Operação Condor: seis países, várias línguas e uma só dor
por Vitor Nuzzi publicado 30/03/2017 14h18, última modificação 30/03/2017 15h14
CENA DE OPERAÇÃO CONDOR - VERDADE INCONCLUSA
Apoio do capital financeiro foi preponderante para efetividade das ditaduras e operações de espionagem e repressão
São Paulo – Nesta quinta-feira (30), às vésperas do 53º aniversário do movimento que depôs João Goulart, durante evento “Do golpe de 1964 ao golpe de 2016”, na Universidade Católica de Pernambuco, em Recife, será a vez de o público nordestino assistir a Operação Condor, Verdade Inconclusa, resultado de mais de 40 entrevistas em seis países. O documentário, que levou dois anos e meio para ser concluído, já passou por Santiago e Montevidéu, além de três estados brasileiros. E seguirá ainda para Argentina, Paraguai, Bolívia e Peru, completando o ciclo dos países que vivenciaram os efeitos da aliança que sustentou regimes autoritários.
Diretor do filme, o cineasta e historiador pernambucano Cleonildo Cruz (O Golpe de 1964 em Pernambuco, A Expulsão do Padre Vito Miracapilo do Brasil, Caixa de Pandora, Haiti, 12 de Janeiro e Constituinte 1987-1988), 43 anos completados neste mês, percorreu o continente para ouvir casos dolorosos, histórias com muito em comum. “Todos me tocam de forma muito indelével”, diz. “São histórias que se cruzam, similares, e uma única dor, quer seja de brasileiros, argentinos, chilenos, uruguaios, paraguaios, peruanos e bolivianos”, afirma, lembrando “do coração das famílias que sangram permanentemente, que não sabem onde estão os corpos dos seus filhos e filhas”.
Operação Condor foi o nome dado a uma associação de forças das ditaduras sul-americanos, para ampliar seu campo de ação. Formalmente, foi criada no final de 1975, mas Cleonildo observa que as ações já ocorriam muito antes. “Na medida em que as ditaduras eram instaladas, os serviços de inteligência passavam a trocar informações entre seus aparatos repressivos.”
Da mesma forma que a repressão agiu conjuntamente, o cineasta propõe que se forme uma comissão regional para apurar os crimes relacionados à Condor. E observa que não se tratou de uma operação exclusivamente militar. "O apoio do capital financeiro foi preponderante para a efetividade das ditaduras", afirma.
Ele vê com preocupação o momento político mundial. No Brasil, identifica ataques à democracia e considera que há parcialidade nas medidas do juiz federal Sérgio Moro. "As cláusulas pétreas da Constituição de 1988, o ordenamento jurídico tem sido aviltado em nome de uma sanha de combater a corrupção. Não se combate a corrupção se aviltando a Constituição."
A “verdade inconclusa” da Operação Condor é uma referência, principalmente, ao Brasil, último país a criar uma comissão da verdade e onde a chamada Justiça de transição parece ter mais dificuldade para avançar?
Não. A verdade é inconclusa por dois aspectos, embora o espectador possa concluir por outras "inconclusões". Primeiro, não podemos aceitar que nenhum crime cometido pelas ditaduras militares que compuseram esse pacto criminal da Operação Condor, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia e Peru, fique sem ser julgado e os responsáveis, condenados. É inaceitável que os agentes do Estado que agiram criminalmente – prendendo, torturando, assassinando e desaparecendo com corpos de pessoas – não sejam responsabilizados criminalmente. É certo que alguns países avançaram na responsabilização (como a Argentina, que instaurou o Juízo do Plan Condor). Mas temos muito a avançar no Brasil e em todos os países do Cone Sul. Recentemente, tivemos o julgamento na Itália, na Corte de Assis, do Tribunal de Roma, que aconteceu em 17 de janeiro, contra a absolvição escandalosa dos soldados que participaram do Plano Condor. De 27 repressores do Uruguai, Bolívia, Chile e Paraguai, apenas oito foram condenados. No caso dos 14 soldados uruguaios envolvidos, só foi condenado o ex-chanceler (Juan Carlos) Blanco. É uma luta permanente por verdade e justiça.
O segundo aspecto é da subjetividade da dor de não saber, do coração dos famílias que sangram permanentemente, que não sabem onde estão os corpos dos seus filhos e filhas. Lembro Sara Basso, mãe de Jorge Basso, desaparecido na Argentina, que diz: “É muito triste. Eu não sei se ele morreu de imediato, se foi torturado ou se foi daqueles que colocavam um saco plástico e jogavam no mar”; a chilena Pauliana Veloso, viúva de Alexei Jaccard, que diz: “Hoje eu sei que está morto. (Quero) encontrar seus restos mortais, se for possível, e levar-lhe uma flor”. É uma dor de uma história inconclusa que não se resolveu e não se fecha.
Quanto ao Brasil, demos um passo importante com a instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, o que levou a várias comissões estaduais, municipais e grupos de pesquisa nas universidades. Não basta apenas conhecer a verdade histórica do que se passou com as vítimas de graves violações dos direitos humanos e o direito à reparação efetiva. Faz-se necessário que os agentes do Estado brasileiro, que agiram criminalmente, prendendo, torturando, assassinando e fazendo pessoas desaparecer, sejam responsabilizados pelos crimes que cometeram.
Qual seria o “marco zero” da Operação Condor, sua criação e sua primeira “missão”, se podemos dizer assim? É possível delimitar? A operação foi formalizada em 1975, em Santiago, mas desde quando se desenhava um pacto entre os governos autoritários?
Apesar da oficialização da Operação Condor, a partir de 25 de novembro de 1975, essa reunião foi somente cartorial, fixação de uma data do que já existia entre as ditaduras na América Latina. Não foi o marco zero.
Na medida em que as ditaduras eram instaladas nos países, Uruguai, Brasil, Chile, Paraguai, Bolívia, Peru, os serviços de inteligência eram imbricados e passavam a trocar informações entre seus aparatos repressivos. Vejamos que a ONU admitia, em 1960, refugiados de um país latino-americano por questões políticas, quem cruzasse a fronteira não poderia ser devolvido, mas esse entendimento foi mudado em 1969, para dificultar o asilo político e facilitar a entrega dos militantes aos seus países de origem, aos seus respectivos aparatos repressivos para serem assassinados. Nos documentos descobertos do arquivo do terror, em 1992, Assunção, no Paraguai, estão documentadas várias ações bilaterais antes mesmo de 1975. A partir de 1975, o intercâmbio de informações pelas embaixadas foi realizado por um sistema informatizado criptografado, conhecido como Condortel, que facilitou as trocas de informações e realização das operações de prisão, tortura, troca de prisioneiros e tendo o total apoio dos Estados Unidos.
Como funcionava a operação, em termos de estratégia e decisão sobre atividades? Havia reuniões periódicas, muitos graus de comando?
Estávamos vivendo regimes ditatoriais na região. Era preciso criar um sistema operacional de inteligência entre os aparatos militares, onde tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas passaram a ser recorrentes. Tínhamos agora o termo desaparecido, nem morto e nem vivo, isentando o Estado de explicações. Os Estados Unidos financiaram por meio da CIA as primeiras reuniões entre funcionários de militares uruguaios e argentinos para vigilância e assassinato de exilados políticos na Argentina e Uruguai.
As cadeias de comando da Condor estavam no centro de toda a repressão. Vejamos no Brasil: em abril e junho de 1964, é criado o SNI (Serviço Nacional de Inteligência), com toda a cadeia correlata: Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa); Centro Nacional de Informações da Marinha (Cenimar); Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e seus Destacamentos de Operação e Informações (DOI); Comunidades Setoriais de Informações (CSI); Divisões de Segurança e Informação (DSI) dos ministérios civis e suas Assessorias de Segurança e Informação (ASIs). A partir do Centro de Informações do Exército (CIE), destaco, no âmbito da Operação Condor, a criação do Centro de Informações do Exterior (CIEx), em 1966, responsável pela coordenação e supervisão das ações de monitoramento de exilados políticos e de militantes de esquerda que viajaram a outros países da América Latina. Notemos que antes da oficialização da Operação Condor, em novembro de 1975, essas cadeias eram multilaterais com os órgãos de repressão dos regimes militares de cada país, que tinha seus respectivos comandos no aparato repressivo.
E como se dava a participação dos civis?
Hoje já sabemos que nenhuma ditadura militar instalada na América do Sul foi unicamente militar. Todas as ditaduras, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Chile e Peru, tiveram o apoio de civis. Foram golpes civil-militares, corporativos em todos os países. O apoio do capital financeiro foi preponderante para a efetividade das ditaduras dos países que fizeram parte do “Operativo Condor”.
Em sua investigação, você conseguiu encontrar muitos casos “cruzados”, isto é, pessoas de um país vítimas da operação em outro país?
Sim. Todos os casos para sempre tipificados de Condor implicam em mais de um país envolvido. Vejamos o caso da Argentina, Naomi Molfino, quantos países implicados: Peru, Argentina, Brasil e com conexões com a Europa. Quem diria? Argentina, Naomi Molfino foi sequestrada no Peru, no dia 12 de junho de 1980, e apareceu morta no apartamento alugado no dia 19 de julho de 1980, em Madri, na Espanha.
Documento revela que a ditadura militar brasileira participou do processo do sequestro de Noemí Gianotto Molfino, numa ação da Operação Condor. Foi uma surpresa essa revelação feita pelo filho Gustavo Molfino. O documento é uma prova que o Brasil participou do processo do sequestro da argentina Noemí Gianotto Molfino, documento interno da Chancelaria da Argentina que comunica que recebeu notificação da Polícia Federal brasileira, comunicando que os militantes montoneros, no dia 23 de junho, 11 dias depois do sequestro em Lima, aportaram em Corumbá, no Mato Grosso. Depois, Noemí apareceu assassinada em Madri, Espanha, em 19 de julho de 1980.
A partir de que momento os governos sul-americanos começaram a reconhecer a existência da Operação Condor e quando se dispuseram a investigá-la?
É importante ressaltar que as vítimas, os familiares e os operadores dos direitos humanos na América Latina já sabiam que havia uma operação em curso de troca de informações. Os desaparecimentos aconteciam, havia uma vigilância total por parte dos aparelhos repressivos dos países. Veja o caso João Goulart. Não teve um só momento no exílio, entre Uruguai e Argentina, a partir de 1964 a dezembro de 1976 (quando o ex-presidente morreu), que Jango não tenha sido monitorado. O reconhecimento dos governos sul-americanos dessa grande conspiração de morte se deve à luta por verdade e justiça dos familiares, vítimas que lutaram em seus países, não se calaram, e ainda seguem lutando por verdade e justiça.
Foi em 1992, no dia 22 de dezembro, com a descoberta dos arquivos do terror, em Assunção, no Paraguai, que um grande volume de documentos comprova o que todos já sabiam (aliança entre as ditaduras do Brasil, Paraguai, Chile, Bolívia, Uruguai e Peru). Documentos revelam esse pacto criminal entre os regimes militares, que abordamos no documentário com o advogado Martín Almada. Um volume enorme de documentos comprovando efetivamente as reuniões com os chefes militares do Cone Sul, entre 1972 e 1981. Mais tarde verificaremos com os documentos desclassificados dos Estados Unidos, relações anteriores a esse período. Hoje, apesar de não termos mais dúvida do que foi a Operação Condor, temos muito a investigar e devolver às famílias das vítimas, o paradeiro exato dos seus filhos e filhas desaparecidos.
Como foi a procura e o processo de depoimentos de vítimas e familiares? Algum lhe tocou em especial, ou todos foram particularmente dolorosos?
Todos os casos me tocam de forma muito indelével. São histórias que se cruzam, similares, e uma única dor, seja de brasileiros, argentinos, chilenos, uruguaios, paraguaios, peruanos e bolivianos. Fomos a todos os países ouvir essa colcha de retalhos para que a verdade não fique inconclusa, para que essas pessoas (famílias) saibam o que aconteceu com seus familiares. Hoje sou o que sou, comprometido com a radicalidade dos direitos humanos por cada um deles que me ajuda a construir meu ethos pessoal. Sou uma pessoa melhor, humana, que aprendeu com eles.
Parte do documentário é dedicada ao caso do ex-presidente João Goulart, com imagens da exumação e do traslado do corpo de São Borja a Brasília. As análises sobre os fatores da morte de Jango foram inconclusivas. No filme, um militar parece desconfortável ao tratar do tema, dizendo estar apenas cumprindo as “normas regulamentares”, nada além disso. É um exemplo de como o tema ainda é visto no Brasil, explica um pouco dessa dificuldade em avançar. Pensa que pode haver mudança de entendimento no STF sobre a Lei da Anistia?
Entre os vários depoimentos, obtivemos o do ex-agente secreto Mário Neira Barreiro, da ditadura do Uruguai, que monitorou Jango no exílio. Além do monitoramento, relata o plano de eliminação do ex-presidente João Goulart, que morreu em 13 de dezembro de 1976, em Corrientes, na Argentina. Aguardamos os resultados dos laudos da Comissão Nacional da Verdade, para sabermos as causas reais da morte de Goulart. Esse resultado, vou concordar com Jair Krischke, "é inconcluso". Acredito que sua vida foi ceifada pela Operação Condor. Desde o monitoramento aos remédios que foram trocados são a causa real da sua morte. A responsabilização não é só dos regimes militares da região, mas da influência, apoio financeiro e logístico dos Estados Unidos.
No sepultamento de João Goulart, em 13 de dezembro de 1976, temos uma bandeira com o nome "Anistia", que só seria promulgada três anos depois. Hoje é uma pauta pendente sobre as circunstâncias da aprovação da Lei da Anistia. Qual é sua validade? Revisão ou reinterpretação frente aos tratados internacionais? O STF, no julgamento da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 153, em 2010, demonstrou que tem uma visão pela impunidade dos agentes do Estado que agiram criminalmente, prendendo, torturando, assassinando pessoas e fazendo pessoas desaparecer. Um STF que tem as mãos manchadas de sangue. Não me admira que é o mesmo STF que tem legitimado a atual ruptura institucional que passa o país.
Da mesma forma, ainda há muitas dúvidas sobre as circunstâncias da morte de Juscelino. Uma comissão municipal em São Paulo, inclusive, contestou a conclusão da comissão nacional. Esses pontos de vista são mostrados no documentário. O que pensar de mais esta “verdade inconclusa”?
Para alguns, é ponto final a Comissão Nacional da Verdade apontar que foi acidente, para mim não é. Algo está fora do eixo, abordamos essa disputa de narrativa da "verdade" entre as duas comissões. Na minha opinião, se temos algo para não descartar é o assassinato provocado de Juscelino no acidente da via Dutra. E você que ler esta entrevista, o que acha? Assista ao documentário e tire suas próprias conclusões.
O continente parece estar vivendo um momento de novo avanço do conservadorismo. No Brasil, houve quem pedisse a volta do regime militar para “consertar” o país. Como você vê esse momento político? E, nesse sentido, qual a importância que o documentário pode ter?
Sim, não só no Brasil, mas em todas as partes do mundo. Sabe aquela história do déjà vu? Como Marx já escreveu, a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Já tivemos momentos do Estado policial e militar, nos 21 anos de regime civil militar, de ditadura no país. O momento que vivemos no Brasil é de uma ditadura com ares de democracia, liberdade de imprensa e instituições funcionando. É preciso ocupar as ruas, o juiz Sérgio Moro, através da Operação Lava Jato, tem desrespeitado a democracia, o devido processo legal. A Operação Lava Jato é importante, mas revela o que todos já sabiam, as relações entre o Estado, partidos e grupos empresariais. A corrupção é sistêmica. Cada vez fica evidente o seu alinhamento com setores midiáticos, políticos e econômicos que são os golpistas de hoje, assim como em 1964. As cláusulas pétreas da Constituição de 1988 e o ordenamento jurídico têm sido aviltados em nome de uma sanha de combater a corrupção, quando na verdade o juiz Moro é unilateral e parcial. Não se combate a corrupção se aviltando a Constituição. Não existe imparcialidade nessa Operação Lava Jato.
No final do documentário, uma especialista avalia que dificilmente a Operação Condor será compreendida se os mesmos países que a fizeram não se juntarem para explicá-la. Você vê alguma possibilidade de isso acontecer?
Sim. Quando concluímos o documentário apontando caminhos a seguir, não estou dizendo que será fácil. Não é. Todos os crimes cometidos tiveram a participação dos países no Operativo Condor. Chegou a hora de todos sentarmos na mesa, e criarmos uma comissão regional para apurar esses crimes de lesa-humanidade. Cabe a nós, que somos operadores e militantes dos direitos humanos, seguirmos lutando pela verdade, memória e justiça.
Concorda com o juiz federal que diz que não pode haver pacificação esquecendo ou negando? O esquecimento perpetua a violência do Estado, mesmo sob a democracia?
Sim. O esquecimento perpetua a violência de todos os países na América Latina, Europa e mundo. Quando não apuramos os crimes cometidos pelos regimes civis-militares e pelos atuais governos “democráticos”, estamos mantendo o entulho autoritário e negando a efetividade de políticas públicas de direitos humanos.
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