As línguas faladas no Acampamento Terra Livre

Cerca de 3.000 índios acamparam de 23 a 27 de abril, em Brasília, na 15ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL). Realizaram reuniões, rodas de conversas, plenárias e exposições no Memorial dos Povos Indígenas. Peregrinaram pelo Judiciário, Legislativo e Executivo e marcharam pela Esplanada dos Ministérios que tingiram de vermelho para simbolizar o sangue derramado no ininterrupto genocídio. Cantaram, dançaram, rezaram. Clamaram e reclamaram. No encerramento, projetaram a laser no Congresso Nacional, a principal reivindicação: “Demarcação Já” e “Terra Livre”.
No entanto, quem viu os noticiários da TV não tomou conhecimento da maior mobilização anual organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) com apoio de órgãos indigenistas e socioambientais. A mídia, que minimizou ou ignorou olimpicamente o fato, estava concentrada no filho de Kate e William, nascido em Londres com 3,8 kg, às 11h01 como nos informou o deslumbrado correspondente da TV Globo, Pedro Vedova, com a precisão milimétrica do minuto. A expressão de fascínio do outro William, o Bonner, no Jornal Nacional, era melosamente patética. Ele aparentava uma surpreendente intimidade com a coroa britânica.
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No batel de Cabral
A cobertura do ATL, que não foi feita, podia ser um gancho para a mídia defender a rica diversidade linguística do país, constituída não apenas pelas diferentes línguas ameríndias presentes nos rituais, nas danças, nas rezas, nos cantos e nas cerimônias celebrados quase sempre à noite, mas também pela variedade indígena do português de contato usado nas plenárias, uma das quais – o português xinguano falado por diferentes grupos étnico-linguísticos do Alto Xingu – teve seu perfil sociolinguístico traçado pela pesquisadora Charlotte Emmerich.
Nada disso foi mostrado. A língua parece Deus, está em todo lugar, mas ninguém vê, nem mesmo aqueles que têm fé. Os telejornais, focados no neto do príncipe Charles, ignoram o plurilinguismo do Brasil observado pelas caravelas que aqui aportaram naquele longínquo abril de 1500, segundo Pero Vaz de Caminha em sua célebre carta.
O escrivão da frota relata que o almirante Pedro Alvares Cabral, ao avistar gente na praia, enviou na frente uma pequena embarcação com batedores para estabelecerem contatos iniciais. A escolha de quem devia ir no batel se baseou em critérios de competência linguística: Nicolau Coelho, que havia vivido na Índia e falava o hindi; Gaspar da Gama, que dominava o árabe e outros idiomas; um marujo da Guiné que conhecia bem algumas línguas africanas e um escravo da Angola, competente em quimbundo.

Sem rei nem lei
A falta de comunicação prevaleceu no território que é hoje o Brasil, onde eram faladas no séc. XVI cerca de 1.300 línguas, mais de 1.100 delas silenciadas em quinhentos anos, vítimas do preconceito do colonizador, como pode ser observado no discurso de Pero Magalhães Gandavo, que confunde língua com escrita, ao afirmar que “a língua tupinambá não tem as letras f, l e r, cousas dignas de espanto porque assí não tem fé, nem lei, nem rei e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente”.
Outra, no entanto, foi a impressão de Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil: 1500-1627. Para ele, as línguas indígenas eram “mui compendiosas”, possuidoras de “alguns vocábulos mais abundantes do que o nosso português”, porque “nós a todos os irmãos chamamos com um único nome e ao tio também”, enquanto eles, ao irmão mais velho chamam de uma maneira, aos outros de outra. O tio paterno tem um nome e o tio materno outro e “alguns vocábulos só usam as fêmeas e outros só os machos”.
Tal consideração coincide com a fala da guarani Sandra Benites, mestre em antropologia, que participou na UERJ da mesa de encerramento do curso “Educação Descolonizadora”. Existem duas palavras em guarani para designar irmão: uma para o irmão maior e outra para o menor. Mas o homem designa suas irmãs mulheres com uma terceira palavra - (t)xereindy - que significa algo assim como “luz de minha vida”:
- Sem irmã, o homem não existe, vive perdido na escuridão – disse Sandra, acrescentando que o termo usado pela irmã para chamar seu irmão maior é xe kywy, que numa tradução livre e poética significa “aquele que está sempre ao meu lado”. De acordo com o modelo defendido por Gandavo, os falantes de português não seriam, então, capazes de estabelecer relações fraternas como os guarani.
Na Terra Livre

O documento final aprovado pelos índios no ATL lança um clamor contra a invasão das terras que milenarmente sempre souberam proteger e cuidar e contra o genocídio que continua. Condena “a falência da política indigenista” no atual cenário que é “o mais agressivo contra os direitos indígenas desde a redemocratização do país”. Denuncia a paralisação das demarcações das terras indígenas” assim como “a anulação dos nossos direitos territoriais”. Acusa ainda “o governo ilegítimo de Michel Temer” por haver negociado os direitos indígenas com a bancada ruralista incentivando a violência.
Entre as reivindicações mais urgentes, o documento lista a demarcação e proteção de todas as terras indígenas, a imediata retirada dos invasores das terras já demarcadas, “o arquivamento de todas as iniciativas legislativas que atentam contra os nossos povos e territórios”, o atendimento básico à saúde, o reconhecimento da “natureza pluriétnica do Estado Brasileiro consagrado pela Constituição Federal de 1988” e o cumprimento “dos tratados internacionais assinado pelo Brasil, de modo especial a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Embora o documento não traga nenhuma referência explícita ao direito de uso de suas próprias línguas, a questão fica contemplada na reivindicação sobre o cumprimento “da política de educação escolar indígena diferenciada e com qualidade, tal como foi formulada nas propostas da II Conferência Nacional de Educação Indígena que contemplam os territórios etnoeducacionais”.
A cobertura da mídia tem mais a ver com o complexo de vira-lata do que com critérios do que é ou deixa de ser notícia.

Fotos: Mobilização Nacional Indígena, Lucas Sobral/Terra Sense/MNI, Tuane Fernandes/MNI e Christian Braga/MNI

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