8 de jul. de 2018

REI LEOPOLDO II: INTERFERÊNCIA DO MONARCA BELGA NO TERRITÓRIO CONGOLÊS Thadeu Cajado de Andrade Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) E-mail: thadeucajado@yahoo.com.br . IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA

IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. REI LEOPOLDO II: INTERFERÊNCIA DO MONARCA BELGA NO TERRITÓRIO CONGOLÊS Thadeu Cajado de Andrade Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) E-mail: thadeucajado@yahoo.com.br Palavras-chave: Colonização. Congo. Conflitos étnicos. A Bélgica e Leopoldo II Entre os muitos acontecimentos estranhos que ocorreram durante a partilha da África, os do Congo talvez tenham sido os mais incongruentes. O desfecho de todas as confusões envolvendo-os foi que a Bélgica, um dos menores países da Europa, adquiriu uma das maiores e mais ricas colônias na África e isto apesar do fato de que havia decidido não ter nada a ver com as colônias. Na Europa do século XIX, a Bélgica era um fenômeno raro. Antes de 1830, ela não existia como estado i ndependente, mas fazia parte do Reino dos Países Baixos, fundado em 1814. A criação desse reino refletiu os sentimentos anti -revolucionários das potências e sua determinação em conter o avanço da França. O nacionalismo, entretanto, revelou -se mais forte do que esse objetivo, e o Reino Unido dos Países Baixos rompeu -se, após uma breve e não muito harmoniosa união. Os rebeldes belgas de 1830 eram politicamente inspirados pelos ideais liberais e nacionalistas, mas precisaram de um estado monarquista para torn ar seus objetivos aceitáveis a Palmerston e Metternich, os guardiões legitimistas e anti -revolucionários da paz européia. Eles escolheram como seu candidato ao trono um homem que poderia ter -se tornado o príncipe consorte dos britânicos não houvesse sua mu lher morrido prematuramente, e rei da Grécia, se tivesse desejado. Mas Leopoldo de Saxe -Coburg não queria tal coisa; o que cobiçava era o trono da Bélgica, e desincumbiu -se de suas altas obrigações com tanto deleite quanto êxito. Seu reino era, e é, pequen o, mas não insignificante. A posição estratégica da Bélgica era importante o bastante para preocupar as potências e a Grã -Bretanha em particular, tão importante, na verdade, que elas garantiriam sua neutralidade por tratado. Economicamente, a situação da Bélgica não era menos admirável. A população não era grande. Em 1865, o país tinha quase cinco milhões de habitantes, mas este número iria aumentar muito depressa. A Bélgica era um dos mais desenvolvidos países da Europa, uma terra de ferrovias, minas e altos-fornos. Um terço da população trabalhava na indústria. A Economia da Bélgica era 2 aberta e vulnerável, e afetada pelas turbulentas flutuações do clima econômico europeu. Isso significou que, em 1865, quando Leopoldo II subiu ao trono, a Bélgica foi sugad a para dentro do grande florescimento econômico, apenas para mergulhar logo depois na longa depressão que durou de 1873 até fins do século. Embora o Rio Schelde fosse mais uma vez aberto à navegação, e a atividade marítima de Antuérpia estivesse longe de s er desprezível, a Bélgica era mais voltada para a indústria do que para o comércio, mais para os negócios continentais do que ultramarinos. Nesse aspecto, ela diferia de sua vizinha do Norte. Além disso – esta era outra grande diferença –, não tinha colônias. Havia inúmeros motivos para isso. Para começar a nova doutrina econômica liberal ditava que as colônias não serviam a propósito algum. As antigas práticas monopolistas eram excomungadas pelos novos discípulos do livre comércio. Se colônias, segundo o e vangelho econômico do dia, tivessem de ser abertas aos serviços e produtos de todos os países, tornavam-se apenas um fardo para a matriz que, no fim, tinha de pagar a conta da administração e defesa, sem receber muito em troca. Em meados e também durante o terceiro quarto do século XIX, o anticolonialismo era uma tendência que se tinha de levar em conta. Não só os países pequenos, como os Países Baixos e a Dinamarca, considerava, a possessão de colônias africanas como fúteis, mas os grandes, como Grã -Bretanha e a França, cogitava, de fazer o mesmo. A Bélgica tinha motivos extras para abster -se de aventuras coloniais: faltava -lhe uma Marinha pra proteger qualquer possessão ultramarina. Se entrasse desajeitadamente nesse pleito, poderia pôr facilmente em perigo sua neutralidade e, portanto, a própria existência. Sua tentativa de colonização na Guatemala, em 1845, resultaria em fiasco. Não é de admirar, então, que a Bélgica fosse um país anticolonial O rei e seus anseios O segundo reis dos belgas tin ha idéias de diferentes, contudo. Leopoldo II (1835 - 1909) era uma personalidade estranha. Para começar, suas proporções eram gigantescas. Um homem grande e com grandes idéias, embora muitas vezes agisse de modo mesquinho. Alto e de compleição musculosa, c om uma barba farta e comprida, e um nariz grande demais, ao qual sua mãe se referia com desprezo (ASCHERSON, 1963, p. 27). O amor que ela lhe devotava não era muito grande, mas considerável em comparação ao do pai, a quem não tinha permissão de ver, sem um pedido formal de audiência. Não surpreende, portanto, que 3 Leopoldo esbanjasse seus transbordantes afetos sobre pessoas fora de seu casamento e seu circulo familiar. Seu apetite era tão insaciável na cama quanto na mesa – e também indiscriminado. Desconhec ia-se o número exato de suas amantes, mas muito famosas eram suas incontáveis visitas a bordéis, onde sua preferência por menores provocava escândalos mesmo num mundo de notória tolerância aos excessos da realeza. Para Leopoldo, isso tornou - se uma vantagem especial: sua reputação era tão escandalosa que camuflou o fato de que muitas de suas viagens às capitais da Europa tiveram outros objetivos além da insaciável busca de novas sensações na cama ou à mesa. Leopoldo não era menos generoso e apaixonado por s eu país do que por algumas de suas amantes. Num certo sentido, ele impunha seu amor até mesmo à Bélgica. Contudo, ao contrário das amantes, seus súditos opuseram alguma resistência. Desde a tenra juventude, Leopoldo desenvolvera agudo interesse por tudo o que se relacionasse ao comércio, à navegação e à expansão ultramarina. Seu modelo eram os Países Baixos, em particular as possessões holandesas no Oriente, e muito especial Java. Em 11 de fevereiro de 1860, ele proferiu seu primeiro discurso perante o sena do belga, onde, como herdeiro do trono, ocupara um assento desde seu décimo oitavo aniversário. O tema desse discurso de estréia foi o incentivo ao comércio e às exportações ultramarinas. Concluiu -o com um apelo velado, mas inequívoco, à expansão colonial. Sua evocação do glorioso passado das grandes empresas comerciais terminou com uma referência aos lucros que Java então despejava nos cofres holandeses (STENGERS, 1989, p . 10). Essa foi a primeira de muitas profissões de fé de Leopoldo, o início de uma lo nga, porém vã, campanha missionária entre seus compatriotas. Foi também o resultado da longa preparação intelectual de Leopoldo como duque de Brabante. Seu interesse nos países ultramarinos remontava à sua lua -de-mel no Egito e no Oriente Próximo, onde pas mou de admiração pelos projetos e planos espetaculares de diques e canais. Durante os 10 anos entre a maioridade e a ascensão ao trono em 1865, ele passara muito tempo avaliando as possibilidades de uma incursão belga no mesmo campo. Seu entusiasmo refleti a a falta de discrição tão característica dele em outras áreas. O jovem Leopoldo expressava seus pensamentos com tanta franqueza que seu próprio despudor tinha algo que desarmava as pessoas. Seus muitos correspondentes eram abarrotados com sugestões e sedu ções, com perguntas e pedidos. “As Filipinas estão à venda?”, perguntou a um correspondente espanhol. “Vossa majestade considera talvez a possibilidade de uma expedição à China?”, escreveu para a rainha Vitória, oferecendo -lhe, logo a seguir, a ajuda de tr opas belgas. Sua mentalidade era mais de um bucaneiro ou mafioso do que de um rei. Assim, ele escreveu em 1859: “Podem -se 4 encontrar riquezas incríveis no Japão. O tesouro do imperador é imenso e mal protegido” (STENGERS, 1989, p . 20, grifo do autor). O pensamento de Leopoldo revela uma tendência exploradora tão grosseira que é surpreendente como ele conseguiu criar uma fachada de virtude, envolvendo o início de sua aventura africana em uma aura de caridade missionária e filantrópica, disfarçada com habilidade de perito. A virada decisiva em seu caminho para uma doutrina colonial mais terra - a-terra, mas não menos interesseira, ocorreu em 1861. No final desse ano, Leopoldo esbarrou num livro que lhe ofereceu nova munição para suas idéias coloniais, Java or How to Manage a Colony [Java ou como administrar uma colônia], de J. W. Money. O Autor era um advogado britânico que, em 1858, depois de passar quatro anos na Índia, “com um clima excelente, caminhos fáceis e uma ópera” (MONEY, 1861, v. 1, p. 3) . Mas Money encontrou mais do que isso em Java. Ficou particularmente impressionado com as realizações da administração colonial holandesa e, em especial, com o sistema de cultivo, do qual brotava dividendos impressionantes para o tesouro holandês. Money esperava que es se livro pudesse servir de lição para seus compatriotas na Índia. Nisso ele malogrou. A política agrícola holandesa, baseada em trabalhos forçados e monopólio estatal, era demasiado não -liberal e muito conflitante com o espírito da época para atrair a Grã -Bretanha, o baluarte do livre comércio e livre empreendimento. Para o ilustre leitor em Bruxelas, contudo, o livro foi uma dádiva de Deus. Java iria tornar-se seu grande modelo, seu paradigma colonial. “Java”, escreveu o monarca, “é uma mina de ouro inexa urível. Pode-se, portanto, formular a pergunta da seguinte maneira: é vantajoso possuir uma mina de ouro?” (STENGERS, 1989, p . 14). A princípio, seus pensamentos concentraram -se no Oriente. “O senhor conhece uma ilha na Oceania, no Mar da China ou no Ocean o Índico que poderia servir para nós?”, perguntou a um oficial naval belga em 1861 (p. 24). Ele também tinha simpatia por Bornéu; numa fase posterior, a Nova Guiné iria atrair sua atenção, assim como Formosa, Tonquim, Sumatra e outras. Uma atrás da outra, as ilhas levavam a planos, projetos, sondagens, todos os quais, no fim, não deram em nada. Em seguida à ascensão de Leopoldo ao trono, porém, ocorreu uma acentuada mudança (p. 28). A finalidade continuava sendo a mesma, ou seja, dar à Bélgica uma colônia, mas os meios eram diferentes. Leopoldo àquela altura compreendeu que seu país, ou pelo menos seu governo, não queria nada que se relacionasse com expansão colonial. Fortiter in re, suaviter in modo (forte no que se refere aos fins mas flexível na execução) , ele permaneceu fiel ao seu sonho, mas mudou sua tática. Daí em diante, trabalharia como pessoa privada, com o prestígio de soberano e sua fortuna familiar por trás dele, claro, mas livre das 5 limitações governamentais e parlamentares. Um príncipe constitu cional na Bélgica, um empreendedor independente fora do país – essa foi a nova estratégia de Leopoldo. Em 1869, escreveu de maneira grandiosa: “Prometo não pedir nada ao ministro das finanças” (p. 28). Não manteve a promessa, mas ela foi, na verdade, a bas e se suas operações. A partir daí, essas ocorreriam num mundo peculiar de sociedades e comitês, companhias e empresas fundadas por ele mesmo. No nome sempre internacionais e quase sempre filantrópicas, passaram a ser cada vez mais opacas e complexas na prá tica. “L’union fait la force” – “A união faz a força” é o lema do Estado belga. Mas o próprio Leopoldo vivia mais de acordo com as palavras extraídas de Gulherme Tell, de Schiller: “Der Starke ist am mächtigsten allein” – “O forte é mais poderoso sozinho” . Eu não sabia quase nada da história do Congo até alguns anos atrás, quando através de uma amiga, que estuda o genocídio de Ruanda de 1994, falara sobre os refugiados ruandeses que em milhares adentravam o território congolês, o que desdobrou em alguns co nflitos, logo após topei com uma nota de rodapé num livro que estava lendo. A nota era sobre uma citação de Mark Twain, escrita quando o autor fazia parte do movimento mundial contra o trabalho escravo no Congo, uma prática que resultaria em 5 a 8 milhões de mortos. Movimento mundial? Cinco a 8 milhões de mortos? Fiquei atônito. Estatística sobre assassinatos em massa são geralmente de difícil comprovação. Mas mesmo que esse número fosse a metade do que se dizia ser, ainda assim o Congo teria sido um dos maiores campos de matança do mundo moderno. Por que essas mortes não eram mencionadas nas literaturas de praxe dos horrores de nosso século? E por que eu nunca ouvi falar nelas? Após muitas indagações, fixei maior atenção àquela citação, com meu total desconhecimento da história antiga do Congo. Depois me ocorreu que, a exemplo de outras pessoas, eu lera, sim, alguma coisa a respeito daquela época e lugar. O coração das trevas, de Josepeh Conrad. No entanto, com minhas fichas de leitura cheias de anotações so bre sugestões freudianas, ecos míticos e visão interior, eu mentalmente arquivara o livro como ficção, e não como fato. Comei a ler mais. Quanto mais explorava o assunto, mais óbvio tornava o fato de que o Congo de um século antes fora vítima de um morticí nio, um verdadeiro holocausto. Ao mesmo tempo, vi -me inesperadamente absorvido pelas personalidades extraordinárias que povoaram esse momento da história. Embora tenha sido Edmundo Dene Morel o primeiro a impulsionar o movimento, ele não foi o primeiro est rangeiro a ver a versão do Congo do rei Leopoldo II e a tentar por todos os meios atrair a atenção mundial apara ela. Esse papel coube a George Washington Willians, jornalista e historiador negro -norte-americano, que, 6 diferencialmente de todos os que o pre cederam, entrevistou os africanos e registrou suas experiências com conquistadores brancos. Foi um outro negro -norte-americano, William Sheppard, quem registrou uma cena que testemunhou na floresta do Congo que ficara impressa na consciência do mundo todo como símbolo da brutalidade colonial. Houve também outras testemunhas, sendo que um dos mais corajosos terminou seus dias numa prisão londrina. Sem falar num jovem capitão da marinha mercante chamado Joseph Conrad, que sequioso por encontrar uma África ex ótica de seus sonhos de infância, mas que descobre, em lugar de uma paisagem idílica, aquilo que mais tarde chamaria de “a mais ignóbil peleja em busca de despojos a desfigurar a história da consciência humana”. E, sobressaindo -se entre todos eles, o rei L eopoldo, um homem tão cheio de cobiça, astúcia, duplicidade e encantos quanto qualquer dos vilões mais complexos de Shakespeare. Ao acompanhar as vidas entrecruzadas desses homens, acabei percebendo algo mais sobre o terror do Congo e sobre a polêmica que se seguiu. Esse foi o primeiro escândalo internacional relacionado com atrocidades a ocorrer na era do telegrafo e da câmera fotográfica. A mistura de carnificina em escala monumental, realeza, sexo celebridades, grupos rivais de pressão e campanhas lançad as em meia dúzia de países pela imprensa de ambos os lados do Atlântico parece tremendamente próxima de nossa própria era. Além disso, ao contrário de tantos grandes predadores da história de Gêngis Khan aos conquistadores espanhóis, o rei Leopoldo II nunc a viu uma gota de sangue ser derramada. Ele nunca pôs os pés no Congo. Aí também há qualquer coisa de moderníssimo, algo assim como um piloto de bombardeio na estratosfera, acima das nuvens, que jamais escuta os gritos nem vê as casas e carne sendo estilhaçadas. Embora a Europa já tenha se esquecido há tempos das vitimas do Congo, acabei encontrando uma quantidade enorme de material com o qual trabalhar para reconstruir -lhes a sorte; registros de missões de catequese; relatórios sobre investigações do gover no; além daquele fenômeno tipicamente vitoriano, o relato de cavalheiros (e às vezes damas) “viajantes”. Um dos grandes problemas, claro, é que a maior parte desse vasto mar de palavras foi deixado por europeus ou norte -americanos. Não havia língua escrit a no Congo quando os europeus chegaram, e isso inevitavelmente distorceu a maneira como a história foi registrada. Temos inúmeros relatos feitos por funcionários brancos; conhecemos as opiniões inconstantes, por vezes anotadas dia a dia por pessoas que tin ham papel-chave no Ministério do Exterior britânico. Mas não temos uma única descrição extensa ou uma história oral 7 completa de um congolês que seja, durante o período de maior terror. Em lugar de vozes africanas, existe apenas um velado silêncio. Ainda assim, ao mergulhar em todo material, embora parco, com relação as fontes existentes no Palácio de Leaken, na Bélgica, percebi o quanto era revelador. Os homens que ocuparam o Congo em geral sentiam orgulhoso de suas matanças e vangloriavam -se delas em livros e artigos de jornal. Alguns escreveram diários de uma franqueza extraordinária, que acabaram denunciando bem mais do que o prometido; há inclusive um volumoso e explícito livro de instrução destinado aos funcionários da colônia que é de estarrecer. Além disso, vários dos oficiais do exército particular que ocupou o Congo acabaram por se sentir culpados pelo sangue que tinham nas mãos. O testemunho que deram e os documentos que surrupiaram da colônia ajudaram a alimentar o movimento de protesto. Mesmo por parte dos africanos, brutalmente reprimidos, o silêncio não é total. Alguns de seus atos e parte de suas vozes acabaram chegando até nós, ainda que filtrados pelo registro de seus conquistadores. Na África inteira, quem escrevia os livros didáticos eram os colonizadores; ao lado de uma ampla censura de determinadas obras e da imprensa em geral, esses livros aperfeiçoaram o ato de esquecimento por meio da palavra escrita. No Congo, durante o meio século em que o governo belga governou o país depois da morte do rei em 1909, os livros escolares dos africanos elogiaram Leopoldo e sua obra com o mesmo entusiasmo com que os livros didáticos soviéticos elogiaram Lênin. Esse esquecimento oficialmente decretado não poderia claro, abranger as aldeias distantes, onde persistem até hoje relatos sobre o terror da borracha. Mas até mesmo essa memória coletiva é hoje mais rara do que seria de se esperar. Um punhado de antropólogos dedicados ajudou a encontrar e preservar essas memórias – em geral alguma lenda local fragmentada sobre alguém extraordinariamente cruel daquele período, lembrado com la guerre du blac [A guerra do branco] ou, na língua mongo, lokeli, “o esmagador”. Às vezes, ao lado de informações recolhidas por testemunhas como missionários, o terror está impres so na própria língua. Em mongo, por exemplo, “mandar alguém colher borracha” é uma expressão que significa “tiranizar”. Relativamente poucas memórias coletivas da era da borracha, sobretudo, na África rural, uma vez que a tradição oral geralmente é uma que stão de lembrar-se de reis, dinastias e vitórias em combate. E as dinastias que sobreviveram quase sempre conseguiram esse feito colaborando com os senhores coloniais. Como observa Vansina (1966, p. 37), em sua história do povo Cuba: “Nenhuma relato desses eventos [a era escravocrata da borracha, de Leopoldo] 8 aparece nas tradições dinásticas. Os dirigentes que se beneficiaram com o sistema não deixariam que isso ficasse na memória oficial”. Nas cidades, onde agora vive a maioria dos congoleses, a rápida ur banização provocou abalos drásticos. Por exemplo, o que até como cem anos atrás era apenas um pequeno vilarejo, chamado Kinshasa, é hoje uma metrópole caótica, em constante expansão, que abriga cerca de 5 milhões pessoas, muitas das quais recém -chegadas das zonas rurais, na busca desesperada de trabalho. Mudanças como essas desestabilizaram e afrouxaram os laços pelos quais as histórias se passam de uma geração para a outra. As culturas tradicionais estão bastante enfraquecidas e, junto com elas, vai desap arecendo também a própria lembrança das forças que iniciaram a destruição. O pior da carnificina no Congo aconteceu entre 1890 e 1910, mas suas origens datam de muito antes, de quando europeus e africanos viram -se cara a cara pela primeira vez. De modo que, para chegarmos à nascente de nossa história, temos de voltar mais de quinhentos anos no tempo, até uma época em que um capitão viu o oceano mudar de cor e um rei recebeu notícias de uma aparição estranha que surgira de dentro da terra. Referências ASCHERSON, Neal. A Corporação Real: Leopoldo II em relação à idade dos Trustes. Londres: George Allen & Unwin, 1963. BRUNSCHWIG, H. Da resistência africana ao i mperialismo europeu . Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional , 1974. p. 47-64. CASTRO, Therezinha. África geohistória, geopolítica e relações internacionais. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981. CHARLES, BOXER. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1998. CONRAD, Joseph. Heart of darkness: an authoritative text; backgrounds and sources; criticism. 3. ed. Ed. Robert Kimbrough. Norton Critical Edition. Nova Yprk: W. W. Norton & Co., 1998. DAVISON, Basil. O despertar africano. Londres: Jonathan Cape, 1955. 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http://www.uesb.br/anpuhba/anais_eletronicos/Thadeu%20Cajado%20de%20Andrade.pdf
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