6 de mar. de 2018

A Reforma de Córdoba e uma tentativa de “auto-sequestro” da Operação Condor (por Sebastião Pinheiro)

A Reforma de Córdoba e uma tentativa de “auto-sequestro” da Operação Condor (por Sebastião Pinheiro)

Ação da Operação Condor por pouco não vitimou Sebastião Pinheuro, quando ele vivia na Argentina. Foto: Guilherme Santos/Sul21
 Sebastião Pinheiro (*)
Ao iniciar 2018 comemorei 50 anos de ter cruzado em trem desde o ponto 21.2525° S, 48.3257° W, até o ponto 34.9205° S, 57.9536° W. Não é muito, é menos da metade das terras habitáveis do Hemisfério Sul, mas foi uma aventura. Agora vou relatar uma tentativa de “auto-sequestro”, artimanha peculiar sob as asas da Operação Condor ao serviço do império, que muito pouco não me vitimou.
Os escravos africanos no Norte olhavam o céu e procuravam a constelação do Arado que denominavam Cabaça de Agua (Dipper Maior, Dipper Menor). Hayes escreveu sua canção:“The Drinking Gourd song was supposedly used by an Underground Railroad operative to encode escape instructions and a map”. Bem, é  possível que vocês não saibam, mas o Cruzeiro do Sul é uma constelação que serviu não só aos grandes navegadores, mas também aos escravos africanos no Brasil. Sua importância para a navegação é remarcada nas bandeiras de cinco nações, todas elas com a mesma constelação, no entanto, em uma delas a constelação aparece invertida, não por erro, mas por premeditação, uns dizem mística, outros pelo elitismo positivista do virtual sobre o real.
O Cruzeiro do Sul era a orientação dos escravos desde Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro para chegar a Buenos Aires onde a escravidão era uma desgraça, menos rigorosa que na Colônia &Império. Durante as invasões inglesas, o Batallión de Morenos, foi encarregada de defender Buenos Aires.
Reforma universitária de Córdoba antecedeu ao maio de 1968 de Paris em 50 anos.
Olhando o céu a segui por outra razão mais importante, o cinquentenário da Reforma de Córdoba, uma Universidade tirada do controle da elite rançosa, religiosa (jesuítica), e entregue ao povo. A resposta foi rápida o país conseguiu três prêmios Nobel em ciência em 40 anos, depois ganhou mais dois. Ela antecedeu ao maio de 1968 de Paris em 50 anos.
Em La Plata, na Província de Buenos Aires, eu vivia bem, pois tenha liberdade, estudava na Faculdade de Agronomia (fundada em 1883) e trabalhava vendendo jornais das 19h30min até a meia noite, em frente à “La Querencia”, um copetín al paso onde todos tomava um copo de vinho e comiam um “pão com salsichão” e alguns jogavam bilhar, outros organizando trambiques e pungas.
Era feliz, pois a liberdade e estudar é tudo, constrói o presente, o futuro respaldado pelo passado.  Ganhava por noite cerca de cem pesos, aproximadamente dez dólares quando necessitava 30  para viver um mês. Nas sextas feiras e domingos trabalhava das 12 até meia noite e ganhava até “3 Lucas” (3 mil pesos, aproximadamente, quando o Estudiantes de La Plata foi campeão na Libertadores. Ganhava o equivalente a 3 salários  mínimos brasileiros e tinha comida de ótima qualidade grátis, paga pelo povo argentino e convívio cultural que imitava Londres, Berlim e Paris sem suas cicatrizes e neuroses.
Tudo ia muito bem.  Em uma noite fria de agosto vendia meus jornais colocados sobre duas cadeiras de madeira emprestada pelos garçons do “La Querencia”. Eram 22 horas e um senhora jovem, argentina desconhecida,  parou defronte a mim e de forma surpreendente disse: “Você é Da Silva Pinheiro, que estuda Agronomia”. Atônito assenti, e ela ordenou: “Depois de amanhã do Aeroparque sairá um avião brasileiro da Força Aérea e o levará ao Rio de Janeiro para que firme os papeis do trâmite de uma Bolsa do Ministério de Educação.
Imaginem minha alegria, eu tinha um telegrama enviado por um juiz de direito (Miguel René da Fonseca Brasil) “irmão” de meu pai que fora adotado fazendo a solicitação ao Ministro das Relações Exteriores Juracy Magalhães. Ela me deu um papel datilografado com o horário e os ônibus que tinha que tomar na Plaza Constitución, bem cedo pois o voo saía as siete da manhã .
O avião era do Correio Aéreo Nacional C..A.N um Lockheed Hércules C-130.  Eufórico cheguei ao Rio de Janeiro. No desembarque os policiais se assustaram: “Esse cara saiu por Uruguaiana”. Esperei meia hora para poder entrar ao país, sem perceber nada, tal era minha felicidade, tinha ganho a loteria.
Fui direto ao Ministério de Educação, instalado em um edifício belíssimo idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Uma diretora de nome Gomide me atendeu muito bem, mas não sabia nada sobre a assinatura da bolsa. Orientou-me a ir ao Ministério do Trabalho. Assim o fiz, mas tampouco ali encontraram indícios de algum trâmite relacionado com a bolsa. Comecei a desconfiar da minha sorte e entre ir ao Ministério de Relações Exteriores, decidi ir ao Ministério da Aeronáutica e me informar sobre o meu retorno, pois não podia perder tempo, estava perdendo aulas na Universidade e corria o risco de perder matérias, incluso o ano escolar.
Não queriam me deixar entrar, pois não estava usando gravata. Improvisei uma meia negra no pescoço e pude ir até uma direção de comando. Expliquei o que me havia informado la jovem senhora argentina. Eles responderam negando a existência de qualquer registro do consulado brasileiro, nem passagem de retorno. Diante da minha súbita perda de cor no rosto e cair sentado na poltrona o cabo da aeronáutica me reanimou e disse, “calma garoto, o “cabo velho” vai te por no voo para Montevideu e ali estarás pertinho de Buenos Aires”. Mas para sair do Brasil, alertou-me, tens que solicitar uma autorização do Ministério da Fazenda, pois o voo sai de manhã cedinho, um avião pequeno DC-3.
Para obter o visto de saída necessitava contar com uma pessoa que ficasse responsável por mim perante a Fazenda Nacional pelos impostos e rendas. Corri à Polícia, apresentei o endereço da minha tia na Favela do Mutuapira, em São Gonçalo e, depois de muita argumentação, consegui o nada consta do DOPS, que demorava uma semana. Fui ao Ministério de Agricultura onde encontrei o médico veterinário Dativo Cavalcanti, um desconhecido, natural do interior do Estado de São Paulo. Expliquei-lhe o que me havia sucedido e que necessitava uma pessoa que assinasse para que eu pudesse viajar. Em um ato de camaradagem por ser também técnico em agricultura, ele assinou, solicitando que eu lhe enviasse toda a documentação sobre pós graduação na UNLP,  o que depois fiz com gosto.
Para não correr riscos de perder o avião fui à Base Aérea de Santa Cruz, ao lado do aeroporto do Galeão, de onde saiam os voos do CAN e ali fiquei sentado esperando.
Não comia fazia dois dias, e ainda que com fome, tal necessidade não era prioritária. Chegaram dois caras, um marinheiro armado e um jovem loiro de cabelos compridos no estilo “playboy”, sorridente que puxou conversa e queria saber porque eu estava ali. Contei-lhe minha desdita sem desconfiar. Eles me convidaram para tomar uma cerveja. Expliquei que não tinha dinheiro e eles responderam: “Você estuda, nós pagamos a cerveja”, o que me despertou uma suspeita. Eu passei toda a minha vida em casa de parentes. Me perdoem, mas, em muitos aspectos, é pior do que estar na casa de estranhos. Depois fui estudar agricultura em um sistema de internato onde não há família ou conselhos, somente normas, regras, punições e a comida. Contudo, meu melhor aprendizado foi na Favela do Mutuapira, onde as crianças aprendem a perceber o que uma pessoa quer sem que ela fale uma palavra ou mova um músculo.
Em La Plata, já havia sido aprovado em seis exames na revalidação do curso secundário, três matérias na Faculdade com exames orais, o que fomentou em mim a perspicácia em perceber a pergunta e respondê-la bem, mesmo quando não se tem a profundidade sobre o que é perguntado e se é obrigado a raciocinar em situação de emergência.
Depois de um dia correndo desesperado atrás de documentos, cansado, já tinha a certeza absoluta que havia sido “repatriado” contra minha vontade pelo Centro de Informações do Ministério de Relações Exteriores (CIEX). E suspeitava que estava, sendo interrogado pelo “playboy” que, pela forma de falar, era um oficial de Marinha ou cadete. O outro era um soldado forte, armado e possivelmente agente de repressão do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR). A senhora desconhecida em La Plata com certeza era uma agente da  Operação Condor (SIDE)…
O que me intrigou é que la perguntas do “playboy” visavam provocar uma reação corporal e a resposta não importava, mas é nesses casos que as crianças de favela são sapecas. Elas dissimulam, pela sobrevivência. Se eu cometesse qualquer deslize não embarcaria no avião e esse era o menor risco que eu corria. Foi um jogo de gato e rato que durou toda a noite, em meio à cerveja, que era imposta, e tampouco podia se rechaçada para não despertar suspeita. Eu já havia lido e estudado o livro Martín Fierro, que ensina: O medo e susto faz passar a embriaguez. Na conversa, me informaram da noticia: “A polícia matou o estudante Edson Souto dentro do Calabouço”. Eu vendia jornais e os lia. Sabia tudo que ocorria no Brasil com mais detalhe que os brasileiros, pela censura.
Meus “benfeitores” receberam minha resposta que os deixou sem reação: “Quando ocorreu isso?” e sem respirar, desviei do assunto: “Tive um amigo no Colégio de Agricultura de nome Edson, que morreu afogado por não saber nadar. Caiu do barco enquanto pescava, um mês depois da nossa graduação. Era o melhor lateral direito da escola (R.I.P Edson Pereira Gabaldi, Baixinho)”. A pergunta derradeira era um sinal de que ele havia jogado a toalha: ” Você não pensou em entrar para a luta armada contra o governo?” Foi seu erro, não usou a expressão ditadura ou forças armadas. – “Estudando conseguirei fazer muito mais, e com meu trabalho construirei felicidade”, minha convicção ao responder os desconcertou. Fiquei só, já começava a nascer o Sol, pouco depois estava à bordo.
Cheguei ao aeroporto de Carrasco em Montevideu às 18 horas, após quatro escalas. Era 9 de agosto de 1968 e havia uma greve geral, pois a ditadura estava instalada com Pacheco Areco. Quando disse que ia a pé de Carrasco a Montevideu um senhor me disse: “Vem comigo que te deixo no porto, pois não vais chegar a Colônia já que não há trens pela Greve.  No porto tens o vapor da Carreira que é argentino”. Cheguei ao porto e um vigilante confirmou a saída da embarcação em duas horas, mas esclareceu-me que não aceitavam dinheiro brasileiro, só argentino e uruguaio. O pouco que eu tinha eram cruzeiros. O senhor abriu o jornal e me mostrou a cotação do cruzeiro e me trocou o dinheiro, 62 pesos, por moedas argentinas. Cheguei a Buenos Aires às seis da manhã e fui a Praça Constitución a pé, não era longe, pois não tinha para o ônibus. Em La Plata passei pela casa do colega de aulas Juan Carlos Dongo, um peruano, que me disse: “Que bom que chegaste, tens que recuperar duas práticas de química para entrar em lista de exame; senão estás reprovado. Tens 5 minutos para começar, toma as minhas pastas”. Pedi e recebi um pedaço de pão velho. Fiz as lições, entrei na lista e três meses depois aprovei a terceira matéria mais difícil da carreira. A tormenta brasileira ficou deslocada para suas elites, mas eu posso comemorar o Centenário da Reforma de Córdoba.
Reforma de Córdoba está completando cem anos.
Jonas esteve nas vísceras do grande peixe. Eu me fiz defecado por ele, mas o faminto quis tragar-me outra vez,  seis meses depois da Liberdade e saborear a Reforma Universitária. Eu necessitava retornar e cumprir minha pregação em Nínive, por uma vontade superior à minha pessoa pelo que está escrito no Manifesto Liminar da Reforma de Córdoba.
Quinze anos depois, na greve de professores na Universidade de Rio Grande, após una conferência para os grevistas, um agente da ditadura, infiltrado, perguntou: Tu és a favor da luta armada? Experiente, bem sóbrio. Sim, lógico, mas com essa arma, golpeando a fronte com o indicador esquerdo. Sim, a Operação Condor esteve e está por toda parte!
No Programa “Fatos e Versões”, a apresentadora relatou que, segundo as Nações Unidas, o  Brasil necessitará de 265 anos para alcançar o nível de leitura dos países socialmente desenvolvidos e 75 anos para o conhecimento em matemáticas. Nas universidades nacionais as elites se reciclam para consolidar o Cruzeiro do Sul virtual. Os jovens secundaristas igual ao estudante morto no calabouço, foram vítimas da repressão, na Operação Lapices Rotos.
Antecipemos as comemorações do Centenário da Reforma de Córdoba para que as pessoas possam perceber seu significado  e entender os 50 anos da rebelião estudantil em Paris em 1968.
Com sorte em mais sete anos possa registrar a nova tentativa do grande peixe em tragar-me quando trabalhava em uma cooperativa rural no interior do Rio Grande do Sul. Isso foi mais divertido.  Vou começar a escrevê-lo agora, caso sofra algum percalço, encarrego alguém de posta-lo “post morten”…
(*) Segue abaixo um trecho do “Manifiesto Liminar de la Reforma Universitaria  del 21 de Junio de 1918”
La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica.
Hombres de una República libre, acabamos de romper la última cadena que, en pleno siglo XX, nos ataba a la antigua dominacióh monárquica y monástica. Hemos resuelto Ilamar a todas Ias cosas por el nombre que tienen. Córdoba se redime. Desde hoy contamos para el país con una vergüenza menos y una libertad más. Los dolores que quedan son Ias libertades que faltan. Creemos no equivocarnos, las resonancias del corazón nos lo advierten: estamos pisando sobre una revolución, estamos viviendo una hora americana.
La rebeldía estalla ahora en Córdoba y es violenta porque ahí los tiranos se habían ensoberbecido y era necesario borrar para siempre el recuerdo de los contrarrevolucionarios de Mayo. Las Universidades han sido hasta aquí el refugio secular de los mediocres, la renta de los ignorantes, la hospitalización segura de los inválidos y lo que es peor- el lugar donde todas Ias formas de tiranizar y de insensibilizar hallaron la cátedra que las dictara. Las Universidades han llegado a ser así fiel reflejo de estas sociedades decadentes que se empeñan en ofrecer el triste espectáculo de una inmovilidad senil. Por eso es que la ciencia, frente a estas casas mudas y cerradas, pasa silenciosa o entra mutilada y grotesca al servicio burocrático. Cuando en un rapto fugaz abre sus puertas a los altos espíritus es para arrepentirse luego y hacerles imposible la vida en su recinto. Por eso es que, dentro de semejante régimen, las fuerzas naturales Ilevan a mediocrizar la enseñanza, y el ensanchamiento vital de los organismos universitarios no es el fruto dei desarrollo orgánico, sino el aliento de la periodicidad revolucionaria.
Nuestro régimen universitario aún el más reciente- es anacrónico. Está fundado sobre una especie de derecho divino; el derecho divino del profesorado universitario.
Se crea a sí mismo. En él nace y en él muere. Mantiene un alejamiento olímpico. La federación universitaria de Córdoba se alza para luchar contra éste régimen y entiende que en ello le va la vida. Reclama un gobierno estrictamente democrático y sostiene que el demos universitario, la soberanía, el derecho a darse el gobierno  propio radica principalmente en los estudiantes.
EI  concepto de autoridad que  corresponde y acompaña a un director o a un maestro en un hogar de estudiantes universitarios no puede apoyarse en la fuerza de disciplinas extrañas a la sustancia misma de los estudios. La autoridad, en un hogar de estudiante, no se ejercita mandando sino sugiriendo y amando: enseñando. Si no existe una vinculación espiritual entre el que enseña y el que aprende, toda enseñanza es hostil y de consiguiente infecunda. Toda la educación es una obra de amor a los que aprenden. Fundar la garantía de una paz fecunda en el artículo conminatorio de un conminatorio reglamento o de un estatuto es, en todo caso, amparar un régimen cuaternario, pero no una labor de ciencia. Mantener la actual relación de gobernantes y gobernados es agitar el fermento de futuros trastornos. Las almas de los jóvenes deben ser movidas por fuerzas espirituales. Los gastados resortes de la autoridad que emanan de Ia fuerza no se avienen con lo que reclaman el sentimiento y el concepto moderno de Ias Universidades. EI chasquido del látigo sólo puede rubricar el silencio de los inconscientes o de los cobardes. La única actitud silenciosa, que cabe en un instituto de ciencia, es el del que escucha una verdad o la del que experimenta para creerla o comprobarla…..  [el texto continúa]
https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2018/03/reforma-de-cordoba-e-uma-tentativa-de-auto-sequestro-da-operacao-condor-por-sebastiao-pinheiro/

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