1 de jul. de 2019

Diálogos entre Moro e Lava-Jato devem ser submetidos ao contraditório Por Edilton Meireles, desembargador

Diálogos entre Moro e Lava-Jato devem ser submetidos ao contraditório
Segunda-feira, 1 de julho de 2019

Diálogos entre Moro e Lava-Jato devem ser submetidos ao contraditório


Por Edilton Meireles, desembargador
Imagem: Agência Brasil

Se o agente público, no exercício da sua função pública, faz uso de equipamento privado para se comunicar com terceiros, produzindo o documento eletrônico, ele abre mão do direito à proteção da inviolabilidade da respectiva comunicação.


A revelação dos diálogos mantidos entre o ex-juiz Sérgio Moro e os membros do MPF pelo The Intercept Brasil trouxe à luz interessante questão jurídica ao debate público, qual seja: a licitude ou não das provas reveladas pelos jornalistas neste caso concreto.

Para alcançar qualquer conclusão, diante do que já foi revelado e declarado pelos participantes dos diálogos (até 26/06/19), tem-se duas premissas básicas incontroversas: i) o ex-juiz manteve conversas em ambiente virtual com membros do MPF; e, ii) os membros do MPF mantiveram (ou ainda mantém) conversas entre si em ambiente virtual. 

Do que já é público se tem também que, mesmo que em parte, os diálogos foram confirmados como autênticos, ainda que implicitamente, seja porque não negada a sua veracidade inicialmente, porque declarado por interlocutor que eles não comprovam qualquer irregularidade, porque objeto de desculpa pública pelas declarações contidas nos diálogos, ou pela declaração do ex-juiz que “a montanha pariu um rato” quando diante de novas revelações (sem negar a veracidade dos diálogos). É certo, porém, que se levanta suspeita quanto a uma eventual adulteração de parte dos
diálogos. 


É incontroverso, porém, que o ex-juiz e os membros do MPF e estes entre si, nos ambientes virtuais, mantiveram conversas em decorrência do exercício de suas respectivas funções públicas. Logo, tratam-se de diálogos públicos. E como esses diálogos foram produzidos em ambiente virtual, com registro em arquivo eletrônico, este é considerado documento público, pois elaborado e produzido por autoridade pública no exercício de sua função. 

É certo que esses agentes públicos podem ter conversado, nos grupos virtuais, também sobre assuntos restritamente particulares (suas paixões, futebol, receita de bolos, aniversários, fofocas, etc). Mas na parte que decorre do exercício da função pública, o arquivo é documento público (o registro eletrônico dos diálogos). 

E não se diga que se trata de documento particular, já que produzido e arquivado mediante uso de linhas ou aparelhos telemáticos privados, em ambientes virtuais privados. Isso porque, neste caso, pouco importa o meio utilizado para sua elaboração ou arquivamento. O que interessa é o seu produtor. Se produzido por agente público no exercício da função pública, será documento público, ainda que elaborado e arquivado em aparelho particular. 

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Se o agente público, no exercício da sua função pública, faz uso de equipamento privado para se comunicar com terceiros, produzindo o documento eletrônico, ele abre mão do direito à proteção da inviolabilidade da respectiva comunicação. Se ele guarda/arquiva em seu bem privado o documento público, não pode, a pretexto de proteger a privacidade, tentar impedir o acesso ao documento que é público. Aqui o Direito deve perceber que não se trata de mera conversa oral entre particulares. Mas de troca de mensagens, expedientes, ofícios, cartas, etc, devidamente documentados eletronicamente. 
Outrossim, as conversas entre promotor e juiz sobre questões relacionadas ao processo penal devem ser documentadas e juntas aos autos para serem submetidas ao contraditório. Até porque eles estão no exercício do poder estatal e, portanto, submetidos ao controle de seus atos. Não se pode, assim, ter as suas conversas, neste caso, como de natureza privada, protegidas pelo sigilo das comunicações. Do contrário, seria admitir ou que eles estariam apenas conversando sobre questões de interesse particular ou estariam protegendo, com o sigilo, eventual prática de atos irregulares. 

E aqui não se pode confundir as conversas e debates “privados” da parte com o juiz derredor de questões já postas no processo (a “sustentação oral” dos argumentos; a sustentação da urgência na apreciação do pedido, etc), com a troca de informações, sugestões de diligências e estratégias processuais, etc. Se o juiz que sugerir a ouvida de uma testemunha (se assim pode agir), que o faça documentando no processo sua iniciativa. O mesmo se diga do MP, ainda que sob sigilo em algum momento (para proteção da investigação). Nunca agir como se fossem particulares em conversas de seus interesses privados. 

Dito isso, outra questão deve ficar clara. Cuida-se das atribuições do MP no processo penal. São duas: ele pode atuar como fiscal da lei e como parte acusadora. E ainda que essas atribuições possam ser exercidas separadamente de forma autônoma e independente uma da outra, como se o procurador/promotor fosse dois sujeitos distintos, é certo que, a cada momento, incidente ou questão processual uma se sobrepõe a outra (ou a afasta). O MP muda de lado conforme a direção do vento processual. 

E aqui vem um detalhe importante: é que, ainda que se diga que o MP atua como parte (e com parcialidade) no procedimento principal de acusação, no incidente de suspeição do juiz aquele atua como fiscal da lei. Na realidade, neste incidente, o MP ou atua meramente como fiscal da lei, ou atua “assistindo” o réu (“vítima-acusador”), que alega a suspeição do juiz (“acusado”). Jamais atua como “advogado” do juiz. Pode até apenas opinar (como fiscal da lei) pela rejeição da alegação de suspeição diante da ausência de prova ou fundamento legal, mas jamais atuar na defesa dos interesses do juiz “acusado”. No mínimo, imparcial, mas jamais, no incidente de suspeição do juiz, atuar como parte adversária do acusado.  

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Daí se tem que, quando da alegação de suspeição do ex-juiz (e ainda hoje, pois essa questão ainda está em julgamento), cabia aos membros MPF juntar ao processo todo teor dos diálogos mantidos com aquele, pois documento público relevante para o deslinde da questão. E aqui não lhes cabia decidir se esses diálogos eram impertinentes ou irrelevantes para o Tribunal decidir se o juiz era ou não suspeito. Na realidade, no caso, ao MPF cabia, no mínimo, em juízo de razoabilidade, alegar que esses diálogos poderiam servir de prova da suspeição, submetendo-os ao crivo da Justiça. Isso porque, enquanto fiscais da lei, eles eram obrigados a exibir a prova respectiva ou informar sobre as declarações do ex-juiz nos diálogos mantidos entre si. E ao Tribunal cabe decidir se esses diálogos são pertinentes, relevantes ou meio de prova da alegação de suspeição. 

Ou, ainda que assim não fosse, na pior das hipóteses, caberia aos membros do MPF disponibilizar ao réu cópia dos diálogos para que este fizesse seu juízo de valor quanto a pertinência da prova. Jamais se omitir! Jamais deveriam ter sonegado essa prova. Aliás, dessa omissão se pode especular a suspeição de todos os membros do MPF que participaram ou tomaram conhecimento dos diálogos mantidos como o ex-juiz e que não os revelaram no incidente de suspeição (e ainda hoje nos dias que correm). 

Ou seja, na busca do respeito ao devido processo legal (fiscal da lei), no incidente de suspeição, o MP, se possui a prova que pode conduzir à suspeição, deve exibi-la e, se for o caso, aliar-se ao réu pedindo, agora, a nulidade dos atos praticados pelo ex-juiz. 

Dito isso, não se pode ter a prova revelada pelos jornalistas como ilícita. Isso porque, ainda que não seja uma prova derivada de outra ilícita, é certo que, se seguido “os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal” (§ 2º, art. 157, CPP), a ela se alcançaria pelos meios legais. Ou seja, fosse observado o trâmite legal (e ético), a prova já seria conhecida. Não se pode, assim, ter como ilícita uma prova que somente não foi revelada antes em decorrência de uma ilicitude. Seria uma extrema contradição: é ilícita porque não revelada anteriormente em decorrência de um ato ilícito (dos procuradores)! Porque os procuradores não revelaram, a prova agora revelada seria ilícita!
Ousaria até em afirmar que, se for a hipótese for de obtenção da prova de forma ilícita pela fonte dos jornalistas, não se pode cair na armadilha de tê-la como inválida quando o agente público (MPF) que tinha o dever de produzi-la licitamente não o fez por negligência ou por conduta deliberada. Chegaríamos ao cúmulo de ter o MP não produzindo a prova de forma lícita para prejudicar o réu e tê-la como ilícita se obtida de forma inválida por um terceiro e utilizada pelo acusado em sua defesa (sabendo-se que a prova ilícita pode ser utilizada em favor do réu no processo penal). 

Se a prova não é produzida de forma lícita pelo agente público que tinha a obrigação de revelá-la, seja qual for o motivo, não se pode ter como inválida processualmente se ela for obtida por outro meio, seja qual for ele, sob pena da ilicitude do Poder Público acabar prevalecendo em detrimento do devido processo legal.
E vejam: neste caso, ao MPF não cabe alegar a ilicitude da prova, sob pena de, hipoteticamente, “se beneficiar de sua própria torpeza”. Isso porque, ao MPF cabia exibir essa prova, enquanto documento público em sua posse. Logo, o MPF não pode, em tese, querer “se beneficiar” (ou “prejudicar” o réu ou “beneficiar” o ex-juiz) a partir de sua própria omissão. 

Poder-se-ia alegar, no entanto, que, na verdade, tratam-se de diálogos privados, mantidos em ambientes privados, sendo o arquivo eletrônico respectivo um documento particular. Daí se teria que não haveria obrigação de exibi-lo e, por consequência, a prova seria ilícita. 

Falso! Isso porque, ainda que particular o documento, o membro do MPF que participa, mesmo que passivamente em grupo de conversas virtuais, como interlocutor/destinatário de diálogo que pode, em tese, comprovar a suspeição do juiz, tem o dever de exibir a prova respectiva. Possuindo a prova documental, ainda que particular, que pode (ou poderia) conduzir ao reconhecimento da suspeição, ao membro do MPF se impõe a obrigação de exibi-la, nem que fosse, no mínimo, como uma pessoa qualquer do povo que tem o munus público de colaborar com a realização da justiça (art. 380 do CPC), seja informando “ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento”, seja exibindo “coisa ou documento que esteja em seu poder” (art. 380, CPC), de forma voluntária ou quando instado a se manifestar nos autos. 

Ademais, promotor é promotor 24 horas por dia. Logo, não pode o promotor/procurador se escusar de exibir o documento que possui e que é relevante à prova de fato alegado em processo penal à pretexto de que ele seria particular ou porque tomou conhecimento do fato pelas vias privadas, como se ele fosse duas pessoas distintas a ter condutas diferentes. 

E, hoje, ainda que não mais possua a prova, tem o membro do MPF participante dos diálogos o dever de prestar as informações pertinentes por ofício (ou como testemunha), seja declarando ou confirmando o teor das conversas. E é isso que se espera dos dignos membros do MPF. 

Observem. Neste episódio se pode estar (em tese) diante de uma situação na qual o membro do MP tenha atuado à margem da lei para prejudicar o réu, eventualmente em conluio com o juiz (não se pode descartar a “corrupção” dos dois – prevaricação?). Irregularidade não só do juiz apontado como suspeito, mas também do MP que não poderia agir fora dos autos sobre questões relacionadas ao processo penal. 

A prova, portanto, ainda que de natureza particular, mas de posse do membro do MPF participante do processo penal no qual se alegou a suspeição, seria revelada pelos meios lícitos se respeitados “os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal” a partir da atuação (lícita) do procurador federal. Logo, neste caso concreto, quando revelada a prova por terceiros (identificado ou não, hacker ou não), esta não pode ser tida como ilícita, pois a ela se chegaria se respeitado pelos membros do MPF “os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal”. Ou seja, não se pode ter como ilícita uma prova que não foi produzida licitamente porque os membros do MPF, em tese, teriam agido temerariamente ou foram negligentes em suas atuações funcionais. 

Para finalizar: em nenhuma hipótese o MPF, enquanto participante do processo penal, pode pretender atuar em prejuízo do réu no incidente (exceção) de suspeição, sonegando-lhe o direito ao uso da prova revelada pelos jornalistas, considerando a omissão de seus membros em não exibir o documento, público ou particular, que possuem e que pode servir de prova da eventual suspeição do ex-juiz.  

Ilícita seria, em tese, a conduta do MPF, em qualquer hipótese, e não a prova em si.


Edilton Meireles é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Desembargador do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa).


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