Os curdos e Rojava: Uma revolução democrática sob o ataque da Turquia
15/10/2019 14:38

Créditos da foto: (Joey Lawrence)
Em setembro de 2014, a cidade curda de Kobanî, terra que é berço da civilização mesopotâmica e está localizada no norte da Síria, próxima à fronteira com a Turquia, foi testemunha da chegada de um horror sem precedente: o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, também conhecido pela sigla ISIS. Os terroristas jihadistas lançaram um ataque contra esta localidade emblemática curda com um motivo único: exterminar os curdos por ser um povo indígena “infiel” e não adepto a sua perversa doutrina islâmica salafista. Diante do genocídio, homens e mulheres curdas tomaram armas nas Unidades de Proteção do Povo (“YPG”) para montar a autodefesa legítima. Contra as previsões anunciadas pelos “especialistas” no Ocidente, Kobanî não caiu nas mãos das forças terroristas, pelo contrário, houve uma vitória decisiva por parte das forças curdas, tão importante que chegou a ser considerada “a Stalingrado do conflito sírio”, a batalha crítica que representou o começo do fim para o “califado” terrorista do ISIS.
Nos cinco anos seguintes, o sangue que jorrou por esses quase mil mártires de Kobanî jorraria também por outros 11 mil, após a campanha para liberar mais de 30% (aproximadamente 4 milhões de pessoas) do território nordeste sírio – conhecido como “Rojava” – da brutalidade e repressão do ISIS. Paralelamente à luta armada, os povos curdos, árabes, assírios, siríacos e armênios, seguidores das religiões muçulmana, cristã e yazidi, se uniram para colocar em prática o sonho de uma nova sociedade democrática, pluralista e igualitária.
Rojava (oficialmente chamada de “Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria”) constitui um projeto inédito para a humanidade, um experimento político e social que planteia a construção de uma nova sociedade democrática, feminista e ecológica capaz de superar as contradições da modernidade capitalista mediante o “confederalismo democrático” que advoga pela modernidade democrática. Este novo modelo de governança é regido de acordo a um “sistema federal, democrático cujo consenso garante a participação igualitária de todos os indivíduos e grupos na discussão, decisão e gestão coletivas”, segundo o determinado em seu Contrato Social. Em seus poucos anos de funcionamento, Rojava mostrou grandes e concretos avanços, como a criação de uma economia social, sistema judicial de reparação com perspectiva de gênero e proteção garantida a todas as etnias, minorias e religiões, em uma região historicamente marcada pelo autoritarismo estatal.
Entretanto, todas essas conquistas da revolução em Rojava, que foram possíveis após anos de luta e esforço, se encontram atualmente sob ataque.
No dia 9 de outubro, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, do partido ultranacionalista e conservador Justiça e Desenvolvimento, deu início a uma operação militar que denominou “Primavera da Paz”, em conjunto com seus aliados jihadistas do “Exército Livre Sírio”, com o objetivo de submeter os povos do Norte e do Leste da Síria aos interesses do estado turco, através de uma campanha de limpeza étnica, deslocamento e dominação brutal. Em plena violação dos princípios do direito internacional da não intervenção, com respeito à soberania e a paz entre os povos do Norte e do Leste da Síria, que se encontram novamente forçados a exercer a autodefesa legítima como única ação possível contra a destruição total de suas famílias e sua cultura.
A sequência dos eventos dos últimos dias produziu reações de repudio no mundo inteiro, com mais de duas dezenas de países condenando a agressão militar turca e os protestos massivos por parte da América do Norte, Europa e Oriente Médio. Enquanto os dias se passam, aumenta exponencialmente o número de mortes de civis, como produto dos bombardeios indiscriminados da Turquia e dos múltiplos crimes de guerra cometidos por seus aliados, como a execução sumaria da líder do Partido Sírio para o Futuro e ativista pelos direitos das mulheres, Hevrin Kalaf, no dia 13 de outubro.
Vale recordar que o resgate bem sucedido das sete crianças órfãs de ascendência chilena que estavam no Norte da Síria, operação que aconteceu no dia 7 de maio deste ano, foi produto, em grande parte, da vontade das autoridades de Rojava. Elas advogaram em favor do cuidado das crianças refugiadas no acampamento al-Hol, enquanto realizavam as devidas gestões que asseguraram a evacuação segura das crianças, e seu traslado à Suécia; uma sequência de eventos que capturou a atenção, o interesse e finalmente a alegria em todo o Chile.
Durante a redação deste artigo, consultei com um querido heval (“companheiro” em curdo) que vive no Chile após ser forçado a deixar sua terra natal, sobre sua perspectiva da atual situação em Rojava. O heval me comentou que “a política de Erdogan pretende expulsar todos os curdos de Rojava, atacando brutalmente a sociedade curda com suas forças aéreas e sua artilharia. Como todos os povos, nós temos o direito de viver em paz. Por isso, não há mais remédio a não ser resistir”. Ao ser perguntado sobre se tinha alguma mensagem para o povo sul-americano, e ele imediatamente me respondeu que “desejo que os sul-americanos conheçam melhor os curdos e defendam sua causa justa”.
Agora, em seu tempo de necessidade, deveríamos demonstrar uma unidade e apoio absoluto em defesa dos povos de Rojava. A solidariedade internacional verdadeira é a que se aplica sem diferenciação alguma, a todos os povos do mundo, quando seu direito inalienável de viver em paz é afrontado pelos opressores de plantão. Temos o dever ético-moral de implementar toda ação solidária em apoio a Rojava, e pressionar nossas respectivas autoridades para a condenação do Estado da Turquia a partir de um apelo em favor do imediato cessar da ofensiva militar.
Esta deve ser a união de todos e todas nas lutas pelo bem comum, pela justiça meio-ambiental, seja na Amazônia brasileira ou no Curdistão. Que o internacionalismo sincero seja parte da nossa cotidianidade, e baseado em valores imprescindíveis de liberdade, justiça e igualdade.
Ao concluir a conversa com o heval, escutei ele afirmar convincentemente que o que resta a ele, sua família e seu povo é o espírito que sempre orientou a história do povo curdo, encapsulada concisamente na seguinte frase da canção Berxwedan Jiyane: “a resistência é vida”.
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Os-curdos-e-Rojava-Uma-revolucao-democratica-sob-o-ataque-da-Turquia/6/45473
Brian Feldman Clough é analista político chileno-estadunidense
*Tradução de Victor Farinelli
Brian Feldman Clough é analista político chileno-estadunidense
*Tradução de Victor Farinelli
0 comentários:
Postar um comentário