OS ALIENÍGENAS CHILENOS
Os chilenos já ergueram a espada de Alexandre e deram um belíssimo exemplo para a América Latina

Por Latuff
por Jornalistas Livres23 outubro, 2019
Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes
Profa. Dra. María Verónica Secreto
do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense
Os protestos no Chile seguem intensos e com resposta violenta do governo. De acordo com números oficiais, foram registradas 17 mortes. As manifestações começaram após o aumento das tarifas de metrô, fato que excitou a memória de muitos brasileiros em relação a junho de 2013. As semelhanças, contudo, não vão muito além. A efervescência chilena não é tributária apenas do aumento no preço dos transportes, mas da aventura liberal que há décadas sufoca o país e que ampliou significativamente o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres.
Um áudio vazado oferece a perfeita metáfora para essa distância. Cecilia Morel, esposa do presidente Sebastián Piñera, de centro-direita, teve uma conversa captada a partir de um áudio enviado a uma amiga. Nele, mostra não apenas o desespero que tomou conta do governo, mas a sensação de absoluta impotência diante do levante popular que, a confiar em seu próprio prognóstico, tende a piorar nos próximos dias. Segundo as informações que dispõe – ou das suposições que julgou seguro fazer – a primeira-dama denuncia que o próximo passo dos manifestantes é interromper toda cadeia de abastecimento, incluindo água e alimentos. Diz estar surpreendida, como se diante de “uma invasão estrangeira, alienígena”; mais do que isso, ou precisamente por isso, não teriam “ferramentas para combatê-la”.
Os manifestantes não chegaram de outro planeta, mas há certa razão nessa fala se se adota a perspectiva de Cecilia Morel. É preciso admitir que ricos e pobres realmente não vivem no mesmo mundo, ainda que partilhem algumas vezes os mesmos espaços. Para os pobres, ensinados a nutrir expectativas inalcançáveis que se colocam nos apelos cada vez mais agressivos ao consumo, os ricos não vivem em um lugar insólito, afastado de toda civilização conhecida: eles estão onde a maioria gostaria de estar. O contrário, contudo, não é verdadeiro, não só porque a pobreza não é acalentada por ninguém, mas porque a perda de privilégios parece ser bem mais difícil do que a conquista. Os alienígenas, contudo, não são exatamente, ou tão somente, os pobres chilenos, mas a juventude que se insurge contra esse seleto grupelho de poderosos. Os jovens, com sua potência revitalizadora, não querem para seu futuro o presente tenebroso em que vivem seus pais e avós.
Em 2013, o Chile era o país mais desigual do mundo, sobretudo por causa da privatização do sistema de seguridade social realizado durante o governo ditatorial de Pinochet. Na prática, quase metade dos chilenos não dispõe de benefícios quando param de trabalhar. O sistema de previdência é de capitalização individual, em mãos das AFP (Administradoras de Fundos de Pensão). Quando o sistema previsionário foi reformado na década de 1980, os Carabineros e as Forças Armadas não foram atingidos. Não sem razão, o Chile possui o maior índice de suicídio de idosos na América Latina. Aproximadamente 74% das famílias estão endividadas. Os serviços públicos são escassos e não há alternativa privada com preços acessíveis à maioria da população. Todas essas questões contribuem para a vulnerabilidade da maioria, tornando-os estrangeiros em sua própria terra.
A mídia dominante sempre coloca o Chile como modelo, como a ovelha branca entre ovelhas negras. É a terra fértil onde a escola de Chicago conseguiu se enraizar. O próprio Paulo Guedes desembarcou no Chile, onde viveu na década de 1980 e conheceu de perto a política econômica que ele tanto admira e luta ferozmente para implementar no Brasil. Em fevereiro deste ano, em uma entrevista ao Financial Times, o atual ministro da Economia disse que Pinochet fez do Chile uma Suíça. Hoje o país está em chamas, inflamado por esse fetichismo rentista que afaga banqueiros e ignora o povo.
O modelo econômico desenhado na década de 1970, durante a ditadura militar, teve continuidade no período democrático. Devemos lembrar que o processo de democratização no Chile começou com limitações: Pinochet continuou como comandante em chefe do Exército (1990-1994) e foi senador vitalício até 1998. As “verdades liberais” passaram a ser inquestionadas. Chile é hoje o país da América Latina que tem a maior renda per capita e também o pior índice de distribuição da riqueza. As duas coisas num mesmo espaço. Ricos, demasiado ricos; pobres, demasiado pobres.
Enquanto na América Latina eram presidentes Lula, Evo Morales, Kirchner, Correa e Chávez, as economias cresciam e eram implementadas políticas públicas de distribuição de renda e riqueza. Ao mesmo tempo, o Chile era enaltecido como modelo da modernidade econômica com seu Estado mínimo, minúsculo, que tinha funções exíguas para transferir ao mercado o poder de intermediar todas as relações e transações.
A mídia tradicional começou a última semana buscando as razões que motivaram esses “loucos” a sair do paraíso. Descobriram que os serviços consomem parte importante dos salários e que a educação é das mais caras da América Latina. O estopim nada desprezível foi o preço do transporte, que consome 30% do salário dos trabalhadores e trabalhadoras, mas por trás dele se escondia um sem-fim de privações que a imprensa muito se esforça para ignorar. O “modelo” neoliberal está povoado de privações.
Apenas 1% da população chilena concentra 26,5% da riqueza. Os números não são muito diferentes do Brasil e a tendência é que nossa situação se torne cada vez mais parelha, já que Paulo Guedes, manipulando seu fantoche Jair Bolsonaro, tenta implementar hoje o que foi feito no Chile, sobretudo na década de 1990. Sem luta, o Brasil produzirá ainda mais alienígenas em sua própria terra, tornando-a um território hostil em que só os ricos têm direito de viver.
Cecilia Morel, quase no fim do áudio, reconhece o cerne do problema e diz: “Temos que diminuir nossos privilégios”. Esse arroubo de sinceridade, possível só pelo aspecto privado da mensagem, é o núcleo do problema que há muito as esquerdas sinalizam e que os interesses financeiros fazem questão de ignorar.
Ontem, ao final do dia, Piñera, o mesmo que chamou o cidadão que protestava na rua de inimigo poderoso e implacável que tinha o único propósito de produzir o maior dano possível, avaliou o caos, refletiu e anunciou que se reformará o sistema de pensões, a saúde, a renda mínima e as tarifas elétricas. Uma agenda social que inclui maior carga impositiva para os mais ricos, redução dos salários dos parlamentares e de outras esferas da alta administração pública. Embora paliativas e não estruturais, vem pela frente um conjunto de medidas heterodoxas. Paulo Guedes deve estar decepcionado com o exemplo que tanto admirava, mas não há profilaxia possível: em algum momento a vida material grita, e quem está habituado ao silêncio corre realmente o risco de achar que se trata de um berro alienígena.
Felizmente, são terráqueos como nós que estão lutando para romper esse nó górdio atado pelas privatizações. Os chilenos já ergueram a espada de Alexandre e deram um belíssimo exemplo para a América Latina.
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