ONSIDERAÇÕES INICIAIS - http://www.usp.br/cje/radiojornalismo/antigo/index2.php?id=502
Esta pesquisa de mestrado surgiu de uma vontade, de uma inquietação e de um
compromisso militante, que foram semeados e cultivados desde o início dos anos 2000.
Primeiro, veio a paixão pelo rádio, ainda no curso de graduação em Jornalismo.
Diversos foram os motivos. A instantaneidade, a oralidade, a facilidade em transmitir a
informação a partir dos mais improváveis locais e, principalmente, a veia mais democrática
que outros meios de comunicação. Sim, afinal, o rádio é mais barato na comparação com a
televisão e o jornal e, por isso, pode se tornar – ainda que fora da legalidade – um instrumento
político de setores da sociedade tradicionalmente excluídos da mídia como emissores. Além
disso, não é preciso – teoricamente, uma vez que a comunicação é por voz e não por imagem
do emissor – estar dentro dos padrões estéticos impostos pela sociedade, como no caso da
televisão, na qual muitas vezes o “rosto bonito” ― e, por que não dizer, branco e magro ― é
condição sine qua non para estar na telinha na condição de emissor de informação, como
repórter ou apresentador. Não obstante, o custo de um receptor de rádio ― especialmente o
velho e imbatível “radinho de pilha” ― é muito menor na comparação com a tevê e não exige
pagamento periódico para acessá-lo, como no caso do jornal, por exemplo. E, por fim, a veia
mais “democrática” do rádio fica evidente, uma vez que tal meio de comunicação atinge
melhor a população não letrada, na comparação com veículos impressos, por exemplo.
Em meados de 2002, passei a coordenar o programa de rádio do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Vozes da Terra. Foi a feliz conciliação entre minha
paixão profissional e meu desejo de ter uma militância política. Ali fui apresentada, ainda que
tardiamente, à América Latina. Se na escola me ensinavam tudo sobre as Revoluções
Francesa e Industrial, quase nada aprendi sobre os hermanos e hermanas do Brasil – a não
ser, basicamente, a localização geográfica desses países. Sobre essa situação, vale relembrar
José Martí1:
A história da América, dos incas para cá, deve ser ensinada minuciosamente, mesmo
que não se ensine a dos arcontes da Grécia. A nossa Grécia é preferível à Grécia que
não é nossa, nos é mais necessária (MAO JUNIOR, 2007, p. 108).
1
José Martí (1853-1895), apóstolo da independência de Cuba.
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Visitei Cuba em dezembro de 2003, após a conclusão do curso de Jornalismo, em
uma viagem de 15 dias, de férias. Queria conhecer a história da ilha socialista e ver com meus
próprios olhos o legado da revolução comandada por Fidel Castro ainda naquela época, 45
anos depois de findada a guerrilha2 na Sierra Maestra. Nessa ocasião, no tradicional Museu
da Revolução, fui apresentada à Radio Rebelde. Nunca tinha ouvido nada sobre essa emissora
histórica que existe até hoje3 e que, durante 311 dias, em 1958, foi instrumento do Exército
Rebelde contra a ditadura de Fulgêncio Batista. Na época, em que o MST mantinha
arduamente4 algumas dezenas de emissoras de rádio em acampamentos e assentamentos pelo
Brasil afora5, me parecia que a experiência da Radio Rebelde teria muito a ensinar aos
“rebeldes sem-terra brasileiros”. Aliás, a ensinar a todos os povos da América Latina. Até
porque não se trata de estudar Cuba somente, mas de pesquisar nossa própria história, como
latino-americanos, com passado comum de exploração, opressão e resistência.
Tendo retornado, descobri que eram poucas as informações sobre a Radio Rebelde
no Brasil ou na internet. Por que essa experiência não recebeu a devida atenção em
publicações pelo mundo afora?
Uma década se passou e eu estava convencida de que precisava dar uma modesta
contribuição na tarefa de registrar a história da Radio Rebelde e entender – e, quiçá, tentar
explicar – o papel de uma emissora clandestina, montada em uma guerrilha na Sierra Maestra
há mais de 50 anos na estratégia para a derrubada da ditadura em Cuba e consequente vitória
da revolução.
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Entende-se como período de guerrilha na Revolução Cubana o intervalo entre o dia de desembarque (2 de
dezembro de 1956) em território cubano da expedição do iate Gramna, oriunda do México, ao dia 1º de janeiro
de 1959, considerado marco do triunfo dos revolucionários sobre o Exército da ditadura de Batista, já que os
rebeldes deixam a Sierra Maestra e ocupam as cidades cubanas. Portanto, trata-se de um período de 25 meses.
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A Radio Rebelde completou 57 anos em 24 de fevereiro de 2015. Atualmente tem sede em Havana e conta com
programação 24 horas por dia e alcance de 98% do território cubano. É transmitida nas frequências AM (670 -
710 – 1180 Khz), FM (96.7 Mhz) e OC (bandas de 31m e 49m), além da internet. Os programas têm caráter
essencialmente informativo, com destaque à cobertura de eventos esportivos. Possui 274 funcionários,
garantindo a presença de jornalistas em todas as províncias do país, inclusive no município especial Isla de la
Juventud. Hoje se identifica como Radio Rebelde: Al ritmo de la vida. Fonte:
http://www.radiorebelde.cu/quienes-somos/. Acesso em 13 de setembro de 2013.
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A luta constante era contra a apreensão de equipamentos e a prisão de militantes das rádios não legalizadas pela
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e pela Polícia Federal, bem como havia o desafio de manter
financeira e editorialmente uma programação com conteúdo atrativo e alinhado aos princípios do MST.
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Um levantamento parcial realizado pelo Setor Nacional de Comunicação do MST em 2015 apontou que, de 14
estados consultados, 11 possuíam alguma iniciativa em rádio (emissora propriamente dita, rádio-poste, espaço
comprado/cedido em emissoras da localidade etc.).
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Assim, entre julho e agosto de 2011, retornei a Cuba, em viagem de 15 dias, desta
vez com o apoio do MST6, com o propósito de fazer uma primeira pesquisa exploratória para
saber se haveria condições de levar adiante uma possível pesquisa de mestrado sobre o
assunto. Eu ainda não havia prestado a seleção para a pós-graduação. Existiriam gravações
das transmissões? Haveria combatentes vivos para contar essa história? Ouvintes? Será que
encontraria publicações sobre a emissora?
Trabalho de campo
A escolha da data para a segunda viagem a Cuba não foi aleatória. O objetivo era
estar no país no Dia da Rebeldia Nacional: 26 de julho. Trata-se de uma data de
comemorações oficiais em toda a ilha: o aniversário dos assaltos aos quartéis Moncada e
Carlos Manuel de Céspedes pelos rebeldes liderados por Fidel Castro em 1953. O episódio é
considerado o marco do nascimento do Movimiento Revolucionário 26 de Julio (M-26-7) e da
luta armada clandestina. Essa sim é a data mais comemorada – em termos de eventos oficiais
– como aniversário da Revolução Cubana, e não 1º de janeiro de 1959, dia em que o último
grupo de rebeldes desceu a Sierra Maestra vitorioso, com a tomada do país e a fuga do
ditador. Para os cubanos, trata-se de celebrar a gênese do M-26-7.
Anualmente, uma cidade é selecionada pelo governo cubano como sede do ato
oficial de 26 de julho, que conta sempre com a presença de vários combatentes vindos de
diversas partes da ilha e do presidente do país, Raúl Castro. Estar presente nesse ato oficial,
portanto, era uma oportunidade de estar com diversas fontes em potencial em um mesmo local
e data, ocasião ainda mais rara quando se pensa que os poucos combatentes ainda vivos são,
sem exceção, idosos. Vale registrar que o Exército Rebelde era integrado, não raro, por jovens
com menos de 30 anos e que hoje, se vivos, estariam com mais de 70 ou 80 anos.
Embora a participação como espectador dessa cerimônia não seja aberta a
qualquer pessoa – pois o público é organizado por indicações de organizações locais da
comunidade e é altamente disputado –, eu poderia participar como jornalista internacional e
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O apoio do MST à minha pesquisa se traduziu em me colocar em contato com pessoas em Cuba as quais,
posteriormente, se tornariam fundamentais para a pesquisa, bem como no credenciamento junto ao Centro de
Prensa Internacional (CPI), do Ministério das Relações Exteriores, como jornalista militante do movimento. Tal
apoio me auxiliou nos contatos com fontes, uma vez que os cubanos, em geral, conhecem e admiram a luta do
MST no Brasil e sabem de sua solidariedade para com a Revolução Cubana. Ou seja, chegar às fontes em Cuba e
me apresentar como uma jornalista brasileira não se traduz na mesma receptividade que tive como jornalista
brasileira militante do MST.
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me juntar ao coletivo da imprensa estrangeira que cobriria o evento. Foi o que fiz tanto nessa
segunda viagem como na seguinte, em 2013.
Em 2011, a cidade que sediou o ato oficial foi Ciego de Ávila. Após a cerimônia,
tentei localizar combatentes que estiveram na Sierra Maestra. Quase em vão, já que os que ali
estavam eram rebeldes que participaram do assalto ao Moncada, e não da guerrilha
propriamente dita. Contudo, por uma “quase sorte”, no hotel onde tais combatentes se
hospedaram conheci Arsenio Garcia D´Ávila, um dos únicos – quiçá o único – guerrilheiro da
Sierra Maestra. Cheguei até ele por meio de contato com os organizadores do evento oficial
que estavam no hotel naquele momento após a cerimônia. O nome dele já estava na lista que
eu tinha elaborado após as pesquisas prévias à viagem a partir do material existente na
internet sobre a Radio Rebelde e a guerrilha, e em livros sobre esse período.
Na entrevista descubro que ele era um dos 12 expedicionários do iate Granma7
sobreviventes8 do que ficou conhecido como combate de Alegria de Pio9 e que deram início à
guerrilha. Não obstante, D´Ávila foi combatente na Coluna 1, comandada por Fidel e que
tinha como base a chamada Comandancia de la Plata, local onde a Radio Rebelde ficou
sediada a partir de maio de 1958, após três meses do início das transmissões. Sendo assim, ele
se tornou uma fonte primordial para esta pesquisa sobre o uso da rádio pela guerrilha.
Em Havana, com os nomes de combatentes ligados à emissora na Sierra, busqueios um a um por meio de consultas à companhia telefônica cubana. Encontrei somente um da
lista: o coronel Ángel Celestino Fernández Vila, que só aceitou conversar comigo depois de
confirmar com uma conhecida jornalista cubana – Irma Shelton –, amiga do MST, que eu era
de confiança política. Tendo em vista a formação militante revolucionária dele, bem como a
conjuntura de condenação midiática quando o tema é Revolução Cubana, não foi supresa essa
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O iate Granma foi a embarcação que levou de Tuxpan (México) a Cuba os 82 rebeldes do M-26-7, sob o
comando de Fidel Castro, com o objetivo de derrubar a ditadura de Batista. Depoimentos dão conta das
dificuldades – entre elas, fome, sede e enjoos – que os rebeldes enfrentaram durante os sete dias de viagem.
“Muitos de nós pensavam que este iate nos transportaria para algum barco grande. Mas não mudamos de barco, e
o iate ficou sendo o transporte definitivo, a ponte entre o México e Cuba. Que eu saiba, ninguém fez travessia tão
longa num iate que podia transportar somente dez ou doze pessoas, mas no qual iam amontoados oitenta e dois
homens, mal podendo mover-se, além de carga, armas, balas, mochilas, uniformes, sacos de laranja, tanques de
água, latas com combustível de reserva, um bote, e um dos dois motores avariados” (BOSQUE, 1991, p. 10).
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Entre os expedicionários do iate Granma, estavam Fidel Castro, Raúl Castro, Ernesto Che Guevara, Camilo
Cienfuegos e Juan Almeida Bosque, revolucionários-chave comandantes de colunas rebeldes da Guerra de
Libertação Nacional.
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Poucos dias depois do desembarque do Granma, realizado em 2 de dezembro de 1956, os rebeldes foram
surpreendidos pelos soldados da ditadura. Dos 82 expedicionários do iate, 70 foram assassinados.
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cautela dele. Considero que o contato com a Irma, bem como o fato de me apresentar como
jornalista do MST, facilitou tal confiança. É público que o MST é um movimento popular
com repercussão mundial e que se solidariza com a Revolução Cubana e almeja a construção
de uma sociedade socialista, mantendo relação – inclusive – com o governo cubano. Para citar
um exemplo, dezenas de estudantes sem-terra fazem a graduação em Medicina em Cuba, por
meio de convênios estudantis governamentais.
Vila, que na época da guerrilha estudava Medicina, foi subdiretor da Radio
Rebelde nos últimos dois meses da luta na Sierra10, tendo sido antes delegado nacional de
Propaganda do M-26-7 em Havana e um dos fundadores do jornal clandestino Vanguardia
Obrera, órgão oficial do Movimento em 1958. Qual não foi minha surpresa quando, no
primeiro contato pessoalmente, ele me mostrou um “tesouro escondido”: cerca de 100
documentos (textos originais) que foram lidos pelos locutores da emissora ainda na guerrilha
e que permaneceram guardados em uma gaveta da casa dele. Inéditos até então11. Vila deixou
o material à minha disposição para que fosse digitalizado, além de me conceder uma primeira
entrevista naquela ocasião.
Perguntado sobre o motivo de ter guardado esses documentos em plena guerrilha,
Vila explicou que já na cidade de Palma Soriano, ou seja, nos momentos finais da luta
insurrecional, Fidel precisava de um documento que ele havia lido na Radio Rebelde. Vila,
então, busca em seus arquivos e o entrega ao comandante, que ficou “maravilhado” com o
fato de ele tê-lo guardado. “Aí me dei conta do que eu tinha, que era um tesouro”, contou.
Em termos de publicações, encontrei nesta viagem um único livro12 que tratava da