Na Sicília, "aconteceu uma coisa muito bonita: fomos invadidos por imigrantes"
Em Palermo, Catania e Sutera, longe de ver os imigrantes como ameaça, a população facilita sua integração. Sua chegada é considerada uma sorte para o sul da Itália, castigado por despovoamento e desemprego
14/01/2018 14:36

Por Eric Jozsef, Libération
"Se você me perguntar quantos imigrantes existem em Palermo, não vou responder 60, 70 ou 80 mil. Qualquer pessoa que vier para Palermo vira palermitano”. No enorme gabinete do Palácio das Águias que ocupa, quase sem interrupção, há mais de um quarto de século, Leoluca Orlando, prefeito da capital siciliana, exibe determinação. O democrata cristão de esquerda que transformou profundamente Palermo ao enfrentar a Máfia e fortalecer o turismo – o impressionante centro histórico árabe-normando foi declarado Patrimônio Mundial da Humanidade em 2015 – assume orgulhosamente sua política de acolhimento de estrangeiros: "Palermo, que já era uma cidade de imigrantes em seus monumentos, finalmente se tornou de imigrantes em sua população". Ele prossegue: "O futuro tem dois nomes: Google e Ali, o imigrante. O Google expressa a conexão virtual, e Palermo é hoje a cidade mais bem cabeada e informatizada do Mediterrâneo. Ali, o imigrante representa a conexão humana. Queremos ser uma cidade acolhedora e moderna".
Socorridos em alto mar
Apesar da crise e do desemprego, a Sicília, assim como Palermo, derruba o preconceito de que a chegada de estrangeiros em massa, combinada com dificuldades econômicas, seria sinônimo de uma bomba política e social. "Para um político, o termômetro de consenso é a eleição. Em junho, fui o único prefeito da Itália eleito no primeiro turno”, aponta Leoluca Orlando. “Recebi mais votos do que cinco anos atrás. Acredito que os imigrantes nos confrontam com quem somos enquanto seres humanos”. De cursos de italiano para imigrantes, ao acolhimento de menores estrangeiros, passando por abrigos para os requerentes de asilo, a prefeitura de Palermo não economiza em iniciativas para facilitar a integração.
Do outro lado da ilha, o porto de Catania, na costa leste da Sicília, é, há alguns anos, palco de desembarques de barcos cheios de viajantes desesperados. "Especialmente a partir do segundo semestre de 2013", precisa o prefeito-adjunto da região, Tommaso Mondello, responsável pelo desembarque dos imigrantes. Com o fechamento da rota dos Bálcãs, a maioria dos barcos vindos do sul do Mediterrâneo chega pelo Canal da Sicília. Os ocupantes das embarcações são geralmente resgatados em alto mar, depois encaminhados diretamente para os portos de Pozzallo, Augusta ou Catania, sem passar mais pela pequena ilha de Lampedusa. "Catania é hoje a porta de entrada para a Europa. O porto é maior, portanto mais conveniente para os desembarques", explica Mondello.
Em três anos, quase meio milhão de pessoas chegaram à Itália pelo mar. Só em 2017 foram aproximadamente 120 mil. A maioria dos imigrantes tenta continuar a jornada para o norte da Europa ou é redistribuída para outras regiões italianas, mas dezenas de milhares de pessoas permanecem a cada ano na Sicília, à espera de um visto de residência ou de um estatuto de refugiado político.
"O sistema de recepção de migrantes no porto está bem azeitado”, diz o prefeito-adjunto. “Coordenamos tudo. Entramos em contato com os guardas costeiros para saber o horário exato de chegada. A prefeitura avisa todos os atores envolvidos no desembarque: polícia, prefeitura, proteção civil, serviços sociais, Cruz Vermelha, organizações humanitárias". Assim, os voluntários da comunidade católica de Sant'Egidio, que cuidam dos menores não acompanhados ao desembarcar, estão em contato direto pelo WhatsApp e prontos para, a qualquer momento, ir até ao porto.
"Desde 10 de agosto de 2013, data do primeiro desembarque em Catania, nossa vida mudou um pouco", diz Rosaria, uma jovem voluntária. “Naquele dia, em pleno verão, um barco com alguns jovens a bordo chegou bem perto da praia. Quando estavam a alguns metros da costa, mergulharam. Seis deles se afogaram. Isso mobilizou a cidade”. A seu lado, outra membra da comunidade, Angela Pascarella, ilustra a mobilização da população: "a partir daquele dia 10 de agosto, começamos a enviar mensagens.
Precisávamos de cobertores, de toalhas e comida. Isso aqui estava cheio de gente", lembra, apontando para a grande sala da associação localizada no coração de Catania, a poucos passos da Catedral de Sant'Agata. "Toda a população trouxe alguma coisa. Os sicilianos estão abertos para receber os imigrantes".
"Acolher os vivos"
É o caso de Gaetano, um funcionário público sexagenário que vem regularmente dar uma mão na distribuição de sopa, feita perto da estação de Catania: "Quando vemos pessoas passando necessidade, não podemos não fazer nada. No passado, fomos imigrantes e, portanto, sabemos o que significa ser acolhido num país estrangeiro. Assim, sentimos necessidade de ajudar. Para nós, é normal. Não somos como alguns países do norte da Europa, que contam com uma calculadora quantas pessoas devem ou não deixar entrar. Ajudamos o máximo que podemos".
Desde 2013, a mobilização se mantém. Uma rede de solidariedade excepcional se organizou e se estruturou gradualmente em toda a Sicília, sustentada em grande parte por associações de voluntários, mas também por autoridades locais corajosas. Em outubro de 2013, Giuseppe Grizzanti, médico e prefeito da pequena cidade de Sutera, recebeu uma ligação da prefeitura de Agrigento. Um barco havia naufragado perto de Lampedusa. Havia mais de 300 mortos. As autoridades queriam saber se havia espaço no cemitério da cidade para enterrar algumas vítimas. "Não tínhamos nenhuma sepultura disponível", lamenta o prefeito. “Mas então pensamos que, em vez de acolher os mortos, poderíamos receber os vivos. Em Sutera, especialmente, há muitas casas vazias".
Após a guerra, Sutera tinha cerca de cinco mil habitantes. Mas a partir da década de 1960, a pequena cidade localizada a 600 metros acima do nível do mar começou a perder habitantes, que partiam para o norte para participar do esforço de industrialização da Itália. "O bairro de Rabato, uma antiga casbá que lembra a presença árabe por volta de 1100, já foi um dos mais populosos da cidade. Havia pelo menos 500 pessoas. Hoje, os moradores não passam de 30 famílias”, diz Giuseppe Grizzanti. Hussein, um jovem paquistanês que chegou a Sutera há dois meses, foi recebido em uma casa no meio das ruas íngremes que fazem de Rabato "uma dos mais belos vilarejos da Itália".
Antídoto contra o crime
Tal como acontece com outras pequenas cidades do Mezzogiorno, a presença de imigrantes ajudou a inverter a curva demográfica, e os subsídios estatais para a recepção de refugiados estimulam a atividade econômica do município. Especialmente através do aluguel de casas e do financiamento da Associação dos Girasoli, que gerencia o programa de integração. "No começo, abrigamos quinze pessoas, e pouco a pouco chegamos a 50", explica o diretor da organização, Nunzio Vitellaro. “Eles vêm da Tunísia, do Sri Lanka, Nigéria, Gâmbia, Paquistão, Afeganistão... Graças aos seus filhos, a escola se mantém aberta. Em 2016, houve seis nascimentos em Sutera. Cinco eram filhos de estrangeiros. Eles são agora parte da cidade".
É o que confirma Margareth, uma jovem nigeriana que vive com seus três filhos em uma pequena casa de dois andares no centro do vilarejo: "Aqui em Sutera, está tudo muito bem. Todos são simpáticos. Eles realmente cuidam de nós. Os vizinhos são fantásticos. Quero ficar aqui porque as pessoas são calorosas e gentis”. Não há hostilidade significativa entre a população. O guarda local, Sandro, faz apenas uma observação: "Para a comunidade é bom, mas eles teriam que trabalhar, e aqui não há trabalho, nem para nós nem para eles”. Margareth faz faxinas. Por falta de trabalho no local, a maior parte dos recém-chegados será condenada, em longo prazo, a se mudar para o norte, o mesmo percurso feito anteriormente pelos emigrantes de Sutera. "Eles costumam ficar aqui por alguns meses, para obter alguns documentos ou fazer algum curso de formação, e então vão embora e são substituídos por outros migrantes", explica Vitellaro.
"Os sicilianos sofrem como a gente, pois não há trabalho", diz Youssef, um argelino de 39 anos sentado aguardando a distribuição de sopa em Catania. Alguns imigrantes são explorados nos campos agrícolas, outros são extorquidos pela máfia, mas "a verdade é que não há muitos racistas na Sicília", conclui Youssef. Para Orlando, a presença de imigrantes é um antídoto contra o crime organizado: "Até os meus 30 anos, não vi um único imigrante em Palermo. Porque a máfia os afastava. Ela tem medo da diversidade”. Ele se entusiasma: "Desde que tornei prefeito e a máfia já não governa mais a cidade, aconteceu uma coisa extremamente bonita: fomos invadidos pelos imigrantes".
O sentimento é compartilhado pelo jornalista e escritor Gaetano Basile, para quem a presença de estrangeiros permite à Sicília retomar em parte sua vocação de cruzamento do Mediterrâneo: "A unificação italiana (em meados do século XIX) foi uma desastre. Ela nos cortou do sul: tivemos que falar, nos vestir, e olhar apenas para o norte. Nós nos tornamos como o povo da Saboia (região de montanha no sudeste da França, fronteiriça com a Itália). Deste ponto de vista, a chegada dos imigrantes hoje é boa para nós, eles reanimam bairros que estavam abandonados. Minha cidade renasce graças a eles”. Para provar, Basile cita as feiras, como a de Ballaro, no coração de Palermo, que mistura sabores, especiarias, música e dialetos como nos tempos dos normandos, árabes, judeus e espanhóis: "Isso nos permite imaginar o que foi Palermo no ano 1000. Ao meio dia, sentimos os cheiros da cozinha do oriente, o açafrão, muitos odores que não são nossos, misturados com tomate e manjericão. E me digo: Palermo está viva".
Tradução de Clarisse Meireles
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Na-Sicilia-aconteceu-uma-coisa-muito-bonita-fomos-invadidos-por-imigrantes-/6/39122
Créditos da foto: wikicommons
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