Saiu o novo número da Revista Estudos Libertários
E d i t o r i a l
Rio de Janeiro, 10 de julho de 2020
Estamos vivendo em plena pandemia da COVID-19 e acabou de ser revelado que entre janeiro e abril de 2020 a polícia do Rio de Janeiro bateu o recorde de assassinatos dos últimos 22 anos. Foram em média 5 assassinatos por dia. Dos assassinados em 2019, 78% eram negros e pardos. Além disso, em Recife, em junho desse ano, uma patroa, branca e rica, largou o filho de 5 anos da empregada, negra, no elevador, de serviço, e o enviou para a cobertura. A criança na busca pela mãe, que estava passeando com o cachorro da patroa na rua a mando dela, caiu do 9 andar do prédio e morreu.
Outros jovens e adolescentes negros continuaram sendo mortos pelo Estado. Foram vários “Pedros”, “Ágathas” e “Claudias” que tiveram suas vidas ceifadas. Nos EUA, mais um negro foi assassinado por um policial. Esses casos evidenciam que as vidas de negros e indígenas não importam no mundo colonialista. Todos sabemos que negros e indígenas vivem nas piores condições em todos os países das Américas. As florestas continuam sendo devastadas junto com a vida de seus habitantes. Esses são os princípios do colonialismo que continuam com a colonialidade. Até quando?
Racismo e fascismo vigoram com toda força na nossa sociedade doente. Temos o orgulho de publicar textos em contrário aos princípios do colonialismo, da modernidade, do capitalismo, do fascismo. Temos o orgulho de aqui não ser publicado nenhum artigo que defende o capitalismo, seus teóricos, sua escravidão, seu extermínio de negros e indígenas. Lutar contra o racismo é um dever de todos! Lutar contra os fascismos é um dever de todos! Podem contar com essa revista para esses propósitos. Acreditamos que a organização popular, autônoma, horizontal, por meio da ação direta, conseguirá a autodeterminação dos povos e realizar políticas decoloniais, que devem ser pensadas sob a égide da autogestão.
Nesse número trazemos uma entrevista e dois artigos que versam diretamente sobre decolonialidade e antirracismo. Enquanto, outros três tratam de anarquismo e antifascismo. Como não são excludentes, de um modo geral, trazemos as perspectivas decoloniais e libertárias. No interior do primeiro campo, apresentamos uma entrevista de dois indígenas, estudantes da UFRJ, um é o Kandu, da etnia Puri, e o outro é o Lucas, da etnia Munduruku. Eles, melhor do que muitos livros eurocentrados e teóricos colonialistas, relatam suas experiências na Universidade ocidentalizada, autoritária, preconceituosa, racista. Trata-se de um relato muito rico e absolutamente de acordo com aquilo que acreditamos, isto é, na construção de um mundo decolonial. Na mesma linha, está o artigo de Paula Busko que resgata o feminismo agroecológico a partir de uma perspectiva decolonial em estudos em comunidades no Vale do Ribeira em São Paulo. O mais importante nesses relatos é o protagonismo dos povos, que não estão como objetos de análise, mas como responsáveis por sua própria História. Ainda na perspectiva antirracista, temos o artigo de Diego Leonardo Santana Silva que a partir dos conceitos de Governança racial e supremacismo branco apresenta um excelente estudo de caso da “Church of the Creator” identificando a sua atuação na defesa e justificativa do racismo e a sua naturalização. Trata-se de estudo histórico que ajude a entender os tentáculos do racismo nos EUA. Diego Silva mostra como ninguém a importância de se conhecer o inimigo para melhor combatê-lo.
No campo libertário de análise, estão os artigos de Peterson Roberto da Silva, Bruno Lima Rocha Beaklini e Augusto Martins Oliveira. Os autores de maneira brilhante colaboram sobremaneira para o debate sobre a posição anarquista diante da privatização, da meritocracia e da burocracia. Eles fazem um resgate histórico desse debate e coerentemente apontam para saídas autônomas que não fiquem presas à camisa de força marxista. Ao fazer tais estudos, os autores preenchem uma lacuna na literatura anarquista que muito discute o papel do Estado, mas pouco aborda sobre os temas que eles tocam. Para estudiosos e militantes anarquistas se torna uma leitura obrigatória.
Em outro artigo de fôlego, Fernando Bonadia, nos brinda com uma discussão imprescindível, perspicaz e inteligente sobre os maiores protestos de nossa História. Trata-se da revolta dos governados de 2013 no Brasil. Já existem muitas análises sobre 2013, não obstante, o autor, especialista na filosofia de Bento Espinosa, inova ao utilizar o conceito de indignação, do supracitado autor, para abordar as jornadas de junho. Ele foca suas análises nos acontecimentos da cidade de São Paulo. É leitura obrigatória para estudiosos do tema e para aqueles que querem entender os nossos dias, pois 2013 explica muita coisa.
Victor Mignone Emery Trindade, Andrea Costantini, Eva Koller, desde a Universidade de Estocolmo, nos brindam com uma análise absolutamente atual sobre o anarquismo na Espanha durante a pandemia de Covid-19 e as possibilidades de ocorrer mudanças profundas no país. Depois de amplo debate, com resgate histórico de momentos revolucionários saírem de temporadas de profunda crise, como o que estamos vivendo hoje, os autores concluem que, diferente da década de 1930, quando ocorreu a revolução espanhola, na qual foi demonstrada a força anarquista, hoje a possibilidade de revolução é mais remota. Essas conclusões, ocorrem, embora, os movimentos anarquistas tenham se reinventado e ganhado cada vez mais força no país. Uma das grandes contribuições do artigo é seu resgate teórico com autores clássicos do anarquismo como Bakunin até Chomsky e a passagem sobre a história do movimento anarquista na Espanha.
Guilherme Sam-Sin de Souza discute de maneira exemplar “anarquismo e violência.” Para tanto, o autor realiza o encontro entre a teoria anarquista clássica, Bakunin e Kropotkin, e uma vertente que cada vez mais tem ganho força no movimento social, o anarquismo negro de Kom’Boa Ervin. Como forma de incrementar a discussão, Souza também recorre a Georges Sorel e Walter Benjamin. Trata-se de estudo no campo da Filosofia que ocupa um lugar de reflexão absolutamente atual de maneira multifocal. Assim, consegue atingir seu objetivo de modo que o leitor verá uma visão contra-hegemônica da violência.
Cello Latini, enquanto um corpo trans, escrevendo desde a sua experiência pessoal, traz uma discussão original sobre a transgeneridade. Sua grande e singular contribuição para o tema constitui-se na utilização da lente teórica anarquista. Assim, se apropria dos conceitos de autogoverno e autodeterminação para reivindicar a tão sonha da liberdade dos corpos. Trata-se de artigo definitivamente ousado e revolucionário. Indubitavelmente, fará história para os estudos sobre a situação de pessoas trans. Certamente, será um marco para quem quiser pensar na situação dos corpos trans e na sua libertação.
Agradecemos a todes que colaboraram diretamente para que esse trabalho viesse a público. Os membros do conselho editorial, os pareceristas, os autores e mais particularmente, Guilherme Santana, Juan Magalhaes, Isabella Correia, Caroline Lima Dias, Cello Latini e Kaio Braúna foram fundamentais.
Por fim, mais uma vez esperamos que a revista venha cumprir o seu papel histórico: dar voz aos saberes sujeitados, aos estudos que sofrem do epistemicídio, às pesquisas que sofrem de diferentes racismos. Assim, temos orgulho de veicular aqui temas decoloniais, transgêneros, antirracistas, negros, indígenas e anarquistas. Desejamos uma boa leitura!
Saudações decoloniais e libertárias!
Andréa Nascimento – EditoraAssistente
Wallace de Moraes – Editor
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