A cumplicidade do Estado para que ex-genro de Pinochet fique com o lítio chileno
A cumplicidade do Estado para que ex-genro de Pinochet fique com o lítio chileno
20/01/2018 14:42
Por Cecilia Vergara Mattei
De costas para a cidadania e aproveitando a cortina de fumaça a visita do Papa Francisco ao país, a Corporação de Fomento à Produção (Corfo) prorrogou até 2030 a concessão dada à empresa SQM para extração de lítio no Salar de Atacama. A decisão contou com o aval não só da corporação estatal como também do governo de Michelle Bachelet.
Na audiência privada realizada em 17 de janeiro, as partes chegaram a um pacto país vários litígios devido às irregularidades na licitação vencida pela mineradora, acusada de corromper transversalmente a classe política chilena, financiando campanhas tanto da direita quanto da centro-esquerda – só a Frente Ampla ficou de fora das denúncias. Assim, os executivos da SQM asseguraram que irão aumentar sua produção anual a 216 mil toneladas até 2025, e assim ganhará mais cinco anos de direitos sobre as jazidas.
A decisão também se baseia no enganoso argumento de que o empresário Julio Ponce Lerou deixou a administração da empresa. Ex-genro de Augusto Pinochet, Lerou era um simples engenheiro florestal quando, sob as asas do sogro e graças à corrupção interna do regime militar, enriqueceu e chegou aos Anos 90 acumulando uma das maiores fortunas do país. Já durante os governos democráticos, já separado da filha do ditador, o empresário manteve sua influência na política chilena, e sendo um dos maiores financiadores de campanhas em todas as eleições.
Contudo, se especula que Lerou pretende repassar esses direitos a empresas chinesas. Ou seja, um dos maiores compradores da matéria-prima chilena passaria a usufruir também do lucro sobre essas estratégicas riquezas naturais? Logo, só faltaria uma bofetada final contra o que deveriam ser os interesses do Estado chileno: o arquivamento do processo contra a SQM por financiamento irregular de campanhas políticas.
O acordo desta semana inclui um pagamento total de 17,5 milhões de dólares além dos juros, valor que a SQM pagará a Corfo com o único propósito de colocar fim à disputa, além de um investimento adicional de 1 bilhão de dólares. A empresa assume também uma série de compromissos: passa a ser uma companhia desconcentrada, como estabelecem seus estatutos de SQM (descumpridos durante anos), tirando do controle o atual proprietário (Lerou) ou qualquer familiar “próximo”.
Ainda assim, se fala de modificações importantes no contrato, em comparação com o projeto inicial assinado entre as partes em 1993 – entre elas, o aumento nos pagamentos da empresa ao Estado e das tarifas associadas à venda dos diferentes produtos produzidos no Salar de Atacama.
Em julho passado, o geógrafo Georgio Martelli, um dos principais operadores da complexa máquina financeira montada para obter dinheiros destinados às pré-campanhas presidenciais de Michelle Bachelet (em 2013) e Eduardo Frei Ruiz-Tagle (2010), foi condenado a 731 dias de prisão e o pagamento de uma multa de 2,8 milhões de pesos chilenos – algo em torno de 14 mil reais.
Martelli foi declarado culpado pelos delitos tributários relacionados ao “Caso SQM”, uma investigação do Ministério Público que busca esclarecer o financiamento de atividades políticas por parte da mineradora, que foi apelidada como “a Odebrecht chilena”, quando o escândalo veio à luz.
A sentença contra ele encerrou as investigações e impediu que os chilenos conhecessem mais profundamente a origem do esquema e o montante total de benefícios adquiridos pela empresa com os contratos.
Todos os esforços efetuados pelo Palácio de La Moneda neste caso, desde janeiro de 2015, foram orientados à proteção da imagem da presidenta Bachelet, impedindo que ela fosse ligada ao caso e levada aos tribunais. O mesmo acontece com relação aos seus ministros e funcionários deste atual mandato e do anterior (entre 2006 e 2010).
A oposição de direita também fez o mesmo trabalho de blindagem do ex-presidente Sebastián Piñera, recentemente eleito para o seu segundo mandato. Durante o primeiro governo de Piñera, em 2012, foi entregue à SQM seu último contrato de concessão, o qual logo foi questionado pela Justiça por irregularidades na licitação que envolveram executivos da empresa e membros da equipe econômica. Em resumo, todos os setores eram cúmplices e atuaram em favor da impunidade tanto dos multimilionários quanto das elites políticas do país.
Em 1996, o Chile iniciou suas exportações de carbonato de lítio, sendo que em 2008 as vendas já superavam a cifra de 1 bilhão de dólares por ano, segundo o Banco Central chileno. Atualmente, a exploração do recurso está concentrada em duas companhias: a SQM, dona de 11,7% do mercado mundial, e a Sociedade Chilena do Lítio (SCL).
A SQM, através de suas subsidiárias, possui direitos exclusivos para explorar os recursos minerais de uma área com cerca de 196 mil hectares, no Salar de Atacama.
Esses direitos incluem 147 mil hectares que pertencem à Corfo e que são concessionadas à SQM. As medições efetuadas no Salar de Atacama indicam que o Chile possui a segunda maior reserva mundial de lítio – atrás apenas da Bolívia –, calculada em 4,3 milhões de toneladas.
O desenvolvimento desta indústria, no entanto, mostra a marca negativa das irregularidades em sua formação e crescimento, primeiro nos tempos em que o general Pinochet protegia os interesses da sua família, e logo quando o mega empresário Lerou, já desligado da família do ditador, contou com a cumplicidade da coalizão de centro-esquerda Concertação, que governou o país entre 1990 e 2010, a qual não só se omitiu com relação ao esclarecimento das origens espúrias da propriedade da empresa SQM como continuou outorgando-lhe concessões.
Nas últimas três décadas, alguns jornalistas se atreveram a indagar sobre a fortuna acumulada por Lerou e a forma como adquiriu a empresa SQM – cuja primeira concessão era para a exploração de salitre, não de lítio. Agora, a empresa aproveita a comoção em torno da visita papal para se fazer ainda mais dona do lítio chileno, com a cumplicidade do Estado na operação.
Cecilia Vergara Mattei é jornalista chilena e analista do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
Créditos da foto: Alfredo López | Agencia Uno
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