REI LEOPOLDO II: INTERFERÊNCIA DO MONARCA BELGA NO TERRITÓRIO CONGOLÊS Thadeu Cajado de Andrade Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) E-mail: thadeucajado@yahoo.com.br . IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA
IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA
HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.
29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
REI LEOPOLDO II: INTERFERÊNCIA DO MONARCA BELGA
NO TERRITÓRIO CONGOLÊS
Thadeu Cajado de Andrade
Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
E-mail: thadeucajado@yahoo.com.br
Palavras-chave: Colonização. Congo. Conflitos étnicos.
A Bélgica e Leopoldo II
Entre os muitos acontecimentos estranhos que ocorreram durante a partilha da África,
os do Congo talvez tenham sido os mais incongruentes. O desfecho de todas as confusões
envolvendo-os foi que a Bélgica, um dos menores países da Europa, adquiriu uma das
maiores e mais ricas colônias na África e isto apesar do fato de que havia decidido não ter
nada a ver com as colônias.
Na Europa do século XIX, a Bélgica era um fenômeno raro. Antes de 1830, ela não
existia como estado i ndependente, mas fazia parte do Reino dos Países Baixos, fundado em
1814. A criação desse reino refletiu os sentimentos anti -revolucionários das potências e sua
determinação em conter o avanço da França. O nacionalismo, entretanto, revelou -se mais
forte do que esse objetivo, e o Reino Unido dos Países Baixos rompeu -se, após uma breve e
não muito harmoniosa união.
Os rebeldes belgas de 1830 eram politicamente inspirados pelos ideais liberais e
nacionalistas, mas precisaram de um estado monarquista para torn ar seus objetivos aceitáveis
a Palmerston e Metternich, os guardiões legitimistas e anti -revolucionários da paz européia.
Eles escolheram como seu candidato ao trono um homem que poderia ter -se tornado o
príncipe consorte dos britânicos não houvesse sua mu lher morrido prematuramente, e rei da
Grécia, se tivesse desejado. Mas Leopoldo de Saxe -Coburg não queria tal coisa; o que
cobiçava era o trono da Bélgica, e desincumbiu -se de suas altas obrigações com tanto deleite
quanto êxito.
Seu reino era, e é, pequen o, mas não insignificante. A posição estratégica da Bélgica
era importante o bastante para preocupar as potências e a Grã -Bretanha em particular, tão
importante, na verdade, que elas garantiriam sua neutralidade por tratado. Economicamente, a
situação da Bélgica não era menos admirável. A população não era grande. Em 1865, o país
tinha quase cinco milhões de habitantes, mas este número iria aumentar muito depressa. A
Bélgica era um dos mais desenvolvidos países da Europa, uma terra de ferrovias, minas e
altos-fornos. Um terço da população trabalhava na indústria. A Economia da Bélgica era
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aberta e vulnerável, e afetada pelas turbulentas flutuações do clima econômico europeu. Isso
significou que, em 1865, quando Leopoldo II subiu ao trono, a Bélgica foi sugad a para dentro
do grande florescimento econômico, apenas para mergulhar logo depois na longa depressão
que durou de 1873 até fins do século.
Embora o Rio Schelde fosse mais uma vez aberto à navegação, e a atividade marítima
de Antuérpia estivesse longe de s er desprezível, a Bélgica era mais voltada para a indústria do
que para o comércio, mais para os negócios continentais do que ultramarinos. Nesse aspecto,
ela diferia de sua vizinha do Norte. Além disso – esta era outra grande diferença –, não tinha
colônias. Havia inúmeros motivos para isso. Para começar a nova doutrina econômica liberal
ditava que as colônias não serviam a propósito algum. As antigas práticas monopolistas eram
excomungadas pelos novos discípulos do livre comércio. Se colônias, segundo o e vangelho
econômico do dia, tivessem de ser abertas aos serviços e produtos de todos os países,
tornavam-se apenas um fardo para a matriz que, no fim, tinha de pagar a conta da
administração e defesa, sem receber muito em troca.
Em meados e também durante o terceiro quarto do século XIX, o anticolonialismo era
uma tendência que se tinha de levar em conta. Não só os países pequenos, como os Países
Baixos e a Dinamarca, considerava, a possessão de colônias africanas como fúteis, mas os
grandes, como Grã -Bretanha e a França, cogitava, de fazer o mesmo. A Bélgica tinha motivos
extras para abster -se de aventuras coloniais: faltava -lhe uma Marinha pra proteger qualquer
possessão ultramarina. Se entrasse desajeitadamente nesse pleito, poderia pôr facilmente em
perigo sua neutralidade e, portanto, a própria existência. Sua tentativa de colonização na
Guatemala, em 1845, resultaria em fiasco. Não é de admirar, então, que a Bélgica fosse um
país anticolonial
O rei e seus anseios
O segundo reis dos belgas tin ha idéias de diferentes, contudo. Leopoldo II (1835 -
1909) era uma personalidade estranha. Para começar, suas proporções eram gigantescas. Um
homem grande e com grandes idéias, embora muitas vezes agisse de modo mesquinho. Alto e
de compleição musculosa, c om uma barba farta e comprida, e um nariz grande demais, ao
qual sua mãe se referia com desprezo (ASCHERSON, 1963, p. 27). O amor que ela lhe
devotava não era muito grande, mas considerável em comparação ao do pai, a quem não tinha
permissão de ver, sem um pedido formal de audiência. Não surpreende, portanto, que
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Leopoldo esbanjasse seus transbordantes afetos sobre pessoas fora de seu casamento e seu
circulo familiar. Seu apetite era tão insaciável na cama quanto na mesa – e também
indiscriminado. Desconhec ia-se o número exato de suas amantes, mas muito famosas eram
suas incontáveis visitas a bordéis, onde sua preferência por menores provocava escândalos
mesmo num mundo de notória tolerância aos excessos da realeza. Para Leopoldo, isso tornou -
se uma vantagem especial: sua reputação era tão escandalosa que camuflou o fato de que
muitas de suas viagens às capitais da Europa tiveram outros objetivos além da insaciável
busca de novas sensações na cama ou à mesa. Leopoldo não era menos generoso e
apaixonado por s eu país do que por algumas de suas amantes. Num certo sentido, ele impunha
seu amor até mesmo à Bélgica. Contudo, ao contrário das amantes, seus súditos opuseram
alguma resistência.
Desde a tenra juventude, Leopoldo desenvolvera agudo interesse por tudo o que se
relacionasse ao comércio, à navegação e à expansão ultramarina. Seu modelo eram os Países
Baixos, em particular as possessões holandesas no Oriente, e muito especial Java. Em 11 de
fevereiro de 1860, ele proferiu seu primeiro discurso perante o sena do belga, onde, como
herdeiro do trono, ocupara um assento desde seu décimo oitavo aniversário. O tema desse
discurso de estréia foi o incentivo ao comércio e às exportações ultramarinas. Concluiu -o com
um apelo velado, mas inequívoco, à expansão colonial. Sua evocação do glorioso passado das
grandes empresas comerciais terminou com uma referência aos lucros que Java então
despejava nos cofres holandeses (STENGERS, 1989, p . 10).
Essa foi a primeira de muitas profissões de fé de Leopoldo, o início de uma lo nga,
porém vã, campanha missionária entre seus compatriotas. Foi também o resultado da longa
preparação intelectual de Leopoldo como duque de Brabante. Seu interesse nos países
ultramarinos remontava à sua lua -de-mel no Egito e no Oriente Próximo, onde pas mou de
admiração pelos projetos e planos espetaculares de diques e canais. Durante os 10 anos entre a
maioridade e a ascensão ao trono em 1865, ele passara muito tempo avaliando as
possibilidades de uma incursão belga no mesmo campo. Seu entusiasmo refleti a a falta de
discrição tão característica dele em outras áreas. O jovem Leopoldo expressava seus
pensamentos com tanta franqueza que seu próprio despudor tinha algo que desarmava as
pessoas. Seus muitos correspondentes eram abarrotados com sugestões e sedu ções, com
perguntas e pedidos. “As Filipinas estão à venda?”, perguntou a um correspondente espanhol.
“Vossa majestade considera talvez a possibilidade de uma expedição à China?”, escreveu para
a rainha Vitória, oferecendo -lhe, logo a seguir, a ajuda de tr opas belgas. Sua mentalidade era
mais de um bucaneiro ou mafioso do que de um rei. Assim, ele escreveu em 1859: “Podem -se
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encontrar riquezas incríveis no Japão. O tesouro do imperador é imenso e mal protegido”
(STENGERS, 1989, p . 20, grifo do autor).
O pensamento de Leopoldo revela uma tendência exploradora tão grosseira que é
surpreendente como ele conseguiu criar uma fachada de virtude, envolvendo o início de sua
aventura africana em uma aura de caridade missionária e filantrópica, disfarçada com
habilidade de perito. A virada decisiva em seu caminho para uma doutrina colonial mais terra -
a-terra, mas não menos interesseira, ocorreu em 1861. No final desse ano, Leopoldo esbarrou
num livro que lhe ofereceu nova munição para suas idéias coloniais, Java or How to Manage
a Colony [Java ou como administrar uma colônia], de J. W. Money. O Autor era um
advogado britânico que, em 1858, depois de passar quatro anos na Índia, “com um clima
excelente, caminhos fáceis e uma ópera” (MONEY, 1861, v. 1, p. 3) . Mas Money encontrou
mais do que isso em Java. Ficou particularmente impressionado com as realizações da
administração colonial holandesa e, em especial, com o sistema de cultivo, do qual brotava
dividendos impressionantes para o tesouro holandês. Money esperava que es se livro pudesse
servir de lição para seus compatriotas na Índia. Nisso ele malogrou. A política agrícola
holandesa, baseada em trabalhos forçados e monopólio estatal, era demasiado não -liberal e
muito conflitante com o espírito da época para atrair a Grã -Bretanha, o baluarte do livre
comércio e livre empreendimento. Para o ilustre leitor em Bruxelas, contudo, o livro foi uma
dádiva de Deus.
Java iria tornar-se seu grande modelo, seu paradigma colonial. “Java”, escreveu o
monarca, “é uma mina de ouro inexa urível. Pode-se, portanto, formular a pergunta da seguinte
maneira: é vantajoso possuir uma mina de ouro?” (STENGERS, 1989, p . 14). A princípio,
seus pensamentos concentraram -se no Oriente. “O senhor conhece uma ilha na Oceania, no
Mar da China ou no Ocean o Índico que poderia servir para nós?”, perguntou a um oficial
naval belga em 1861 (p. 24). Ele também tinha simpatia por Bornéu; numa fase posterior, a
Nova Guiné iria atrair sua atenção, assim como Formosa, Tonquim, Sumatra e outras. Uma
atrás da outra, as ilhas levavam a planos, projetos, sondagens, todos os quais, no fim, não
deram em nada. Em seguida à ascensão de Leopoldo ao trono, porém, ocorreu uma acentuada
mudança (p. 28). A finalidade continuava sendo a mesma, ou seja, dar à Bélgica uma colônia,
mas os meios eram diferentes. Leopoldo àquela altura compreendeu que seu país, ou pelo
menos seu governo, não queria nada que se relacionasse com expansão colonial. Fortiter in
re, suaviter in modo (forte no que se refere aos fins mas flexível na execução) , ele
permaneceu fiel ao seu sonho, mas mudou sua tática. Daí em diante, trabalharia como pessoa
privada, com o prestígio de soberano e sua fortuna familiar por trás dele, claro, mas livre das
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limitações governamentais e parlamentares. Um príncipe constitu cional na Bélgica, um
empreendedor independente fora do país – essa foi a nova estratégia de Leopoldo.
Em 1869, escreveu de maneira grandiosa: “Prometo não pedir nada ao ministro das
finanças” (p. 28). Não manteve a promessa, mas ela foi, na verdade, a bas e se suas operações.
A partir daí, essas ocorreriam num mundo peculiar de sociedades e comitês, companhias e
empresas fundadas por ele mesmo. No nome sempre internacionais e quase sempre
filantrópicas, passaram a ser cada vez mais opacas e complexas na prá tica. “L’union fait la
force” – “A união faz a força” é o lema do Estado belga. Mas o próprio Leopoldo vivia mais
de acordo com as palavras extraídas de Gulherme Tell, de Schiller: “Der Starke ist am
mächtigsten allein” – “O forte é mais poderoso sozinho” .
Eu não sabia quase nada da história do Congo até alguns anos atrás, quando através de
uma amiga, que estuda o genocídio de Ruanda de 1994, falara sobre os refugiados ruandeses
que em milhares adentravam o território congolês, o que desdobrou em alguns co nflitos, logo
após topei com uma nota de rodapé num livro que estava lendo. A nota era sobre uma citação
de Mark Twain, escrita quando o autor fazia parte do movimento mundial contra o trabalho
escravo no Congo, uma prática que resultaria em 5 a 8 milhões de mortos. Movimento
mundial? Cinco a 8 milhões de mortos? Fiquei atônito.
Estatística sobre assassinatos em massa são geralmente de difícil comprovação. Mas
mesmo que esse número fosse a metade do que se dizia ser, ainda assim o Congo teria sido
um dos maiores campos de matança do mundo moderno. Por que essas mortes não eram
mencionadas nas literaturas de praxe dos horrores de nosso século? E por que eu nunca ouvi
falar nelas? Após muitas indagações, fixei maior atenção àquela citação, com meu total
desconhecimento da história antiga do Congo. Depois me ocorreu que, a exemplo de outras
pessoas, eu lera, sim, alguma coisa a respeito daquela época e lugar. O coração das trevas, de
Josepeh Conrad. No entanto, com minhas fichas de leitura cheias de anotações so bre
sugestões freudianas, ecos míticos e visão interior, eu mentalmente arquivara o livro como
ficção, e não como fato.
Comei a ler mais. Quanto mais explorava o assunto, mais óbvio tornava o fato de que
o Congo de um século antes fora vítima de um morticí nio, um verdadeiro holocausto. Ao
mesmo tempo, vi -me inesperadamente absorvido pelas personalidades extraordinárias que
povoaram esse momento da história. Embora tenha sido Edmundo Dene Morel o primeiro a
impulsionar o movimento, ele não foi o primeiro est rangeiro a ver a versão do Congo do rei
Leopoldo II e a tentar por todos os meios atrair a atenção mundial apara ela. Esse papel coube
a George Washington Willians, jornalista e historiador negro -norte-americano, que,
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diferencialmente de todos os que o pre cederam, entrevistou os africanos e registrou suas
experiências com conquistadores brancos.
Foi um outro negro -norte-americano, William Sheppard, quem registrou uma cena que
testemunhou na floresta do Congo que ficara impressa na consciência do mundo todo como
símbolo da brutalidade colonial. Houve também outras testemunhas, sendo que um dos mais
corajosos terminou seus dias numa prisão londrina. Sem falar num jovem capitão da marinha
mercante chamado Joseph Conrad, que sequioso por encontrar uma África ex ótica de seus
sonhos de infância, mas que descobre, em lugar de uma paisagem idílica, aquilo que mais
tarde chamaria de “a mais ignóbil peleja em busca de despojos a desfigurar a história da
consciência humana”. E, sobressaindo -se entre todos eles, o rei L eopoldo, um homem tão
cheio de cobiça, astúcia, duplicidade e encantos quanto qualquer dos vilões mais complexos
de Shakespeare.
Ao acompanhar as vidas entrecruzadas desses homens, acabei percebendo algo mais
sobre o terror do Congo e sobre a polêmica que se seguiu. Esse foi o primeiro escândalo
internacional relacionado com atrocidades a ocorrer na era do telegrafo e da câmera
fotográfica. A mistura de carnificina em escala monumental, realeza, sexo celebridades,
grupos rivais de pressão e campanhas lançad as em meia dúzia de países pela imprensa de
ambos os lados do Atlântico parece tremendamente próxima de nossa própria era. Além disso,
ao contrário de tantos grandes predadores da história de Gêngis Khan aos conquistadores
espanhóis, o rei Leopoldo II nunc a viu uma gota de sangue ser derramada. Ele nunca pôs os
pés no Congo. Aí também há qualquer coisa de moderníssimo, algo assim como um piloto de
bombardeio na estratosfera, acima das nuvens, que jamais escuta os gritos nem vê as casas e
carne sendo estilhaçadas.
Embora a Europa já tenha se esquecido há tempos das vitimas do Congo, acabei
encontrando uma quantidade enorme de material com o qual trabalhar para reconstruir -lhes a
sorte; registros de missões de catequese; relatórios sobre investigações do gover no; além
daquele fenômeno tipicamente vitoriano, o relato de cavalheiros (e às vezes damas)
“viajantes”.
Um dos grandes problemas, claro, é que a maior parte desse vasto mar de palavras foi
deixado por europeus ou norte -americanos. Não havia língua escrit a no Congo quando os
europeus chegaram, e isso inevitavelmente distorceu a maneira como a história foi registrada.
Temos inúmeros relatos feitos por funcionários brancos; conhecemos as opiniões
inconstantes, por vezes anotadas dia a dia por pessoas que tin ham papel-chave no Ministério
do Exterior britânico. Mas não temos uma única descrição extensa ou uma história oral
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completa de um congolês que seja, durante o período de maior terror. Em lugar de vozes
africanas, existe apenas um velado silêncio.
Ainda assim, ao mergulhar em todo material, embora parco, com relação as fontes
existentes no Palácio de Leaken, na Bélgica, percebi o quanto era revelador. Os homens que
ocuparam o Congo em geral sentiam orgulhoso de suas matanças e vangloriavam -se delas em
livros e artigos de jornal. Alguns escreveram diários de uma franqueza extraordinária, que
acabaram denunciando bem mais do que o prometido; há inclusive um volumoso e explícito
livro de instrução destinado aos funcionários da colônia que é de estarrecer. Além disso,
vários dos oficiais do exército particular que ocupou o Congo acabaram por se sentir culpados
pelo sangue que tinham nas mãos. O testemunho que deram e os documentos que surrupiaram
da colônia ajudaram a alimentar o movimento de protesto. Mesmo por parte dos africanos,
brutalmente reprimidos, o silêncio não é total. Alguns de seus atos e parte de suas vozes
acabaram chegando até nós, ainda que filtrados pelo registro de seus conquistadores.
Na África inteira, quem escrevia os livros didáticos eram os colonizadores; ao lado de
uma ampla censura de determinadas obras e da imprensa em geral, esses livros aperfeiçoaram
o ato de esquecimento por meio da palavra escrita. No Congo, durante o meio século em que
o governo belga governou o país depois da morte do rei em 1909, os livros escolares dos
africanos elogiaram Leopoldo e sua obra com o mesmo entusiasmo com que os livros
didáticos soviéticos elogiaram Lênin.
Esse esquecimento oficialmente decretado não poderia claro, abranger as aldeias
distantes, onde persistem até hoje relatos sobre o terror da borracha. Mas até mesmo essa
memória coletiva é hoje mais rara do que seria de se esperar. Um punhado de antropólogos
dedicados ajudou a encontrar e preservar essas memórias – em geral alguma lenda local
fragmentada sobre alguém extraordinariamente cruel daquele período, lembrado com la
guerre du blac [A guerra do branco] ou, na língua mongo, lokeli, “o esmagador”. Às vezes, ao
lado de informações recolhidas por testemunhas como missionários, o terror está impres so na
própria língua. Em mongo, por exemplo, “mandar alguém colher borracha” é uma expressão
que significa “tiranizar”.
Relativamente poucas memórias coletivas da era da borracha, sobretudo, na África
rural, uma vez que a tradição oral geralmente é uma que stão de lembrar-se de reis, dinastias e
vitórias em combate. E as dinastias que sobreviveram quase sempre conseguiram esse feito
colaborando com os senhores coloniais. Como observa Vansina (1966, p. 37), em sua história
do povo Cuba: “Nenhuma relato desses eventos [a era escravocrata da borracha, de Leopoldo]
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aparece nas tradições dinásticas. Os dirigentes que se beneficiaram com o sistema não
deixariam que isso ficasse na memória oficial”.
Nas cidades, onde agora vive a maioria dos congoleses, a rápida ur banização provocou
abalos drásticos. Por exemplo, o que até como cem anos atrás era apenas um pequeno
vilarejo, chamado Kinshasa, é hoje uma metrópole caótica, em constante expansão, que abriga
cerca de 5 milhões pessoas, muitas das quais recém -chegadas das zonas rurais, na busca
desesperada de trabalho. Mudanças como essas desestabilizaram e afrouxaram os laços pelos
quais as histórias se passam de uma geração para a outra. As culturas tradicionais estão
bastante enfraquecidas e, junto com elas, vai desap arecendo também a própria lembrança das
forças que iniciaram a destruição.
O pior da carnificina no Congo aconteceu entre 1890 e 1910, mas suas origens datam
de muito antes, de quando europeus e africanos viram -se cara a cara pela primeira vez. De
modo que, para chegarmos à nascente de nossa história, temos de voltar mais de quinhentos
anos no tempo, até uma época em que um capitão viu o oceano mudar de cor e um rei recebeu
notícias de uma aparição estranha que surgira de dentro da terra.
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http://www.uesb.br/anpuhba/anais_eletronicos/Thadeu%20Cajado%20de%20Andrade.pdf
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