancredo Neves e José Sarney, simbolizava um consenso que ia desde frações partidárias do PCB, até setores mais conservadores e retrógrados oriundos do PDS. Portanto, qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.
A possibilidade da aprovação da PEC atual pelas Diretas Já, caso Temer renuncie ou sofra um impeachment, necessita de maioria qualificada e precisa ser aprovada em 2 turnos na Câmara e no Senado. Ou seja, dentro das circunstâncias atuais, torna-se quase impossível a aprovação da PEC em dois turnos no Congresso Nacional, que só poderá ser feita, novamente, com base no “acordão”, ou por alguma medida jurídica aprovada pelo STF. Em pactos, consensos e conciliações são sempre as classes populares que acabam sendo as mais prejudicadas. A transição de 1985 e o governo Sarney, confirmam essa proposição.
Os problemas candentes atuais, acabam nos remetendo aos mesmos problemas do candentes do passado. Sendo, um deles, o trânsito da pauta pelas Diretas ao consenso via o pleito indireto, o que pode ser possível de ocorrer ainda hoje. A única forma, até agora, constitucional, caso vacância do cargo presidencial é a posse de Rodrigo Maia como Presidente interino por no máximo 30 dias e a convocação de eleições indiretas, podendo se candidatar qualquer parlamentar do legislativo e qualquer nome que esteja afastado, no mínimo, seis meses de cargos no executivo. É nesse processo que as frações da classe dominante brasileira, atualmente dividida, podem chegar a um consenso, cooptando, até mesmo, os setores mais à esquerda em prol da conciliação. Os bastidores da votação para a presidência da Câmara e do Senado, no início deste ano, só comprovam esta possibilidade de aliança. Nas ruas, “Fora Temer e golpistas”, no Congresso, a tática da aliança burguesa e espúria que confirma, de antemão, a necessidade de uma reforma política profunda, onde seja cortado, pela raiz, o fisiologismo e o patrimonialismo, presentes na estrutura do desenvolvimento capitalista no Brasil desde a sua origem enquanto Estado.
O que queremos defender aqui é a permanência da luta pela pauta de greve geral como a única forma concreta de oposição da classe trabalhadora para pressionar a deposição do governo e a condução de uma transição que seja tencionada pelas classes populares. A construção de uma pauta econômica/política concreta e não uma simples pauta política/abstrata falsamente universal, como está sendo difundido pelos políticos de oposição ao governo golpista, baseada no: consenso nacional, pacto social, união pela democracia, etc. Para se ter uma ideia, estimativas apontam que a Greve Geral do dia 28 de abril, mesmo não sendo generalizada no parque produtivo brasileiro, produziu um prejuízo aproximado de 5 bilhões na economia.[8]
É somente com as máquinas parando que se germina a verdadeira democracia[9], ou seja, a possibilidade de inserir a perspectiva da classe trabalhadora neste delicado processo de crise econômica e institucional. Batalhando para não repetir os erros das Diretas Já de 1983-84 e, consequentemente, da transição política, onde a perspectiva das classes populares terminaram excluídas e marginalizadas do processo sucessório, sendo, em contrapartida, substituída pela transição pelo alto, totalmente impopular e com soluções conservadoras.
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O que está acontecendo atualmente com o “Ocupa Brasília” pode ser claramente comparado com abril de 1984, quando a oposição burguesa barrou a greve geral do dia 25 de abril em troca da “vigília cívica” ou qualquer forma de mobilização que não parasse a produção. No entanto, diferentemente da década de 1980, o PT se encontra hoje no seio da oposição burguesa ao governo Temer, como também a própria CUT que, por meio do diversionismo, busca mudar suas táticas, substituindo a greve geral para o “Ocupa Brasília” marcado para o dia 24 próximo. Porém, cabe ressaltar que os acontecimentos da última semana, com a divulgação da gravação feita por Joesley Batista, acabaram mudando o tom do “Ocupa Brasília”, demonstrando, agora, maior efetividade nesta mobilização que se aproxima.
Ao contrário do posicionamento de muitos parlamentares de oposição que defendem um consenso nacional (PT, PCdoB, Rede, etc.) – fazendo-nos lembrar novamente da malograda Diretas Já e os desdobramentos políticos na transição em torno do consenso nacional, que acabou desarmando a esquerda e os movimentos populares – a única forma da classe trabalhadora fazer frente às contrarreformas impopulares impostas pelo governo golpista, é construindo uma frente de greve geral com pautas concretas de atuação. Não se submetendo a falsos valores universais, do “acordão” pelo “bem do Brasil” que, na realidade, significa o bem da “empresa capitalista”.
As eleições gerais e diretas são extremamente necessárias, mas não podem ser a única pauta urgente dos movimentos sociais. Afinal, atrás das “Diretas Já” está escondido um sistema político completamente atrasado no que tange à representatividade social, onde o Congresso Nacional é, na verdade, uma banca de negócios dos interesses burgueses. Os partidos “nanicos” se vendem para quem “dar mais” encarnando o símbolo da “prostituição” política em prol de interesses privados e escusos. A campanha pelas “Diretas Já” é necessária, mas não pode excluir a urgência de uma profunda reforma política e da luta pela greve geral. Aliás, a campanha pela greve geral só terá maior efetividade se associada à defesa de eleições gerais. Finalmente, as “Diretas Já” por si mesma é, de longe, insuficiente para a resolução da crise política e econômica brasileira, foi assim na transição da ditadura e continua sendo ainda hoje. Para além das eleições diretas, existe uma estrutura institucional marcadamente retrógrada que detona qualquer possibilidade de transformação substantiva.
Por fim, não pode ser repetido hoje o que ocorreu nas Diretas Já de 1983-84, onde as classes populares se mobilizaram nas ruas e nas praças, mas não participaram das decisões políticas e econômicas realmente efetivas. À essa tarefa, ficou responsável a “elite” política e o grande capital, convertidos, como de costume, em símbolos da abstrata vontade nacional.
Notas
[1] Ela foi apresentada com a assinatura de 23 senadores e 177 deputados federais. A emenda era clara, com 15 linhas, propunha eleições diretas para presidente da República em 15 de novembro de 1984.
[2] OLIVEIRA, Dante de; LEONELLI, Domingos. Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.167.
[3] “Livre e diretas!” Alicerce da Juventude Socialista: São Paulo, n° 28, p. 04, 18 a 27 de janeiro de 1984.
[4] NERY, Vanderlei Elias. Diretas Já: a luta pela redemocratização. Curitiba: Ed. Prismas, 2015, p. 189.
[5] Ibidem, p. 190.
[6] Ibidem, p. 191.
[7] Somente em 2005 esses deputados foram “anistiados” pela direção do PT presidida por José Genoino, sendo convidados a retornaram ao partido. (MARCHI, Carlos. Ex-deputados que votaram em Tancredo podem voltar. Gazeta Digital, 15 jan. 2005. Disponível em: http://bit.ly/2qIkbqJ. Consultado em 19/05/2017 as 20:00 horas.
[8] Comércio pode perder algo próximo de R$ 5 bilhões com greve geral. Época, 28 abr. 2017. Disponível em: https://glo.bo/2qPslw2. Consultado em 20/05/2017 as 9:30.
[9] CHASIN, José. A miséria brasileira 1964-1994: do golpe militar à crise social. Santo André (SP): Ed. Ad Hominem, 2000, p. 79
http://blogjunho.com.br/diretas-ja-ontem-e-hoje/
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