LUTA. Enfrentar a pandemia de coronavírus no Brasil também é uma guerra contra a desinformação.
Com representantes no Congresso e no Executivo, as mega-igrejas brasileiras prometem tratamentos milagrosos e pressão para manter os templos abertos durante a pandemia. Este relatório faz parte do Poder Não-Santo, uma investigação jornalística liderada pelo OjoPúblico no Peru, Argentina, Brasil e México, que busca entender as pressões desses grupos durante a pandemia.
10 de junho de 2020
Por Mariama Correia e Andrea Dip
BRasil teve mais de 500 casos confirmados do novo coronavírus quando Silas Malafaia, pastor da Assembléia Evangélica de Deus Vitória em Cristo, postou um vídeo no Twitter com a chamada: "Deseja fechar as igrejas das quais sou pastor? Apelo à justiça" . O pastor desafiou em 18 de março as determinações dos governos dos estados brasileiros de conter a curva de contágio, que continua a subir no país.
Malafaia é um dos principais líderes religiosos brasileiros. Suas mensagens alcançam milhares de seguidores em mais de 100 igrejas que ele lidera em todo o país, além de plataformas de televisão, rádio e Internet. Somente no Twitter, ele tem mais de 1,4 milhão de seguidores.
Ele é conhecido por exercer uma forte influência política no Congresso Nacional - especialmente nos congressistas dos bancos evangélicos, dos quais ele coleciona posições e ações e quase sempre é atendido -, mas também por ajudar a eleger candidatos a vereadores e deputados estaduais e federais com uma alta taxa de sucesso.
Nas eleições de 2014, por exemplo, Malafaia pressionou a candidata presidencial Marina Silva, que também é evangélica, embora um pouco mais progressista, a mudar seu plano de governo que incluía direitos para a população LGBT. Naquela época, após as críticas do pastor no Twitter, Marina retirou-se de suas propostas de programas, como tornar a homofobia um crime e eliminou a iniciativa de desenvolver material educacional para combater o preconceito e o assédio por orientação sexual nas escolas.
Desde o início da pandemia, Malafaia tem sido o líder religioso que se manifestou contra o isolamento social. Minimiza os efeitos do Covid-19, que no momento do fechamento deste relatório havia matado mais de 24.000 pessoas no Brasil. O pastor resistiu a suspender o culto presencial até que os tribunais ordenassem o fechamento dos templos, mas continua a criticar veementemente a quarentena decretada pelos governos locais.
Outros líderes evangélicos aliados ao governo de Jair Bolsonaro e também com forte ação política repetem a retórica de negação do presidente. Bolsonaro chamou o Covid-19 de "gripe". Um dos homens mais poderosos do país, o bispo Edir Macedo, que comanda a Igreja Universal do Reino de Deus, é abertamente seu aliado.
A Igreja Universal também possui um império da comunicação, Macedo, que comanda mais de 10.000 templos em todo o mundo e também possui um império da comunicação chamado Grupo Record, gravou um vídeo dizendo que os fiéis não devem se preocupar com o novo coronavírus, pois isso seria uma "tática de Satanás".
O domínio da fé
Os evangélicos são uma grande força política no Brasil. Hoje eles representam cerca de um terço da população. Muitas mega igrejas têm mídia, o caso mais emblemático é a Igreja Universal do Reino de Deus. O Record Group é o quarto maior conglomerado de mídia do Brasil, com vários meios de comunicação, incluindo a Record TV, a terceira maior estação de televisão do Brasil.
A Universal também está diretamente ligada a um partido político, o Partido Republicano, que tem dois filhos de Bolsonaro entre suas afiliadas, o conselheiro Carlos Bolsonaro e o senador Flávio Bolsonaro. O atual presidente do partido é o deputado Marcos Pereira, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. Sua candidatura à presidência da Câmara dos Deputados no próximo ano seria promovida pelo presidente, em aliança com Edir Macedo. Rodrigo Maia (DEM), oponente de Bolsonaro, é quem agora preside a Casa. Maia tem o poder de aceitar uma solicitação de destituição do Chefe do Executivo, por exemplo, além de estabelecer diretrizes de votação em plenário.
O nome de Marcos Pereira também seria articulado pela Frente Evangélica Parlamentar no Congresso Nacional. A Frente reúne cerca de 100 deputados e 15 senadores, de diferentes partidos. No executivo, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que no governo Dilma Rousseff foi chamado Ministério da Mulher, Igualdade Racial e Direitos Humanos, agora está sob o comando do pastor evangélico Damares Alves , ativista anti-aborto e firme defensora da luta contra o que ela chama de "ideologia de gênero". Sob sua gestão, ele vem gradualmente desmontando políticas públicas voltadas para a população LGBT.
O apoio do segmento evangélico - que pela primeira vez na história do país reuniu várias organizações em apoio a um único candidato - foi fundamental para a eleição de Bolsonaro e continua sendo um importante pilar de apoio ao seu governo. No entanto, apesar da corrosão de suas bases, acelerada por sua má administração diante da pandemia, o presidente mantém 41% de aprovação dos evangélicos brasileiros, segundo uma pesquisa recente do Datafolha.
Em troca do apoio do público que é ideologicamente leal a ele, e em um ano de eleições municipais, Bolsonaro distribui posições políticas. A escolha de outro nome evangélico para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o pastor da Igreja Presbiteriana de Esperança em Brasília e o ex-procurador-geral da União, André Mendonça, cumpre os compromissos firmados com essa parte do seu círculo eleitoral.
Mendonça publicou um vídeo no Twitter mostrando uma posição contra a descriminalização do aborto em caso de infecção pelo vírus Zika, uma epidemia que causou um surto de nascimentos de bebês com microcefalia no Brasil a partir de 2015. Líderes evangélicos e católicos, como o A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também se manifestou contra a proposta, apresentada pela Associação Nacional de Defensores Públicos, que também trata da defesa dos direitos das vítimas desta doença. A ação foi julgada e rejeitada pelo Supremo Tribunal durante a pandemia do novo coronavírus.
Os direitos das mulheres ameaçadas
Em meio à pandemia, em março, o Hospital Pearl Byington, em São Paulo, suspendeu o serviço legal de aborto. No Brasil, o aborto é legal em casos de estupro, com risco de vida para as mulheres e anencefalia do feto, e este hospital é o com mais intervenções, principalmente para vítimas de violência sexual em todo o país.
Durante a pandemia, o Estado de São Paulo escolheu este centro médico que atende pacientes ambulatoriais do Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal para convertê-lo em um local de detecção do Covid-19. Somente depois que o Ministério Público e o Defensor Público acusaram suas autoridades, o hospital disse que suspendeu o atendimento ambulatorial para "reduzir a circulação de pessoas e impedir o contágio".
Após pressão do público, o serviço foi retomado. Porém, estratégias que ameaçam os direitos reprodutivos das mulheres continuam sendo adotadas no Congresso. Uma proposta de emenda constitucional do ex-senador Magno Malta (PR), pastor evangélico, propõe a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção até a Constituição. Há também um projeto de lei (556/2019), do senador Eduardo Girão (Podemos), que sugere aumentar a pena pelo crime de aborto.
Jejum nacional
A pedido dos pastores evangélicos, o presidente pediu um Dia Nacional do Jejum para encerrar a pandemia. Os líderes de várias igrejas apoiaram a chamada em um vídeo. Entre eles estava o deputado federal e pastor Marco Feliciano (Podemos), um dos principais interlocutores do presidente na Câmara dos Deputados. O presidente da Frente Parlamentar Evangélica, também conhecido como Conclave Evangélico, Silas Câmara, do Partido Republicano, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, declarou seu apoio ao jejum nacional.
A privação de comida tem um significado de sacrifício e é usada para apaziguar a fúria divina na narrativa cristã. Ao usar esse recurso, Bolsonaro segue o exemplo do presidente Donald Trump (EUA), que também pediu um dia de oração e jejum na pandemia. A influência de Trump levou presidentes de outros países latino-americanos, como autoridades locais no Peru e Guatemala, a fazer gestos semelhantes.
"Por meio da convocação, os presidentes, inclusive o brasileiro, marcam a aliança de seus governos com grupos religiosos, que tem sido a tônica da política na América Latina nos últimos anos", diz Ronaldo de Almeida, doutor em Antropologia. Universidade de São Paulo Social e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
O dia do jejum ocorreu em 5 de abril. Na consulta, Bolsonaro tomou uma xícara de café na companhia dos aliados.
A pressão para abrir os cultos
Em todo o mundo, restrições à adoração e celebrações religiosas foram adotadas para evitar multidões, que ajudam a espalhar o novo coronavírus. No Brasil, essas medidas provocaram indignação por parte de alguns grupos evangélicos, que vêem decretos de isolamento social como ameaças à liberdade religiosa. Desde o início da pandemia, esses grupos fizeram lobby no Congresso Nacional pela manutenção dos serviços presenciais.
Graças aos ataques da Frente Parlamentar Evangélica, os templos foram reconhecidos como serviços essenciais no país, além de supermercados e farmácias. "Acreditamos que a fé é um grande aliado neste momento grave da nação, por isso não podemos limitá-la", diz uma nota da Frente.
O decreto presidencial foi emitido em 26 de março, mas não entrou em vigor. Os governos regionais, que formaram um bloco de oposição ao governo Bolsonario, mantiveram restrições aos cultos. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, os estados e municípios têm autonomia para determinar as medidas para enfrentar o coronavírus.
A posição do governo federal, no entanto, alimentou disputas em nível regional. Em todo o país, os pastores continuam a pressionar os governos das cidades e dos estados para diminuir as restrições. Mais recentemente, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) conseguiu incluir uma autorização especial para a livre circulação no país.
Milagre, desinformação e cloroquina
Enfrentar a pandemia de coronavírus no Brasil também é uma guerra contra a desinformação. E alguns líderes religiosos se estabeleceram como grandes disseminadores de notícias falsas. Durante a pandemia, os vídeos do pastor Silas Malafaia foram excluídos do Twitter devido a relatos de usuários. No entanto, a informação falsa continua a se espalhar com o incentivo das redes desses grupos fundamentalistas.
As soluções milagrosas para o Covid-19 aparecem nas redes do WhatsApp a uma velocidade mais rápida do que a relatada pelas agências de verificação de fatos. O mais famoso deles é a hidroxicloroquina, um medicamento usado para combater a malária. A droga é defendida pelo presidente dos Estados Unidos Donald Trump e, refletindo a atitude de seu ídolo, o presidente Jair Bolsonaro pressiona para que a droga seja incluída no protocolo para tratamento de pacientes com o novo coronavírus. Até agora, a eficácia da droga não foi comprovada pelos cientistas.
No efeito dominó, a hidroxicloroquina começou a ser defendida por grupos de estudiosos e líderes religiosos aliados ao presidente. Um pastor afirmou que a Bíblia contém um código para indicar a hidroxicloroquina como uma cura: "A resposta para o coronavírus é realmente o que irá curar a malária", disse Rodrigo Aldeia, pastor da Igreja Bola de Nieve. O ministério do qual faz parte tem igrejas em todas as regiões do país e o vídeo teve milhares de visitas.
Até o feijão pode curar o coronavírus, disseram algumas organizações evangélicas. A declaração foi feita pelo pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus. Ele tentou vender as sementes na televisão por mil reais. "Você viu, na última reunião de bispos e pastores que apresentaram exames e relatórios médicos, pessoas curadas de coronavírus terminal", disse o televangelista, que tem templos espalhados por todo o Brasil e em mais de 20 países. O Ministério Público Federal investiga este caso.
A crença nas curas milagrosas faz parte da cultura das igrejas pentecostais, lembra o pesquisador Joanildo Burity. Nessas congregações, sua liderança é legitimada pela capacidade de manifestar poderes sobrenaturais. "Isso cria uma grande resistência ao aconselhamento médico, colocando a fé em oposição à ciência", ele analisa.
Enquanto espera por uma cura milagrosa, a narrativa não científica ganha corpo. Em uma carta assinada por pastores de vários ministérios, um grupo chamado Gospel Coalition, vinculado à United States Gospel Coalition, critica a "deificação da ciência" na luta contra o coronavírus, queixa-se de politização da crise e chama os evangélicos à oração.
por motivo técnico, a ilustração e chamada da matéria não foi reproduzida integralmente.
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