22 de mar. de 2020

Marcia Tiburi: “a ameaça de extinção não deve ser descartada como um absurdo”. - Editor - QUANDO A HUMANIDADE VAI CRAVAR NO CORAÇÃO DO NEOLIBERALISMO, O VÍRUS DE SUA MORTE ????????????????????????????????????????????????????????????????????????????


Marcia Tiburi: “a ameaça de extinção não deve ser descartada como um absurdo”

A filósofa reflete sobre o Covid-19, que pode endurecer ainda mais o capitalismo ou significar uma mudança de paradigma

PLENÁRIO DO TSE ESTA SEMANA. FOTO: ROBERTO JAYME/ASCOM-TSE
Marcia Tiburi 
21 de março de 2020, 12h56
   
Particularmente, desejo dizer alguma coisa que possa ajudar as pessoas nesse momento difícil. Não há mais nada que possa ser feito para evitar a tragédia que irá se abater sobre o mundo e também o Brasil.
Coletivamente, estamos passando por um limiar, um limite que marca o início de algo novo, e tudo o que podemos fazer é tomar consciência, nos responsabilizar dentro de nossos próprios limites e exigir responsabilidade da parte de quem detém os poderes nos mais diversos âmbitos. Os riscos e limites estão claros em nível econômico, material, profissional, psicológico e até mesmo existencial. A ameaça de extinção não deve ser descartada como um absurdo.
Evidentemente, esse é um momento decisivo para uma crítica do neoliberalismo como fase avançada do capitalismo. Diante de problemas sérios como o que enfrentamos agora, o neoliberalismo demonstra sua fragilidade como projeto. Se o neoliberalismo piora o viver (em sentido econômico, social, cultural e nos demais âmbitos da vida) de muita gente –ele também se apresenta como inviável quando se trata de sobreviver em sentido biológico.
O capitalismo é biopolítico e tanatopolítico. Ele calcula quem deve viver e quem deve morrer e isso está cada vez mais evidente na estrutura do sistema. O acesso à saúde é uma prova disso
Ao ser ameaçado de extinção por um vírus, fica claro o caráter gregário, social e político do ser humano como um ser que se constitui em relação aos outros. A política como construção de relações saudáveis, e não como jogo de poder, se apresenta como a própria essência da condição humana. A antipolítica (ou política da destruição), baseada no ódio e na desagregação, na avareza e na falta de solidariedade, demonstra que não há futuro sem a política no seu melhor sentido. A solidariedade vem da consciência do comum que caracteriza essa política de que precisamos para viver e sobreviver. Que a solidariedade esteja sendo demonstrada pela China e por Cuba nesse momento, é um sinal de que a solidariedade vem dos comunistas. A sociedade que devemos construir se quisermos permanecer sobre a face da terra não pode prescindir da solidariedade.
Ao mesmo tempo, o cerne tanatopolítico, ou necropolítico do neoliberalismo, mostra sua fácies hipocrática nesse momento. Quando vemos certos líderes mundiais recuando da já naturalizada economia política do abandono e do “Estado mínimo”, que são típicas do neoliberalismo, e atuando na direção de um Estado de responsabilidade para com o povo, criamos certa esperança. Mas essa esperança é ilusória na medida em que sabemos que uma crise não passa de mais uma oportunidade de negócios para os neoliberais que vivem auto-iludidos em suas bolhas cheias de fantasias sobre um futuro maravilhoso sempre construído por seu egoísmo e narcisismo. Estejamos alertas, pois, passando a crise, é o próprio povo que, permanecendo vivo, terá que pagar o preço da catástrofe. O capitalismo é um fardo pesado demais e os donos do capital jamais o carregarão.
Se o neoliberalismo piora o viver (em sentido econômico, social, cultural e nos demais âmbitos da vida) de muita gente –ele também se apresenta como inviável quando se trata de sobreviver em sentido biológico
O capitalismo é biopolítico e tanatopolítico. Ele calcula quem deve viver e quem deve morrer e isso está cada vez mais evidente na estrutura do sistema. O acesso à saúde é uma prova disso. Portanto, aos que sobreviverem, considerando que o regime da morte também se compraz com a desgraça desse momento, saibam que não será fácil o que vem pela frente.
Dito de outro modo, o capitalismo de desastre se aproveitará para lucrar com a desgraça. Se sobrar alguma coisa depois desse momento infeliz, a chance de enfrentarmos um regime econômico ainda mais duro é imensa, pois não podemos nos iludir de que o capitalismo amenizará seu método violento contra corpos trabalhadores e de minorias políticas que ele transforma em seus súditos e objetos descartáveis a todo o momento e desde sua fundação. Portanto, é importante nesse momento, nos prepararmos para o pior e/ou para uma nova chance moldada em outro paradigma econômico, social, político e espiritual (quando me refiro a espírito quero dizer cultura, educação, ética), caso haja.
Além disso, não devemos deixar de lado que a imensa maioria da população nos mais diversos países está sob ameaça de morte. É natural que nos escandalizemos com a atitude de chefes de Estado como o brasileiro que, até o momento, age segundo a loucura e a destruição que foram transformadas em forma de governo no Brasil. Agora Bolsonaro acrescenta um projeto de extermínio do povo e admite fazer do seu próprio corpo o veículo da morte quando encontra pessoas e age sem os critérios de segurança sanitária da quarentena respeitada em todo o mundo.
O confinamento é um bom momento para entender e valorizar o que realmente importa, para exercitar o melhor de cada um para consigo mesmo e para com os outros: solidariedade, generosidade, gentileza, a vida sem exploração e longe do consumismo
É evidente que Bolsonaro é despreparado e perverso. É evidente que ele sempre foi assim, mesmo que muitos não quisessem acreditar, uns porque se identificaram com ele de modo sadomasoquista, outros porque se consideraram superiores a ele, imaginando manipulá-lo. Não é por acaso que a máscara que ele usava literalmente caiu em uma das entrevistas coletivas que ele deu ao lado de seu ministério de ineptos. O livro do mundo continua sendo escrito em linguagem cifrada, nos cabe aprender a ler.
O confinamento é um bom momento para entender e valorizar o que realmente importa, para exercitar o melhor de cada um para consigo mesmo e para com os outros: a solidariedade, a generosidade, a gentileza, a vida sem exploração e longe do consumismo, o reconhecimento dos que estão trabalhando para tentar conter o avanço da catástrofe, mas também a auto-reflexão, o diálogo e, sem dúvida, o sentido do viver-junto e da vida humana no planeta Terra que ela tem desprezado de modo narcísico e inconsequente.
Marcia Tiburi é professora de filosofia na Universidade Paris 8
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