Sarney, Collor, Itamar, FHC e as Prerogativas Militares (1985-1998)
Jorge Zaverucha
Universidade Federal de Pernambuco
zav@npd.ufpe.br
Prepared for delivery at the 1998 meeting of the Latin American Studies Association,
The Palmer Hilton House Hotel, Chicago, Illinois, September 24-26, 1998
1
Sarney, Collor, Itamar, FHC e as Prerrogativas Militares (1985-1998)
A principal essência de qualquer sistema de controle
civil democrático é a minimização do poder militar -
-Samuel Huntington.
While a country may have civilian control of the
military without democracy , it cannot have
democracy without civilian control --
Richard H. Kohn
Alfred Stepan sugeriu que a análise das relações civil-militares deveria ser,
principalmente, função de duas variáveis: o grau e abrangência das prerrogativas
militares; e o grau e nível de constestação militar às ordens civis. 1
Várias combinações
entre prerrogativas e contestação podem surgir e a que melhor se adaptaria à realidade
brasileira seria a existência de baixa contestação militar e altas prerrogativas militares (“x”
na matriz 2x 2 abaixo).
Prerrogativas
High Low
contestação
high y z
low x w
Combinações:
(high, High) = y = posição praticamente insustentável para líderes democráticos
(high, Low) = z = posição insustentável para líderes militares
(low, High) = x = “acomodação civil desigual” ou “golpe branco”
(low, Low) = w = controle civil democrático sobre os militares
Por definição, altas prerrogativas implica a inexistência de facto, assim como de
jure, de controle civil democrático sobre os militares. Tal situação Stepan define como
“acomodação civil desigual” e pode gerar instabilidade política, bastando que o governo
civil decida erradicar tais estruturas militares latentes. Caso não queira correr riscos e opte
pela permanência das altas prerrogativas, configura-se o que Stepan2
chama de “golpe
1 Rethinking Military Politics Princeton: Princeton University Press, 1988:99-102.
2
Ibid., p. 101.
2
branco”, redundando na existência do que ele chama de um sistema não-democrático.3
Nese sentido, a ausência de contestação militar não significa, necessariamente, que os
militares voltaram aos quartéis. Pelo contrário, pode ser uma evidência da sua significativa
participação no processo de tomada de decisões políticas, como espero que as
prerrogativas dos governos Sarney, Collor, Itamar e FHC venham evidenciar.
Mas o que vem a ser prerrogativa militar? Prerrogativas militares “referem-se
àquelas áreas onde, desafiados ou não, os militares, como instituição, assumem ter
adquirido o direito ou privilégio, formal ou informal, de governar tais áreas, de ter um
papel em áreas extramilitares dentro do aparato de estado, ou até mesmo de estruturar o
relacionamento entre estado e a sociedade política ou civil”.
4
Portanto, o que se espera de
um país democrático é a erradicação de tais prerrogativas, caso se queira estabelecer um
controle civil democrático sobre os militares, e, consequentemente, um regime
democrático. Até porque altas prerrogativas militares se correlacionam com alto grau de
autonomia castrense, no sentido dos militares serem capazes de impor, frequentemente,
seus interesses aos civis via canais legais ou quando ocorram resistências.
Decorridos quase quatro anos do mandato do presidente Fernando Henrique
Cardoso (FHC), proponho-me a analisar o grau e a abrangência das prerrogativas militares
existentes em seu governo e nos anteriores, a saber: José Sarney (JS), Fernando Collor de
Mello (FC), Itamar Franco (IF). O período contemplado vai de 1985 a setembro de 1998.
São, portanto, treze anos de relações civil-militares espaço suficiente para se tirar
conclusões. Na tabela abaixo, “S” significa sim, ou seja, existe a prerrogativa militar e “P”
representa a palavra prerrogativa.
_______________________________________________________________________
Tabela de Prerrogativas Militares JS FC IF FHC
________________________________________________________________________
P. 1- Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a
lei e a ordem S S S S
P. 2- Militares controlam principais agências de inteligência; S S S S
parca fiscalização parlamentar
P. 3- Militares da ativa ou da reserva participam do gabinete
governamental S S S S
P. 4- Inexistência do Ministério da Defesa S S S ?
P. 5- Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre
assuntos de defesa nacional S S S S
P. 6- Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais S S S S
3 Defino esta situação como “democracia tutelada” ou “tutela amistosa”. Brian Loveman e Patrice
McSherry, respectivamente, usam as expressões “democracia protegida” e “democracia guardiã”. Brian
Loveman. “’Protected Democracies’ and Military Guardianship: Political Transitions in Latin America,
1978-1993” in Journal of Interamerican Studies and World Affairs, vol. 36, no. 2, 1994:105-89; J. Patrice
McSherry. “Military Political Power and Guardian Structures in Latin America” in Journal of Third
World Studies, 1995:80-119; Jorge Zaverucha. Rumor de Sabres São Paulo: Ed. Ática, 1994:10.
4
Ibid. p. 93.
3
P. 7- Polícia Militar sob parcial controle das Forças Armadas S S S S
P. 8- Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas S S S S
P. 9- Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados
por tribunais comuns S S S S
P. 10- Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais
militares mesmo que cometam crimes comuns ou políticos S S S S
P. 11- Militar tem o direito de prender civil ou militar sem
mandado judicial e sem flagrante delito S S S S
P. 12- Autoridade extrajudicial e legislativa pode ser exercida S S S S
pelos militares
P. 13- Potencial para os militares se tornarem uma força
independente de execução durante intervenção interna S S S S
P. 14- Forças Armadas são as principais responsáveis pela
segurança do presidente e vice-presidente da República S S S S
P. 15- Presença militar em áreas de atividade econômica
civil (indústria espacial, navegação, aviação etc.) S S S S
P. 16- Forças Armadas podem vender propriedade militar sem
prestar contas totalmente ao Tesouro S S S S
P. 17- A política salarial do militar é similar a existente durante S S S S
o regime autoritário
Análise das Prerrogativas Militares
P. 1) Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem
O Artigo 142 da Constituição confere às Forças Armadas a atribuição de garantir
os poderes constitucionais (Executivo, Legislativo e Judiciário), a lei e a ordem. A noção
de ordem e desordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e
preconceitos sobre a conduta (in)desejada de determinados indivíduos. Além do mais, tal
artigo não especifica se a lei é constitucional ou ordinária, se a ordem é política, social ou
moral nem quem define quando é que a lei e a ordem foram violadas.5
Basta determinada
ordem do Executivo ser considerada ofensiva à lei e à ordem, para que os ministros
militares possam constitucionalmente não respeitá-la, mesmo sendo o Presidente da
República o comandante-em-chefe das Forças Armadas.
Há uma espada de Dâmocles fardada pairando sobre a cabeça dos poderes
constitucionais. Tais poderes estão sendo constitucionalmente lembrados de que eles
5
Para uma lista de artigos constitucionais de teor autoritário vide Jorge Zaverucha. “The 1988 Brazilian
Constitution and its Authoritarian Legacy: Formalizing Democracy While Gutting its Essence” in Journal
of Third World Studies, vol. XV, no.1, 1998:105-124.
4
podem ir até aonde as Forças Armadas acharem conveniente. Por conseguinte, em vez de
tais poderes garantirem o funcionamento das Forças Armadas, são elas, em última
instância, que garantem o funcionamento dos referidos poderes. Afinal, elas são as
guardiãs da pátria. Em caso de confronto entre os poderes constitucionais, os militares
arbitram a resolução do mesmo, na qualidade de poder moderador. Estabeleceu-se uma
Constituição e foi entregue, precisamente aos que são mais tentados a violá-la, a tarefa de
manter a sua supremacia.6
Uma contradição em termos. Não é à toa que as Constituições
Pinochetista e Sandinista também conferem às Forças Armadas o papel de guardiãs da lei
e da ordem.
Alguns exemplos atestam o papel de guardiães das Forças Armadas. Um dos mais
importantes é descrito pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães.
Ele explicou porque não disputou com José Sarney o direito de substituir o Presidente
Tancredo Neves, que faleceu antes de tomar posse: “Eu não fui ‘bonzinho’ coisa
nenhuma. Segui as instruções dos meus juristas. O meu ‘Pontes de Miranda’ estava lá
fardado e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney”.
7
O
“Pontes de Miranda” chamava-se general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército
no governo Sarney. O general Leônidas não ficou nesta cutucada. Por exemplo, o coronel
do Exército, Sebastião Ferreira Chaves, ex-secretário de Segurança Pública do
governador paulista Abreu Sodré nos anos 70, constatou que a Polícia Militar agia com
base na violência e a Polícia Civil perdera a capacidade de investigação. Diante disto,
tentou convencer o deputado Ulysses Guimarães, presidente do Congresso Nacional, a
mudar o sistema policial na Constituição de 1988, sugerindo, dentre outros, a extinção das
Polícias Militares. O deputado disse ao coronel “que já não podia mudar nada porque
tinha um compromisso com o general Leônidas”.
8
Alguns outros exemplos relevantes são:
1) Os constituintes de 1988 votaram, sob ameaça de uso de tanques, a manutenção
do presidencialismo e cinco anos de mandato para Sarney;
2) As Forças Armadas foram consultadas sobre o impedimento de Collor e deram
sua anuência à assunção de Itamar Franco. O novo presidente terminou nomeando nove
militares para o seu ministério, cifra recorde no presidencialismo civil brasileiro;
3) As Forças Armadas negociaram a saída do ministro da Justiça, Maurício Corrêa,
sob o risco de deposição do próprio presidente Itamar Franco. Corrêa teria,
presumidamente, tomado uns goles de álcool a mais e comportado-se com falta de decoro
no sambódromo do Rio de Janeiro;
4) Diante do grave quadro sócio-econômico, inclusive com uma inflação
galopante, Itamar Franco ventilou a possibilidade, tal como Alfonsín, de entregar o poder
sem esperar pelo término do mandato. Antes de tomar a decisão de antecipar a eleição
presidencial, Itamar reuniu-se com os ministros militares. Estes se opuseram a idéia e o
Presidente não mais falou no assunto.9
Garantido pelos militares não havia porque
sucumbir às pressões políticas adversária;
6 Eugenio Zaffaroni. Poder Judiciário São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995:37.
7 Ronaldo Costa Couto. Tancredo: Casos e Acasos Rio de Janeiro: Record, 1997:179. Pontes de Miranda,
era um famoso constitucionalista brasileiro.
8 Hélio Contreiras. Militares Confissões Rio de Janeiro: Mauad Editorial, 1998:55.
9
“Militares rejeitam antecipação” in Folha de S. Paulo, 2 de outubro de 1993.
5
5) Logo em seguida, ainda em outubro estourou o chamado “Escândalo do
Orçamento” envolvendo a Comissão Mista do Orçamento que teria alguns de seus
membros envolvidos em um esquema criado para desviar dotações orçamentárias em
proveito próprio. Foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, presidida pelo
deputado-coronel Jarbas Passarinho. Voltaram as pressões para que Itamar fechasse o
Congresso e “fujimorizasse” o país.10
No mês seguinte, o deputado Aloisio Mercadante (PT) e o senador José Bisol
(PSB) acharam ter descoberto uma conexão entre a Empresa Odebrecht e atuação de
certos deputados. Preocupados com a repercussão do fato sobre um Congresso já
fragilizado, os dois deputados procuraram Passarinho. Ele relatou a descoberta a Itamar,
e logo em seguida conversou com o ministro do Exército. O general Zenildo Lucena
comunicou querer a apuração de todos os casos de corrupção e que o Exército estaria
pronto para intervir se necessário fosse.11 O alerta de Passarinho fez com que os senadores
Pedro Simon e José Bisol conversassem com Itamar; o deputado José Genoíno
contactasse um antigo interlocutor, o Almirante Mário César Flores, diretor da Secretaria
de Assuntos Estratégicos, e que o deputado Mercadante procurasse o ministro do
Exército antes de dialogar com o Congresso. O deputado alegou que fora defender a
democracia ante o general, legitimando a participação política dos militares em assuntos
domésticos.12
Mercadante temeu um golpe de estado pudesse soterrar a tão sonhada chance de
Lula, o grande favorito nas pesquisas, chegar à presidência. Através de documentos,
mostrou ao general que não havia qualquer parlamentar do PT envolvido em negociatas.
O então governador Antonio Carlos Magalhães (ACM) também concordou com
Mercadante no papel das Forças Armadas de “protetoras” da democracia. Em solenidade
comemorativa ao Dia do Marinheiro, em dezembro de 1993, quando a crise se amainava,
ACM declarou: “Os militares são os guardiães (grifei) das instituições brasileiras, e… têm
de ser os guardiães (grifei) da Constituição que precisa ser modificada para atender os
anseios do país.”
13 Atualmente, ACM preside o Senado e é o parlamentar detentor da mais
alta comenda do Exército;
6) Durante as greves das Polícias Militares (junho/agosto de 1997), as Forças
Armadas garantiram o funcionamento dos poderes constitucionais. Mas, ao deixarem de
reprimir os militares grevistas, embora a Constituição proíba a greve de militares, fizeram
com que os governadores de estado, reféns de suas polícias, concedessem, via
intimidação, aumento salarial. Enquanto isto, os funcionários públicos civis, que também
reivindicavam aumento, continuaram com seus salários congelados;
10 Para uma visão distinta vide Guillermo O’Donnell. “Illusions and Conceptual Flaws” in Journal of
Democracy, vol. 7, no. 4, 1996:168. Ele diz que não houve rumor nem receio de intervenção militar
durante a crise da Comissão do Orçamento. No dia 5 de janeiro de 1994, o Ministro da Justiça, Maurício
Corrêa, durante programa televisivo revelou a existência de pressões cívico-militares para o fechamento
do Congresso. Foi inclusive convocado a depor no Congresso. José Carlos Ferreira, amigo particular de
Itamar e com boas conexões na caserna teria sido um dos articuladores do auto-golpe. Vide Gilberto
Dimenstein & Josias de Souza. A História do Real. São Paulo: Ed. Ática, 1996:111.
11 Luiz Costa Porto. “A casa do espanto” in Veja, 8 de dezembro de 1993.
12 Elio Gaspari. “As vivandeiras do PT” in Veja, 8 de dezembro de 1993.
13 “Brasileiro tem que votar e pagar impostos” in Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1993.
6
7) No dia 10 de dezembro de 1997, Fernando Henrique Cardoso participou de
um almoço de confraternização com 150 oficiais-generais, tendo como anfitrião o ministro
do Exército, general Zenildo Lucena. Este, em seu discurso, lembrou a FHC que os
militares há muito tempo vem dando sua cota de sacrifício. Lucena acrescentou que ao
assumir as restrições impostas ao setor público, as Forças Armadas se colocam como
“fator importante, senão decisivo (grifei), para o respaldo das políticas adotadas pelo
governo”.
14 FHC entendeu o recado do general, e respondeu dizendo que havia
determinado ao ministro da Fazenda pressa nos estudos para a concessão integral aos
militares da Gratificação de Condições Especiais de Trabalho (GCET), além de ter
prometido recursos para o reaparelhamento das três forças.
P. 2) Militares controlam as principais agências de inteligência; parca fiscalização
parlamentar
Não há no Brasil linhas que demarquem as atividades de inteligência doméstica e
externa e as atividades de inteligência civil e militar. Quem fazia a inteligência externa
durante o regime militar era a 2a. Seção do Estado-Maior do Exército que, por sinal, tinha
também uma seção de inteligência doméstica. Com a radicalização ideológica, em 1967,
foi criado o Centro de Informação do Exército (CIE), para combater a luta armada.15 A
guerrilha foi destruída mas o CIE continua fazendo espionagem política.
A presença do CIE na coleta de informações fora do âmbito da respectiva força, é
confirmada pelo artigo 5o. da Portaria No. 323 de 31 de março de 1981 que estabelece a
competência do CIE nos seguintes termos: “orientar, coordenar e desenvolver atividades
de informações internas e de segurança interna, bem como de contra-informações do
sistema de informações do exército. Assessorar o ministro, nos assuntos de informações
internas e nos de contra-informações”. O chefe do CIE, general Cláudio Figueiredo,
explicou a diferença entre a antiga e a nova CIE: “A diferença é que antes nós
participávamos de operações e hoje trabalhamos apenas para assessorar o processo
decisório”.
16 Para melhor exercer este assessoramento, o Exército criou, em julho de
1994, a Escola de Inteligência Militar (EsIMEx). Ativada no ano seguinte, a Escola
funciona junto ao CIE.
Isto sem falar nos serviços de inteligência das Polícias Militares (P-2) que
continuam, tal qual durante o regime militar, a fazer parte do sistema de informações do
Exército, conforme dispuserem os Comandos Militares de Área, nas respectivas áreas de
jurisdição (Decreto No. 88.777, de 30 de setembro de 1983). Isto significa, que as PMs
são obrigadas, por lei, a passar as informações coletadas através do chamado “canal
técnico” ao ministro do Exército. Ou seja, o ministro possui informações sobre o próprio
governador de Estado. E mais, não há qualquer controle das Assembléias Legislativas
Estaduais sobre as P-2. Há, além do mais, policiais militares trabalhando em quartéis do
Exército à disposição do mencionado sistema de informações.
14 “Militares também têm o seu dia” in Correio Braziliense, 11 de dezembro de 1997.
15 Maria Celina D’Araújo, Glaucio Ary Dillon & Celso Castro (eds.). Anos de Chumbo Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994:56.
16 “Fax Brasília” in IstoÉ, 6 de agosto de 1997.
7
Um notório caso foi a revelação, em setembro de 1996, de informes da P-2 do
Distrito Federal (DF) que espionava sindicalistas, ativistas do MST e até membros do
Partido dos Trabalhadores, o partido político do governador do Distrito Federal,
Cristóvam Buarque. Esses relatórios eram entregues dentre outros, ao CIE, às áreas de
inteligência do Comando Militar do Planalto e do Comando Naval de Brasília e à
Secretaria de Inteligência da Aeronáutica.17
No final de abril de 1996, a espionagem militar se fez presente durante as
manifestações populares de rua, no Rio de Janeiro, contra a privatização da Companhia
Vale do Rio Doce. Um agente disfarçado de cinegrafista e militante filmou manifestantes.
O policial militar infiltrado estava de calça jeans e camisa estampada com tons amarelos.
Como os partidos de esquerda se posicionaram contra a privatização, o agente colou na
blusa os dizeres: “Não vamos deixar o ouro na mão do imperialismo. Contra a entrega da
Vale!”.
18 O detalhe é que a realização da manifestação pública fora aprovada pelas
autoridades competentes.
Mais recentemente, o governador do Ceará, Tasso Jereissati, manteve, durante o
mês de julho de 1997, agentes do serviço de inteligência do Exército e da Polícia Militar
infiltrados na Associação de Cabos e Soldados e no Sindicato de Policiais Civis.19 No
sertão pernambucano, agentes do serviço de inteligência do Exército foram infiltrados
nas quadrilhas de assaltantes e narcotraficantes que aterrorizam os habitantes da região.20
A extinção do Serviço Nacional de Informações e a criação da Secretaria de
Assuntos Estratégicos (SAE) não alterou o quadro de predomínio militar nas atividades de
inteligência no país. Tanto Collor quanto Itamar, sem falar no Congresso, demonstraram
falta de interesse na criação de mecanismos institucionais que permitam um melhor
controle parlamentar sobre as atividades da inteligência no país. FHC achando pouco a
existência dos serviços de inteligência militares resolveu, em abril de 1996, remilitarizar a
inteligência civil. O Presidente, inicialmente, retirou do controle da SAE a Subsecretaria
de Inteligência (SSI) passando-a para a direção de um general da reserva que ficava sob a
supervisão do Secretário-Geral da Presidência da República. Em seguida, entregou a
direção do SSI a um oficial superior da ativa, sem consultar o Congresso.21 Trata-se do
General Alberto Cardoso, chefe da Casa Militar da Presidência da República, que reportase diretamente ao Presidente da República.22 Salvo engano, caso único no mundo
democrático.
A SSI ocupa uma área de 16 hectares em Brasília, afora suas ramificações
estaduais, e o General Cardoso chefia uma equipe de 900 agentes e administra uma verba
de R$ 24 milhões de reais.23 Detalhe: a SSI não está submetida a controle do Congresso.
Além de espionar as atividades do Movimento Sem-Terra,24 as insatisfações dentro das
Polícias Militares, o general Cardoso investiga a Polícia Federal (PF) e fez pressão para
17 Luis Alberto Weber. “ Ninho de Arapongas” in Correio Braziliense, 21 de setembro de 1996.
18 “PM infiltrado filma manifestação no Rio” in Folha de S. Paulo, 30 de abril de 1997.
19 Manoel Fernandes. “Enfim, derrotados” in Veja, 6 de agosto de 1997.
20 Inácio França. “Serviço de Inteligência no Sertão” in Diário de Pernambuco, 1 de novembro de 1997.
21 O general-presidente Castelo Branco encaminhou, em 1964, ao Congresso Nacional o Projeto de Lei
de criação do SNI dispondo sobre a necessidade de submeter o nome de seu Chefe ao Senado Federal.
22 “Civilians lose the intelligence battle” in Brazil Report, 2 de maio de 1996.
23 “O SNI de FHC” in Veja, 18 de fevereiro de 1998.
24 “General acompanha saques” in Diário de Pernambuco, 18 de junho de 1998.
8
tirar seu diretor-geral. Um dos motivos seria o fato do delegado Vicente Chelloti ter
cortado as comunicações entre o serviço de inteligência da PF e os das Forças Armadas.25
Por outro lado, a Medida Provisória No. 813, de 1 de janeiro de 1995, anunciou
que seria criada a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sob a forma de autarquia civil.
Como o Congresso Nacional sinalizou não estar disposto a dar um cheque em branco para
o Executivo criar a Abin ao seu alvitre, FHC , através da Medida Provisória No. 1.090, de
25 de agosto de 1995, anunciou que “no prazo de 180 dias contados da publicação desta
Medida Provisória, o Poder Executivo encaminhará ao Congresso Nacional projeto de
Lei dispondo sobre a criação, estrutura, competências e atribuições da Agência Brasileira
de Inteligência.”
Ao depor no Congresso, no dia 21 de maio de 1996, o general Cardoso afirmou
“que os ministérios militares produzem a inteligência estritamente militar, voltada para
suas missões”. Contradizendo o general Cardoso, o cabo do Exército, José Alves Firmino,
revelou, em julho de 1997, que usou crachá falso de jornalista para fazer espionagem
política no Congresso Nacional, para o Exécito, além, dentre outros, de ter
“acompanhado” o 10.o Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), realizado
em agosto de 1995, em Vitória do Espírito Santo. Firmino apresentou material mostrando
a espionagem militar atuando, em 1993, no 8o. Encontro Nacional do PT; em 1993, no
XLIII Congresso Anual da União Nacional dos Estudantes (UNE); em 1995, durante
manifestação na qual a UNE, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e o
Sindicato dos Petroleiros (SINDIPETRO) protestaram, em frente ao Congresso Nacional,
contra a quebra do monopólio do petróleo etc.
Dentre a documentação trazida a público pelo cabo Firmino está a Portaria No.
081, de 7 de novembro de 1995, que aprovou diretriz para a criação das Companhias de
Inteligência (Cia Intlg). A nova agência de inteligência nasceu e se mantém sem o controle
do Congresso de suas atividades. Até o momento, nenhuma Comissão do Congresso
decidiu convocar o ministro do Exército para vir prestar esclarecimentos sobre as
violações cometidas pelo cabo Firmino e seu colegas militares à Constituição Federal. De
acordo com a documentação revelada, os militares assim agiram por terem recebido
ordens burocráticas superiores. A sociedade precisa saber, inclusive se os atos de
espionagem política foram feitos à revelia dos Presidentes Itamar Franco e Fernando
Henrique Cardoso ou se tais atos tiveram a chancela presidencial. A documentação supra
citada encontra-se de posse da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e já foi
entregue ao ministro da Justiça.26
Finalmente, no dia 19 de setembro de 1996, o Projeto de Lei No. 3.651 foi
enviado pelo Executivo à Câmara de Deputados. O mesmo institui o Sistema Brasileiro de
Inteligência (SBI) e cria a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão de
assessoramento direto ao Presidente da República e órgão central do SBI. O projeto tem a
virtude de propor que a fiscalização externa da Abin seja feita por Comissão Mista do
Congresso. Contudo, inquieta saber que ficou assegurada a presença militar no referido
Projeto de Lei. É que a execução da Política Nacional de Inteligência, fixada pelo
Presidente da República, será levada a efeito pela Abin, sob a supervisão da Câmara de
25 Policarpo Jr. “Exército quer a PF” in Veja, 1 de julho de 1998.
26 Agradeço ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputado Pedro Wilson, o acesso aos
referidos documentos.
9
Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo. Acontece que dos nove
integrantes desta Câmara, nada menos que cinco são militares: Ministros de Estado da
Marinha, Exército, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças Armadas e Chefe da Casa
Militar da Presidência da República! Afora isto, o referido projeto não separa o serviço de
informação civil dos organismos militares. O Congresso solicitou modificações e aguardase nova proposta do Executivo.
P. 3) Militares da ativa ou da reserva participam do gabinete governamental
Durante o governo Sarney, seis militares tiveram asssento no gabinete
governamental: ministros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças
Armdas (Emfa) e Casa Militar. Collor retirou o status de ministro do chefe da Casa Militar
e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, permitindo, todavia, que os mesmos
tivessem assento em seu gabinete. Como havia extinto o SNI, cinco militares passaram a
fazer parte do gabinete governamental. Itamar manteve os cinco militares e adicionou mais
quatro militares em ministérios de natureza civil. Tal como no governo Collor, cinco
militares têm voz e voto no gabinete de FHC. Nunca um ministro do Exército, Marinha ou
Aeronáutica foi exonerado por qualquer dos quatro presidentes civis.27 O atual Presidente,
extinguiu o cargo de ministro-chefe da Casa Militar, criando o cargo de Natureza Especial
de chefe da Casa Militar com prerrogativas, garantias e vantagens e direitos equivalentes
ao de ministro de estado.
Os poderes conferidos ao general Alberto Cardoso vão muito além do que
necessita um chefe de Casa Militar. O referido general dirige a Subsecretaria de
Inteligência (SSI), órgão civil; é o encarregado do Governo, junto ao Congresso, pela
elaboração do texto que servirá para a criação do Sistema Brasileiro de Inteligência (SBI);
negociou em nome do Governo, no lugar do Ministro da Justiça, o fim da greve das
Polícias Civis e Militares em julho de 1997; coordenou os trabalhos da elaboração de uma
nova Política de Defesa Nacional; faz parte do grupo que estuda a criação do Ministério
da Defesa; coordenou os estudos sobre a criação de uma Secretaria Nacional Antidrogas e
da Coordenação Conjunta do Sul do Pará;28 e dirigiu, por curto espaço de tempo, a
recém-criada Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) que está subordinada a própria
Casa Militar.29 O general Cardoso, portanto, está envolvido tanto em atividades de
27 Apenas o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, brigadeiro Camarinha, foi exonerado pelo
presidente Sarney com o aval dos três ministros militares.
28 Dentre os órgão que fazem parte desta Coordenação estão a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal
e a Secretaria de Segurança Pública do Pará e o Exército. As ações serão coordenadas pelo general Edson
Sá Rocha, comandante da 23a. Brigada de Infantaria da Selva, com poderes para interferir até na
elaboração da reforma agrária Cf. “Governo tem plano para o Sul do Pará” in Jornal do Brasil, 4 de maio
de 1998 e “Éxército agora é quem manda no Sul do Pará” in Jornal do Commercio, 7 de maio de 1998.
29 Monica Gugliano. “FH assina decreto que cria a Secretaria Nacional Antidrogas” in O Globo, 20 de
junho de 1998. Em julho de 1998, FHC anunciou um civil para dirigir a Senad que ficará, todavia,
subordinada ao general Alberto Cardoso. Também foi anunciado a extinção do Conselho Federal de
Entorpecentes, de composição exclusivamente civil. Em seu lugar surgirá o Conselho Nacional
Antidrogas da qual fará parte o Estado Maior das Forças Armadas (EMFA).
10
inteligência civil, de defesa externa, de segurança pública e de combate ao tráfico de
drogas.
P. 4) Inexistência do Ministério da Defesa
Nenhum dos quatro últimos presidentes civis conseguiram criar o Ministério da
Defesa. FHC vem tentando desde o início de seu governo, tendo incumbido o ministrochefe do Emfa, general Benedito Onofre Leonel, desta missão. Chegou a mudar uma
regulamentação que impedia um militar ao passar para a reserva ficar à frente do Emfa,
com o intuito de fazer com que o general Leonel continuasse no cargo e na sua missão.
Uma proposta lançada, em 1995, pelos militares foi a da criação do Ministério da Defesa
(MD) sem que isto implicasse o fim dos ministérios militares. O Presidente não aceitou, e
as negociações continuaram.
Bastou que os EUA anunciassem que a Argentina será seu sócio militar extra-Otan
(Organização do Tratado do Atlântico Norte), imediatamente seguida da declaração, no
dia 17 de agosto de 1997, do presidente Carlos Menem de que o lugar dos países latinoamericanos no Conselho de Segurança da ONU deveria ser rotativo, e não fixo para o
Brasil, como desejava a diplomacia verde-amarela, para que o tema do Ministério da
Defesa voltasse às páginas dos jornais.
A ocasião escolhida por FHC foi a reunião do Grupo do Rio em Assunção. No dia
24 de agosto de 1997, o presidente brasileiro anunciou a criação do Ministério da Defesa.
Foi uma clara manobra política para favorecer a candidatura do Brasil a um acento no
Conselho de Segurança da ONU, já que seria difícil explicar ao mundo como um país com
vaga neste Conselho aspira decidir sobre questões de segurança internacional quando o
presidente da República não consegue fazer que seus subordinados cumpram sua
determinação de criar o referido ministério.
O general Benedito Leonel, anunciou, em maio de 1998, perante a Comissão de
Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara de Deputados, a disposição do governo
federal de criar o Ministério da Defesa até dezembro de 1998. Contudo, não serão
extintos os ministérios do Exército, Marinha e Aeronáutica. Caso prevaleça tal anúncio,
estaremos diante de um arranjo institucional inédito no mundo: Ministério da Defesa com
militares com status de ministro de Estado! “A estrutura organizacional nós já temos, mas
é preciso prosseguir com cuidado para evitar traumas”, afirmou Leonel salientando que a
unificação das três forças só acontecerá no final da implantação do novo ministério, que
até o momento, não tem prazo para ser concluído.30
FHC continua tentando acabar com a figura de ministros militares também por que
tem um projeto de implantação do Parlamentarismo. Ficaria muito estranho, que numa
queda de gabinete, todos os ministros caíssem com exceção dos militares. Por isso
mesmo, espera-se que sejam criadas secretarias para cada Força não se sabendo se tais
chefes militares terão ou não status de ministro.31 Mesmo que consiga criar um Ministério
de Defesa “puro”, é razoável se esperar que os “secretários” militares continuarão a ser,
30 “FHC criará até dezembro o Ministério da Defesa”, Jornal do Commercio, 28 de maio de 1998.
31 Caso tais chefes mantenham o status de ministro como já ocorre com o general-ministro da Casa
Militar, a Prerrogativa no. 3 fica inalterada.
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de fato, o elo político entre o Presidente e as três Forças. Em outras palavras, o real fator
de poder. O novo ministro da Defesa terá, provavelmente, a limitada atribuição de
centralizar o orçamento das Forças Armadas, comprar armas e definir a política de defesa
do Brasil.
Frise-se que mesmo tendo prometido às Forças Armadas investir, até 2015, R$ 4
bilhões em reaparelhamento e modernização de equipamentos, FHC ainda não foi capaz
de anunciar o fim dos ministros militares.32 A notícia veio à luz no momento em que as
contas públicas tiveram o pior resultado desde 1991 e o governo alegava não ter verbas
para enfrentar uma das piores secas da história; para aumentar o salário do funcionalismo
público congelado há quase quatro anos; para evitar o sucateamento das universidades
federais que ficaram com suas atividades paralisadas por mais de dois meses; e para
impedir o reinício da epidemia de dengue.
Os militares queixam-se, com razão, da falta de interlocutores no Congresso. Em
parte, isto se deve ao fato da maioria dos partidos políticos não contemplar em seus
programas, as relações civil-militares. Contudo, o elevado grau de autonomia política e
administrativa dos ministérios militares, dificulta a interação deles com o Congresso. Com
um Ministério da Defesa enfraquecido este tipo de problema dificilmente será atenuado.
Há um outro motivo para explicar a oposição castrense ao fim dos ministérios militares. É
que o artigo 91 da Constituição estipula a presença de ministros militares como membros
natos do Conselho de Defesa Nacional, além de fazerem parte da Câmara de Relações
Exteriores e Defesa Nacional (Creden) subordinada à Presidência da República. Como
estamos em setembro de 1998, e não sabe-se a data oficial da sua criação, o que ocorrerá
com os ministros militares, nem quem será o novo ministro (civil ou militar), optei por
colocar na tabela de prerrogativas “?”.
P. 5) Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre assuntos de defesa nacional
Tanto a Câmara dos Deputados como o Senado possuem Comissões de Defesa
Nacional que, todavia, são pouco disputadas pelos parlamentares. Visando garantir o
quórum, a Comissão de Defesa Nacional permite que seus membros façam parte de
outras comissões, uma vez que aquela não rende votos aos parlamentares. Uma grande
parte de seu componentes não entende do assunto e exerce muito mais um papel formal
do que efetivo. Segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres, O
Brasil recuperou, em 1995, a posição de maior importador de produtos militares da
América do Sul.33 De acordo com o mesmo instituto, os gastos militares no governo FHC,
em milhões de dólares a preços de 1995, vem crescendo a olhos vistos. Passou de 8.741
em 1995 para 10.377 em 1996 e 11.247 em 1997.34 Isto não tem gerado maiores debates
no Congresso, embora, a última guerra brasileira tenha sido lutada contra o Paraguai no
século passado.
32 Leandro Fortes. “Reaparelhamento das Forças Armadas custará 4 bi” in O Globo, 5 de maio de 1998.
33 Sandra Brasil. “Tratamento vip” in Veja, 4 de fevereiro de 1998.
34 Imogen Mark & Jonathan Wheatley. “Weapons makers lured as national pride pushes South America
to rearm” in Financial Times, 25 de junho de 1998.
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A omissão do Congresso não se limita apenas a compra de armas. Por exemplo, no
dia 26 de novembro de 1996, o presidente em exercício, Marco Maciel, autorizou o
Exército a reativar um antigo projeto, que fora engavetado por Collor devido a restrições
orçamentárias: a construção de um reator de gás-grafite. O ato de Maciel, atropelou três
artigos da Constituição, a saber: artigos 21, 49 e 225. O primeiro diz que “toda atividade
nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante
aprovação do Congresso Nacional”. O segundo diz ser da competência exclusiva do
Congresso Nacional “aprovar as iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades
nucleares”. E o terceiro estipula que “as usinas que operem com reator nuclear deverão ter
sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas”. Flagrante
violação da Constituição não mereceu uma sessão sequer das referidas comissões para
discutir o tema.
No dia 8 de abril de 1997, o Conselho de Defesa Nacional frustrou a pretensão do
ministro da Aeronáutica de comprar, sem licitação, 14 aviões F-5 usados além de radares
para 41 aeronaves da FAB. FHC por meio do Decreto No. 2.295, de 4 de agosto de 1997,
resolveu o impasse. Autorizou não só a Aeronáutica, mas o Exército e a Marinha a
comprar equipamentos e contratar obras e serviços técnicos especializados na área de
inteligência sem licitação, desde que justifiquem que as aquisições “colocam em risco
objetivos de segurança nacional”. O Presidente, portanto, ignorou o Congresso, e as
Comissões de Defesa Nacional.
Logo após o ataque especulativo contra o Real, em outubro de 1997, provocada
pela crise asiática, o governo lançou 51 medidas com vistas a diminuir os gastos do
governo e aumentar a arrecadação. O pacote de medidas propôs cortes em bolsas de
estudo, em verbas culturais e nas aposentadorias de deficiente físicos e idosos. Propôs
aumento do preço da gasolina, da contribuição para o Imposto de Renda, e dos lucros em
aplicações financeiras etc. No entanto, no dia 11 de novembro de 1997, o Senado aprovou
um empréstimo, junto ao Brazilian American Merchant Bank, de R$ 573 milhões para a
compra de armas e equipamentos para o Exército. Um empréstimo desta monta foi
aprovado apressadamente sem, mais uma vez, ter sido contemplado pelas Comissões de
Defesa Nacional e no, caso, da Comissão de Fiscalização.35 Outros países afetados pela
crise econômica, como a Malásia, Tailândia e a Coréia do Sul (em estado de guerra com a
Coréia do Norte) cancelaram ou adiaram as compras de equipamento militar.36
No final de 1997, veio à luz a notícia de que a Marinha compraria 23 caças
Skyhawk A-4, projetados em 1952, para equipar o porta-aviões Minas Gerais, comprado
em 1956, e que anda a apenas 25 nós de velocidade. O Decreto No. 55.627, de 26 de
janeiro de 1965, assinado pelo Presidente-General Castello Branco, determinou que
somente a Aeronáutica poderia operar aviões com asas fixas. A Marinha alega que a Lei
Complementar No. 69 de 1991, a permitir adquirir tais aviões.
Discussões à parte, ressalto: a) que a verba de R$ 70 milhões foi retirada da
Marinha de seu próprio orçamento sem consultar o Congresso; b) durante o governo
Collor os ministros da Marinha e Aeronáutica haviam decidido que a Marinha poderia
35 “ Senado aprova empréstimo para aparelhar Exército” in O Globo, 12 de novembro de 1997.
36 “Notas internacionais” in Veja, 28 janeiro de 1998. A Tailândia adiou a compra de oito caças
americanos FA-18 por U$ 400 milhões; a Coréia do Sul fez o mesmo com quatro aviões-radares Awacs e
a Malásia cancelou compras de U$ 600 milhões, incluindo helicópteros e carros de combate.
13
adquirir aviões, mas os mesmos seriam operados e mantidos pela Força Aérea Brasileira.,
embora sob o comando e controle direto da Marinha. Seriam aviões de esclarecimento de
longo alcance baseados não em porta-aviões, e sim em bases aéreas ao longo do litoral.37
A Marinha, portanto, mudou sua orientação e comunicou o fato consumado ao Presidente
da República. Tenta repetir o que fez no início da década de 60, quando procurou furar o
bloqueio da Aeronáutica ao comprar pequenos aviões suíços.38 Certa ou errada a nova
doutrina, ela foi tomada à revelia do Congresso. O presidente da Comissão de Fiscalização
e Controle da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia disse que iria convocar o ministro da
Marinha para explicar a compra. Em vão.
Em julho de 1998, o Governo iniciou a militarização do combate às drogas que
passará a ser comandado pelo Chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso. A recémcriada Secretaria Nacional Antidrogas, dirigida por um civil, ficou subordinada ao general.
Afora isto, extinguiu-se o Conselho Federal de Entorpecente, de composição
exclusivamente civil, e surgiu o Conselho Nacional Antidrogas, do qual faz parte o
Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa). Os serviços de inteligência das Forças
Armadas passam a participar do sistema e tropas militares serão usadas em ações especiais
contra narcotraficantes como a destruição de laboratórios clandestinos de refino de
cocaína na Amazônia Legal.39
Até então, os militares só estavam autorizados a participar destas atividades dando
apoio logístico à Polícia Federal. Esta mudança de orientação não foi discutida pelo
Congresso. Segundo o general Cardoso, a mudança foi efetivada via orientação secreta
feita por FHC, em fevereiro de 1996.40 Com base no artigo 144 da Constituição, o
Presidente interpretou que não cabia a Polícia Federal a exclusividade na prevenção e
repressão do tráfico. O que era secreto em fevereiro de 1996 tornou público em julho de
1998.
P. 6) Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais
Segundo a Constituição (Art. 84-III) cabe ao Presidente da República promover os
oficiais-generais. Na prática, ocorre o seguinte: Os alto-comandos militares enviam, ao
Presidente, a lista com os nomes e a ordem dos candidatos a promoção, e ele a chancela.
É uma prática nos países do Primeiro Mundo e também na Argentina, Bolívia, Colômbia,
Paraguai, Uruguai e Venezuela que tais promoções tenham de passar antes pelo crivo do
Senado, como ocorre com, a nomeação do diretor-presidente do Banco Central e dos
embaixadores.
A Constituição Chilena de 1980 retirou do Senado o direito de opinar sobre
promoções de oficiais-generais, fortalecendo o poder do então ditador Augusto
37 Antonio Carlos Pereira. “A autonomia da Marinha” in O Estado de S. Paulo, 13 de janeiro de 1998.
38 Vanda Celia. “Brasília- DF” in Correio Braziliense, 31 de janeiro de 1998; Janio de Freitas. “Mais
naufrágios” in Folha de S. Paulo, 28 de janeiro de 1998.
39 Leandro Fortes. “Governo começa a militarizar combate às drogas” in O Globo, 18 de julho de 1998.
40 Ibidem.
14
Pinochet.41 Em governos democráticos, a participação do Senado constitui uma maneira
de o Congresso controlar o Executivo e de este dividir responsabilidades com o
Legislativo, principalmente pelo fato do Presidente ser constitucionalmente o comandante
supremo das Forças Armadas. Caso o Presidente e o Senado discordem de algum nome
indicado na lista de promoções, o Senado pode evitar o desgaste presidencial ao vetar o
indicado. Evitar-se-ia um possível confronto institucional entre o Presidente e seus
comandados, dentre eles os ministros militares, pois o Senado funcionou como uma
espécie de amortizador de tensões políticas.
Complicações políticas poderão surgir no dia em que um presidente quiser vetar
algum nome proposto pelas Forças Armadas para promoção. Basta lembrarmos que o
Alto-Comando sugeriu, ao então presidente Collor, a promoção do General José Luis
Lopes, que comandou a invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), m Volta
Redonda, redundando na morte de três trabalhadores. Collor aceitou a indicação.42 O
candidato Luiz Inácio Lula da Silva havia prometido, caso vencesse a eleição, abrir um
inquérito para investigar as circunstâncias das mortes durante a invasão da CSN. Caso o
Alto-Comando tivesse sugerido tal promoção a Lula, estaria aberto um espaço para o
surgimento de uma crise institucional.
No dia 31 de março de 1997, FHC seguiu decisão de Collor e promoveu José Luis
Lopes a general-de-exército. Lopes passou a dirigir o Comando Militar do Leste, um dos
mais importantes do país, que tem a cidade de Volta Redonda em seu raio de atuação. No
discurso de homenagem aos novos oficiais promovidos, FHC disse: “Nesse período [como
Presidente], eu tenho constatado o acerto das indicações feitas pelos ministros, nas listas
para minha escolha, as quais eu tenho avalizado integralmente”.
43 Na verdade, é desde
1985, que há um perfeito acerto nas indicações feitas pelos ministros militares. Nunca
Sarney, Collor, Itamar e FHC deixaram de promover algum nome que estivesse na lista
apresentada pelos militares.
No dia 31 de março de1994, exatos 30 anos depois do início do regime militar,
Itamar Franco promoveu o coronel-médico Ricardo Agnese Fayad a general-de-brigada.
O Dr. Fayad vinha respondendo, desde 1988, a processo ético no Conselho Regional de
Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) acusado de ter dado apoio técnico às sessões de
tortura praticadas entre 1969 e 1974 no Quartel General da Rua Barão de Mesquita.
Fayad foi um dos poucos médicos do Exército a ser premiado com a Medalha do
Pacificador além de ter recebido a medalha de Ordem do Mérito Militar.44
No dia 4 de abril de 1994, Fayad teve seu registro profissional cassado pelo
Cremerj, em decisão unânime de seus 21 membros.45 No ano seguinte, o Conselho Federal
de Medicina (CFM) confirmou a cassação do registro de Fayad. O militar conseguiu
suspender a decisão na Justiça, baseando-se na Lei No. 6.681, de 1979, assinada pelo
presidente-general João Figueiredo.46 A Lei impede ações disciplinares dos conselhos
41 Brian Loveman. “Misión Cumplida? Civil Militar Relations and the Chilean Political Transition” in
Journal of Interamerican Studies ans World Affairs, vol. 33, no. 3, 199:66.
42 Jorge Zaverucha. “A Promoção” in O Estado de S. Paulo, 20 de maio de 1992.
43 Noticiário do Exército, 16 de maio de 1997.
44 “CRM cassa registro de general-médico,” Jornal do Brasil, 6 de maio de 1994.
45 “Conselho Regional cassa general-médico,” Folha de S. Paulo, 6 de maio de 1994.
46 A original é a Lei No. 5.526, de 5 de novembro de 1968, criada no auge da repressão política.
15
regionais de medicina contra médicos militares no exercício de suas atividades técnicoprofissionais decorrentes de sua condição militar. Ou seja, médico militar só está sujeito a
ação disciplinar da diretoria de saúde de cada força. O CFM recorreu, teve seu primeiro
recurso negado, e voltou a recorrer.
No início de 1997, o general foi transferido do Rio Grande do Sul e assumiu a 1a.
subdiretoria de Saúde do Exército, seu primeiro cargo em Brasília. Com a fusão da 1a. e
2a. subdiretorias, no dia 17 de fevereiro de 1998, FHC voltou a prestigiá-lo ao nomeá-lo
para o cargo de Subdiretor de Saúde, o segundo cargo mais importante na área de Saúde
do Exército.47 Um dos quatro princípios da política de Direitos Humanos do governo FHC
é a ausência de pessoas ligadas à prática de torturas em sua equipe. Ante a reação de
organizações de direitos humanos, do Cremerj e CFM, o Exército imediatamente divulgou
nota.48 Nela, lê-se que o Exército “orgulha-se em contar com o Gen Fayad em suas
fileiras. Esse sentimento é respaldado por uma destacada folha de serviços prestados pelo
Gen Fayad, como médico e como militar.”
O porta-voz do Presidência da República, disse que ele ao assinar a nomeação de
Fayad não conhecia seu antepassado além de que o general estava exercendo cargo
administrativo, e não de médico. Os militares descartaram o desconhecimento, lembrando
que FHC já o promovera administrativamente em 1997.49 FHC decidiu somente reavaliar a
nomeação depois da decisão da Justiça sobre o recurso. Só que não há prazo para a
Justiça julgar tal recurso e o mesmo nada tem a ver com as denúncias contra o general,
mas com a aplicação da Lei No. 6.681.
Cada vez mais pressionado, FHC conseguiu que o general pedisse uma licença de
seis meses sendo, por conseguinte, exonerado do cargo. O Presidente resolveu a crise mas
sua autoridade foi arranhada: foi incapaz de mandar para a reserva um de seus
subordinados. Para parecer que não houve punição, FHC negociou com o Alto Comando
do Exército e com seu ministro a saída do cargo de Fayad através de uma licença de seis
meses. E mais, nem ele nem o Congresso trataram de abolir a Lei No. 6.681, ou seja,
novos Fayads poderão surgir.
O preço pago por FHC para consegurir a licença de Fayad não demorou a surgir.
O Presidente indicou para ministro do STM, o ex-deputado e tenente-coronel reformado
João Baptista Fagundes, nada menos, que o advogado de Fayad no processo movido
contra o Conselho Federal de Medicina.50 Até então a praxe das nomeações pertencia a
OAB que, estranhamente, silenciou.
O STM em reunião secreta, no dia 6 de maio de 1998, decidiu por ampla maioria
que não iria empossá-lo. Momentos antes, a Comissão de Constituição e Justiça do
Senado aprovou a indicação presidencial, faltando o plenário pronunciar-se. Irritado, o
ministro do Exército mandou que 30 militares que trabalhavam para o STM, como
47 Solano Nascimento. “Governo promove militar da repressão” in Correio Braziliense, 7 de março de
1998.
48 Solano Nascimento. “Cresce a reação contra médico da repressão” in Correio Braziliense, 11 de março
de 1998.
49 Rui Nogueira. “FHC mantém general acusado de tortura” in Folha de S. Paulo, 12 de março de 1998.
50 Fagundes chegou a defender os militares na Câmara de Deputados por ocasião dos debates sobre a
bomba que explodiu no Riocentro, alegando que o atentado fora um “complô comunista”. Cf. Maurício
Dias. “Informe JB” in Jornal do Brasil, 21 de abril de 1998 e 7 de maio de 1998.
16
motoristas e taifeiros, se apresentassem para novas funções. A OAB entrou, somente no
dia 12 de maio, com um mandado de segurança contra a indicação de Fagundes no STF.
Alegou-se que a indicação feria o artigo 142 da Constituição, que garante ao militar
reformado os mesmos direitos e deveres inerentes às prerrogativas da patente. Isso implica
que Fagundes continua mantendo relação de dependência com as autoridades militares,
embora seja da reserva e esteja advogando. Além do mais, a indicação violava o artigo
128 da Lei Orgânica da Magistratura. Ela proíbe que parentes consanguíneos componham
uma mesma turma, câmara ou seção. Fagundes é irmão de Aldo Fagundes vice-presidente
do STM. A OAB conseguiu liminar suspendendo a nomeação temporária no dia seguinte.
P. 7 e 8) Polícia Militar e Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas
Quando ocorre um golpe de Estado, as Forças Armadas invariavelmente procuram
exercer controle sobre as polícias. O Brasil não fugiu a regra. No dia 30 de dezembro de
1969, o general-presidente Emílio Médici editou o Decreto-Lei no. 1.072 extinguindo as
corporações policiais civis locais e transformando seus integrantes em policiais militares.
Os PMs passaram a ficar sujeitos ao trinômio: instrução militar, regulamento militar e
justiça militar.
Quando se dá a transição para a democracia, há uma preocupação dos novos
governamentes em tirar a polícia do controle das Forças Armadas. O objetivo é tornar
nítida a separação de suas funções: a polícia é responsável pela ordem interna, ou seja,
pelos problemas de segurança pública, enquanto os militares federais se encarregam dos
problemas externos, leia-se, da guerra. A Constituição de 1988 não procurou fazer essa
separação; ao contrário dificultou-a. Pela primeira vez na história republicana, concedeu
aos membros das Polícias Militares o status de servidor público militar, idêntico ao
usufruído pelos integrantes das Forças Armadas.
A Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão criado em 1967, continua
vinculada ao Ministério do Exército e possui a tarefa de controlar parcialmente as PMs.51
O tipo de armamento, a localização dos quartéis, o adestramento das tropas e a
coordenação das PMs continuam sob o controle da IGPM que, a partir da Constituição de
1988, perdeu o controle sobre a instrução das PMs. Emenda Constitucional apresentada,
em setembro de 1997, por FHC ao Congresso, sugere a volta deste controle para as mãos
da IGPM. As PMs continuam sendo regidas por preceitos disciplinares redigidos à
semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército, conforme o Decreto-Lei no. 667, de
2 de julho de 1969,52 e submetidas à Justiça Militar Estadual. Caso tal Emenda seja
aprovada o trinômio-- instrução militar, regulamento militar, justiça militar-- estipulado
51 Até mesmo o Congresso de Honduras decidiu, em agosto de 1997, que a FUSEP, sob controle do
Exército, depois do golpe de estado de 1963, deverá ser desmilitarizada, no espaço de oito meses, e se
transformar numa polícia civil.
52 A prisão por transgressão disciplinar justifica-se em tempo de guerra e no controle de conscritos.
Contudo, o lobby das Forças Armadas, durante a Constituinte de 1998, manteve tal dispositivo válido para
período de paz atingindo, deste modo, oficiais de alta patente e praças profissionais das Polícias Militares
e Corpos de Bombeiros. Vide Eliezer Pereira Martins. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua
Processualidade. São Paulo: Ed. de Direito, 1996:84.
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pelo Decreto-Lei no. 1.072 do presidente-general Médici , estará plenamente
restabelecido.
Os governadores indicam os comandantes das PMs, em geral oriundos da própria
corporação, embora ainda haja poucos estados onde as PMs são comandadas por oficiais
do Exército. Além do mais, os governadores pagam os salários dos policiais militares
postos à disposição do Exército e da tropa mesmo quando elas são federalizadas, ou seja,
quando estão sob o controle do Exército. O policial militar tem, portanto, dois patrões: os
estados e a União. Este arranjo institucional é potencialmente explosivo pois em situação
de conflito entre o governador de Estado e o Presidente da República, o policial fica
inseguro a qual instância obedecer.
Idêntica situação ocorre com os Corpos de Bombeiro Militares. Para que possam
ter a condição de militar e assim serem considerados forças auxiliares, reserva do Exército
tem que ser controlados pelo Ministério do Exército; serem estruturados à base da
hierarquia e da disciplina militar; serem componentes das Forças Policiais Militares, ou
independentes destas, desde que lhe sejam proporcionadas pelas unidades da Federação
condições de vida autônoma reconhecidas pelo Estado Maior do Exército; possuírem
uniformes e subordinarem-se aos preceitos gerais do regulamento interno e dos Serviços
Gerais e do Regulamento Disciplinar, ambos do Exército, e da legislação específica sobre
precedência entre militares das Forças Armadas e os integrantes das forças auxiliares;
exercerem suas atividades profissionais em regime de trabalho de tempo integral, e ficarem
sujeitos ao Código Penal Militar.
A Constituição de 1988 nada fez para devolver à Polícia Civil algumas de suas
atribuições existentes antes do início do regime militar. Até antes 1964, a Polícia
patrulhava as ruas e o trânsito com seus Guardas Civis fardados, atuava na prevenção e
repressão ao crime, além de que fazia a segurança de governadores e dignitários.53 Hoje
está consolidada a militarização da área civil de segurança, pois a Polícia Militar
encarrega-se do policiamento ostensivo e do trânsito, o Corpo de Bombeiros cuida do
controle de incêndios e acidentes em geral, e a Casa Militar Estadual responsabiliza-se
pela segurança governamental e pelo comando do sistema de defesa civil (enchentes,
deslizamento de morros etc). E mais, a chefia de cada um destes três órgãos possui nível
de secretário de estado.
A rivalidade entre a Polícia Civil e Militar se acirrou com a criação da Guarda
Municipal (GM), polícia fardada ostensiva de investidura civil. O VI Congresso Nacional
de Delegados de Polícia Civil, realizado nos dia 8-12 outubro de 1996, em Foz de Iguaçu,
encaminhou uma proposta no sentido de permitir que a GM pudesse também fazer o
policiamento ostensivo, na qualidade de segmento policial uniformizado civil. O objetivo
seria o de recapturar espaço civil perdido, como foi dito acima, com o advento do regime
militar. O que, todavia, está acontecendo é um aumento da presença militar na atividade
de segurança pública. Embora esteja sob o controle dos Prefeitos, as GMs são
comandadas, em geral por oficiais da Polícia Militar da reserva ou até mesmo da ativa,
como ocorre em Recife. A cidade de São Paulo, por sua vez, resolveu entregar o comando
da sua GM a um coronel da reserva do Exército!
53 José Edson Barbosa. “Devolvam as atribuições da Polícia” in Jornal do Commercio, 16 de maio de
1997.
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Ocorre, mais uma vez, um duplo comando. É só imaginarmos uma séria desavença
política entre o Prefeito do Recife e o Governador do Estado, e o comandante da Guarda
Municipal ficará numa situação delicada: a de obedecer ao Prefeito, ao Comandante-Geral
da Polícia Militar ou ao ministro do Exército. Afora isto, o Grupo Especial de Controle
Urbano da GM do Rio de Janeiro é treinado pela Polícia do Exército. Se não bastasse a
Polícia Militar parcialmente subordinada ao Exército, temos a situação de uma polícia
de investidura civil estar sendo comandada por um militar estadual ou federal. Sem falar
que a Secretaria Nacional de Segurança Pública é dirigida pelo general da reserva Gilberto
Serra e o Departamento de Assuntos de Segurança Pública, pelo general da reserva
Dyonelio Morosini. Convém lembrar que a Constituição de 1988 reuniu, não por acaso,
no mesmo título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas), três capítulos:
o Capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio), o Capítulo II (Das Forças
Armadas) e o Capítulo III (Da Segurança Pública).
P. 9) Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados em tribunais comuns
Até o governo Itamar, a possibilidade de um militar ser julgado por tribunal
comum era praticamente nula. Isto porque a definição de crime militar é tão ampla que faz
com que vários ilícitos cometidos por militares possam ser enquadrados em algum artigo
do Código Penal Militar. Em 1996, após o massacre de sem-terras, em Eldorado dos
Carajás, e ante a ameaça da Organização dos Estados Americanos de denunciar
internacionalmente atos de negligência das Justiças Militares, o Executivo resolveu agir. O
Presidente deu ordens ao então ministro da Justiça, Nélson Jobim, que ficasse em plenário
cabalando votos para a aprovação de um novo Projeto de Lei do deputado Hélio Bicudo.
Em janeiro de 1996, a Câmara de Deputados eliminou o foro militar para crimes
cometidos por policiais militares contra civis, no exercício de funções de policiamento.
Todavia, a Câmara inovou: decidiu que a investigação continuaria sendo feita por
militares.54 Acontece que pela Constituição de 1988, cabe à polícia civil apurar as
infrações com exceção dos crimes militares.
No dia 9 de maio de 1996, o Senado desfigurou o projeto Bicudo. O Executivo,
desta vez omitiu-se. Jobim que estava numa reunião em Maputo, lá ficou. O líder do
governo no Senado, Élcio Alvares, apensou ao projeto Bicudo um outro que estava
engavetado, e lhe deu o trâmite de urgência. Este outro projeto fora confeccionado, em
1993, pelo ex-deputado, Genebaldo Corrêa, conhecido como um dos “anões” da
Comissão do Orçamento.
54 A relutância militar em manter a investigação, mesmo de crime civil, sob controle militar é
influenciada pelo histórico episódio ocorrido em 1954. Naquele ano houve um atentado contra Carlos
Lacerda, resultando na morte do major-aviador Rubens Vaz. As investigações feitas pela Polícia Civil do
atentado da Rua Toneleros, em Copacabana, provocaram reações na Aeronáutica. Depois de muita
pressão, o inquérito civil foi paralisado e aberto um IPM. Os suspeitos passaram a ser levados para a base
aérea do Galeão, onde eram ouvidos por militares. Cercada de toda a segurança e sigilo, a base passou a
ser chamada de República do Galeão por conta da independência, em relação ao Palácio do Catete, com
que se processaram as investigações. O mandante do atentado, segundo o IPM, foi o chefe da segurança de
Getúlio Vargas, Gregório Fortunato. FHC prometeu distanciar-se da era Vargas. Contudo, pouco fez para
mudar este legado autoritário.
19
O projeto Corrêa era muito mais brando para com os policiais militares. Aprovado
pelo Senado, o projeto apenas excluiu os crimes dolosos contra a vida de civis da
competência da Justiça Militar. Portanto, ficou de fora da alçada da Justiça comum os
crimes mais corriqueiramente cometidos por policiais militares: crimes contra o
patrimônio, abuso de autoridade, espancamento, prisão ilegal, extorsão, sequestro,
prevaricação etc.
Enquanto o projeto Bicudo olimpicamente ignorou os militares federais, o projeto
Corrêa estipulou que as alterações feitas valiam tanto para militares estaduais como para
os federais. Ou seja, os membros das Forças Armadas que cometessem crimes dolosos
contra civis, também, seriam julgados por tribunais comuns. Desgostosos, os ministros
militares pressionaram o Presidente.55
Cardoso, no dia 7 de agosto de 1996, sancionou o projeto na sua totalidade ao
editar a Lei No. 9.299. Mas, treze dias depois, enviou ao Congresso o Projeto de Lei No.
2.314, propondo a exclusão dos militares federais da Lei No. 9.299. Este projeto
presidencial é generoso para com os militares federais, contudo, é mais rigoroso com os
PMs que o anterior. Estipula que homicídio, seja doloso ou culposo, e lesão corporal
deixam de ser crimes militares desde que cometidos apenas por PMs e, passíveis,
consequentemente, de serem julgados em tribunal comum.
Neste novo projeto, o então ministro da Justiça, Nelson Jobim, tenta consertar um
êrro técnico contido na Lei No. 9.299. Embora tenha transferido para a Justiça comum
crimes dolosos contra a vida de civis cometidos por militares em geral, os crimes não
deixaram de ser militares. Ora, o artigo 124 da Constituição estabelece a competência da
Justiça Militar para processar e julgar crimes militares. O militar julgado pela Justiça
comum pode contestar o resultado, baseando-se na exposicão de motivos do próprio
Nélson Jobim que ainda por cima tornou-se ministro do Supremo Tribunal Federal, onde a
disputa poderá chegar. O Congresso ainda não votou esta proposta presidencial nem FHC
está se esforçando para que a mesma seja aprovada.
Na prática, a Lei No. 9.299 não vigora para os militares federais. No dia 12 de
novembro de 1996, o Superior Tribunal Militar julgou inconstitucional tal lei. Por isso, o
Ministério Público Militar, em 26 de janeiro de 1997, denunciou três soldados do 14o.
Batalhão Logístico do Exército, em Recife, por prática de crime doloso contra a vida do
estudante Fábio de Melo Castelo Branco. Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça
considerou constitucional a Lei No. 9.299 e os policiais militares envolvidos na chacina de
Eldorado dos Carajás serão julgados em tribunal comum. Portanto, já está configurada
juridicamente a existência de dois tipos de militares: os de primeira categoria, os militares
federais, e os de segunda categoria, os militares estaduais. Embora ambos sejam
servidores públicos militares, mesmo que cometam crimes idênticos serão julgados em
tribunais e por códigos penais distintos, podendo receber punições diferenciadas.
P. 10) Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares mesmo que
cometam crimes comuns ou políticos
55 Jorge Zaverucha. “O Congresso, o Presidente e a Justiça Militar” in Marco Aurélio G. de Oliveira (ed.)
Política e Contemporaneidade no Brasil, 1997:240.
20
A Constituição da Guatemala, de 1985, prevê no artigo 219, que nenhum civil
pode ser julgado por tribunal militar. Já a Constituição do Peru, de 1993, estabelece no
artigo 173, que o Código de Justiça Militar não é aplicável aos civis exceto nos casos de
crime de traição ou terrorismo. A Constituição Paraguaia de 1992, artigo 174, permite
que tribunal militar tenha jurisdição sobre civil somente em caso de conflito armado
internacional.
Guatemala, Peru e Paraguai são países detentores, de um modo geral, de
instituições mais frágeis que o Brasil. No entanto, a Constituição brasileira, de 1988, de
acordo com o artigo 125, apenas proíbe que civis sejam julgados por tribunais militares
estaduais.56 Tribunais militares federais, todavia, continuam aptos a julgar civis por crimes
comuns ou políticos. Durante o governo Collor, por exemplo, David Freitas Oliveira, 20
anos, acusado de pichar o muro da casa de um sargento, do 4o. Batalhão do Exército, na
Vila Militar foi julgado por tribunal militar ao ser enquadrado no artigo 261, I e II, do
Código Penal Militar, que versa sobre dano qualificado mediante emprego de substância
inflamável ou explosiva ( em uma alusão ao spray) e por motivo egoístico.57
No governo Sarney, cito o caso do pastor luterano Werner Fuchs, condenado pela
Justiça Militar a dois anos de prisão por ter acusado o Exército de “roubar” terra. Havia
uma disputa judicial desde 1956 por conta do Exército ter desapropriado 7.614 hectares
para servir como campo de treinamento em Papanduva, ao norte de Santa Catarina.58 No
governo Itamar Franco, a Polícia Federal com mandato de busca e apreensão expedido
pelo Juiz Auditor da 5a. Circunscrição Militar do estado do Paraná, deteve quatro
brasileiros, acusados de pertencerem ao grupo separatista ‘O Sul é o meu País’. Em maio
de 1993 foram indiciados pela Lei de Segurança Nacional e estão para ser julgados pela
Auditoria Militar Federal. A ação foi determinada pelo então ministro da Justiça, Maurício
Corrêa. Em 1994, Aureliano Caetano de Lira e José Antonio de Lira foram condenados
pela Auditoria Militar Federal, em Pernambuco, por terem tentado subtrair madeira de
árvores cortadas em área sob administração do Exército e provocado tiroteio ao serem
surpreendidos por patrulha militar.
Em 1995, no governo FHC, o Superior Tribunal Militar, em sentença apelatória,
condenou Eliel Emerenciano do Amaral e Eider Vasconcelos por apropriação indébita de
material de construção pertencente a estabelecimento militar, e Quergenildo Leite da Silva
e José Augusto Tobias da Silva Filho foram incursos por crime de receptação.
Por sua vez, o repórter Marques Edilberth Casara, da revista Manchete, publicou,
em outubro de 1996, a reportagem de capa intitulada “Sou militar e sou gay”. O Comando
Militar do Leste abriu um IPM que considerou a matéria ofensiva às Forças Armadas. Em
janeiro de 1997, o IPM indiciando o repórter e o civil Márcio da Silveira Martins, o
soldado M da reportagem, foi encaminhado ao Ministério Público Militar. Martins foi
enquadrado nos artigos 172 (uso indevido de uniforme militar) e 219 (ofensa às Forças
Armadas) e Casara nestes dois artigos combinado como o artigo 53 (co-autoria). O
56 Para maiores detalhes sobre o funcionamento da Justiça Militar estadual vide Jorge Zaverucha ( 1999)
“Military Justice in the State of Pernambuco after the Military Regime: An Authoritarian Legacy” in
Latin American Research Review, vol. 35, 1999 (no prelo)
57 George Alonso. “Tribunal Militar julga pichador em Brasília” in Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de
1992.
58 “Partido planeja transferir campo de Exército” in Folha de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1994.
21
processo encontra-se na Auditoria da 1a. Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de
Janeiro (Drumond, 1997). Caberá ao Ministério Público Militar decidir se oferece a
denúncia ou se pede o arquivamento do caso.
Mais recentemente, os irmãos Antonio Carlos e Kleber Monteiro foram presos
foram presos pelo Exército porque tentaram usar uma passagem de acesso ao conjunto
habitacional onde moram, que fica em frente ao quartel. Por ordem do comandante do
Terceiro Regimento de Carros de Combate, na Vila Militar de Deodor, general Valdésio
Guilherme de Figueiredo, o acesso havia sido fechado aos moradores. Com a interdição,
os moradores passaram a viver um dilema. A Avenida Brasil corta o bairro ao meio e, para
chegar ao outro lado, todos usavam a passagem subterrânea. Hoje, só idosos, crianças e
mulheres podem continuar descendo por ali. Aos homens resta correr e driblar os carros
nas duas pistas mais movimentadas. Os civis ficaram ilegalmente detidos no quartel, já que
quartel só é prisão de militar, como lembrou o presidente da Comissão de Direitos
Humanos e Assistência Judiciária da OAB, Antônio Carlos Berenhauser.59
Os dois irmãos ficaram presos por dois dias, entre 7 e 9 de outubro de 1997 e
afirmam terem sido espancados na prisão. O presidente da Comissão de Direitos Humanos
da Câmara, deputado Carlos Santana (PT-RJ), encaminhou, no dia 22 de outubro de
1997, ao ministro da Justiça, Íris Rezende, laudo médico comprovando a denúncia.60 A
assessoria do Comando Militar do Leste (CML) informou que a passagem subterrânea fica
em área sob jurisdição militar e só quem pode usá-la é o Exército. Segundo o coronel
Gérson Ribeiro assessor de imprensa do CML, os dois rapazes insistiram em atravessar a
passagem apesar de terem sido impedidos por soldados. Eles teriam xingado e brigado
com os militares e foram presos depois de autuados em flagrante por desacato à ordem. O
auto, segundo o CML, já foi enviado à Auditoria Militar. Já existe jurisprudência que
confere competência à Justiça Militar para julgar crime praticado por civil em lugar sujeito
à administração militar e contra autoridade militar.61
Frise-se que caso civil provoque lesão corporal ou morte em militar motivada por
colizão de trânsito, desde que a viatura militar federal esteja trafegando em missão
especificamente militar, conforme o art. 42 da Constituição Federal, o civil responderá por
crime contra a pessoa na Auditoria Militar Federal.
P. 11) Militar tem o direito de prender civil ou militar sem mandato judicial e sem
flagrante delito
O artigo 5o., LXI da Constituição, estabelece que “ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,
salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”
O radicalismo deste texto justifica-se em situações de guerra ou períodos de exceção. O
mesmo foi mantido devido, mais uma vez, a uma imposição das Forças Armadas
preocupadas em controlar os conscritos, mas que terminou atingindo praças profissionais,
59 “General da Vila Militar prende rapazes por cruzarem passagem subterrânea” in O Globo, 7 outubro
de 1997.
60 “Ministro recebe depoimentos sobre prisões no Rio” in O Globo, 23 de outubro de 1997.
61
José da Silva Loureiro Neto. Direito Penal Militar São Paulo: Ed. Atlas, 1995:46.
22
oficiais das Forças Armadas, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares e o que é
mais grave: civis.
Como o Código Penal Militar (CPM) e os Regulamentos Disciplinares Militares
(RDM), não definem com clareza a linha que separa os crimes e transgressões militares
próprios dos impróprios,62 fica ampla a possibilidade de limitar a liberdade fundamental do
militar. Por exemplo, se um policial militar “conversar ou fazer ruído em ocasiões, lugares
ou horas impróprias”,
63 poderá ser preso. Há ainda um agravante: o CPM foi criado por
uma lei, mas o RDM é fruto de decreto, e decreto não precisa passsar por processo
legislativo. Ele é instrumento de regulamentação nos estritos limites da lei que o enseja.
Só que esta lei inexiste. Portanto, enquanto não tramitar pelo Congresso Nacional e pelas
Assembléias Legislativas dos Estados projetos de lei que definam as condutas passíveis de
prisão por transgressão militar, são inconstitucionais as prisões por transgressão militar.64
Durante a Operação Rio, em 1994, os militares aprisionaram civis sem mandato
judicial ou flagrante delito bastando para isso a presunção de que o indivíduo estivesse
cometendo algum ilícito. E o que é pior, de acordo com a lei militar uma pessoa pode ficar
presa provisoriamente por um período de trinta dias, renováveis por mais vinte, sem que
esta prisão necessite da aprovação de um juiz. A decisão sobre a renovação da prisão
encontra-se afeta à mais alta autoridade militar da região, cabendo ao juiz apenas receber a
comunicação sobre a prisão e a renovação da mesma. Na verdade a função da prisão
provisória está sendo deturpada, pois transformou-se num meio de prender alguém até que
se obtenham provas de sua vinculação a um crime.65 Já a autoridade policial civil, de
acordo com a Lei No. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, só pode prender uma pessoa
temporariamente por, cinco dias no máximo, renováveis por mais cinco, mas somente a
aprovação do Juiz.
P.12) Autoridade extrajudicial e legislativa pode ser exercida pelos militares
Os sistemas de organização judiciária militar existente nos países românicos
caracteriza-se pela desvinculação da esfera administrativa disciplinar militar da esfera
penal militar. Esta separação não era respeitada na Espanha do general Franco. Ou seja,
instituições militares ligadas ao executivo militar julgavam pessoal militar. No período
pós-autoritário, foi redigida uma lei determinando que somente instituições jurídicas
militares poderiam se encarregar de exercer funções judiciais. Hoje em dia no Chile, o juiz
militar de primeira instância é, por definição, o chefe militar da região onde está ocorrendo
o julgamento.
No Brasil, em termos de ilícito penal, esta separação existe formalmente, mas nem
sempre é respeitada. Em algumas situações, como a do desaparecimento de revólver
62 Márcio Luís C. Freyesleben. A Prisão Provisória no CPPM Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1997:177.
63 Transgressão disciplinar de número 50 do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de
Pernambuco, Decreto No. 6.752, de 01 de outubro de 1980.
64 Eliezer Pereira Martins. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade São Paulo:
Ed. De Direito, 1996:87-88.
65 Dyrceu Cintra Júnior e Aguiar Dias. “O Judiciário Brasileiro em face dos direitos humanos” in Justiça
e Democracia no. 4, 1996:30.
23
militar, o Inquérito Policial Militar (IPM) é aberto por um comando militar, isto é, por
uma instituição vinculada ao executivo militar. O IPM sugere que o policial militar seja
administrativamente e civilmente punido tão severamente que, quando o caso chega aos
tribunais militares, muitas vezes, o acusado não é mais apenado. Juizes-Auditores da
Auditoria da Justiça Militar de Pernambuco têm alegado não querer infligir mais um
castigo ao militar, embora, as instâncias administrativa, civil e penal sejam independentes
entre si.
O mais grave é que, durante o IPM, o acusado não tem direito a se defender nem a
constituir advogado de defesa. Só quando o caso chega à Auditoria Militar é que o
acusado pode oferecer sua defesa. Como no caso supra-mencionado o processo é
arquivado, o militar fica sem o direito ao contraditório. Frise-se que a maioria dos IPMs
são conduzidos por oficiais sem formação jurídica adequada, ao contrário dos inquéritos
comuns que são dirigidos por delegados de polícia, bacharéis em Direito.
A situação se agrava na esfera das transgressões disciplinares-militares não
especificadas, ou seja, aquelas que não são tipificadas e onde o legislador deixa de
descrever pormenorizadamente a conduta transgressional. O conteúdo transgressional
acaba por ser preenchido pelo aplicador que transforma-se em legislador. Tome-se o
artigo 12 do Regulamento Disciplinar da Polícia do Estado de São Paulo que dispõe
verbis: “[são transgressões disciplinares não especificadas] todas as ações ou omissões
não especificadas neste regulamento, praticadas contra as leis, as instituições, os símbolos
nacionais, contra a dignidade da classe, contra os preceitos da subordinação, regras de
conduta e de serviço estabelecidas nas leis e regulamentos, ou prescritas por autoridades
competentes”.
Como se nota, tanto o conteúdo como a sanção são indeterminados e o acusado só
saberá a posteriori o que foi proibido. Trata-se de uma violação do princípio da
taxatividade administrativa militar, que exige tanto que as transgressões disciplinares se
achem previstas em normas anteriores como que tais normas determinem com clareza os
contornos e os limites dos fatos puníveis.66 A incompatibilidade com o Estado de Direito
se aprofunda ao mirar-se o Art. 5o., LV, da Constituição de 1988. Pelo mesmo, os
litigantes em processo judicial ou administrativo e os acusados em geral, “têm direito a
saber a exata descrição da conduta que a eles se imputa como garantia do contraditório e
da ampla defesa, já que ninguém pode defender-se do que é inespecífico, não delimitado…
Deste modo, não se concebe que o administrador seja transformado em legislador, criando
figuras típicas segundo o seu prazer ou ódio, deixando em insegurança jurídica o
administrado que a qualquer momento pode ser punido pelo mero capricho do detentor do
poder disciplinar”.
67
P. 13) Potencial para os militares se tornarem uma força independente de execução
durante intervenção interna
66 Eliezer Pereira Martins. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade São Paulo:
Ed. De Direito, 1996:74.
67 Ibid., p. 74.
24
Persiste o risco dos militares federais, utilizados em operações de segurança
pública venham a subordinar suas ações à hierarquia militar, em vez de atuarem como
braço armado do poder político. A Operação Rio (1994-95) é o mais notável exemplo: os
militares agiram praticamente sem qualquer controle político. A nomeação do
comandante, o planejamento tático-estratégico da operação, a decisão sobre onde, quando
e como empregar tropas, o tipo de munição e o custo da operação foram da alçada
exclusivamente militar. Em momento algum, qualquer representante da Justiça estadual ou
federal acompanhou o deslocamento das tropas militares. Nenhum militar federal
transgressor foi julgado por tribunal comum.
A autonomia castrense reapareceu, no Rio de Janeiro, no dia 22 de novembro de
1997. Bastou que dois fuzis militares fossem roubados de sentinelas nas imediações da
Vila Militar de Deodoro. Em represália, o Exército fez uma operação na favela do
Muquiço. Como as armas roubadas não foram encontradas, soldados do Comando Militar
do Leste (CML) ocuparam 12 favelas da redondeza. Vários deles com os rostos
encobertos68 usaram caminhões, com placas também cobertas, um carro de combate
“Urutu” e até um tanque de guerra (M-113).69 Ocupantes de carros que trafegavam pela
área foram obrigados a parar, fornecer documentos e se submeter a minuciosa revista.
Mulheres foram revistadas, crianças que iam para escola obrigadas a abrir mochilas70 e
residências foram violadas.71 Uma verdadeira operação de ocupação militar para procurar
duas armas! Segundo o secretário-geral do Conselho Federal da OAB, “os moradores
daquelas favelas, no caso específico dessa operação militar— assim como sistematicamente
ocorre em relação as operações policiais convencionais--, foram tratados previamente
como culpados. Subverteu-se como de hábito, quando se trata de parcela pobre da
população brasileira, do princípio universal da presunção de inocência consagrada pela
Constituição… [Os defensores do Estado Democrático de Direito] reclama dos Poderes
da República, principalmente do Presidente da República, cujas prerrogativas foram
usurpadas, pronta ação no sentido de impor o imediato restabelecimento da ordem
pública”.
72
Para não ter de explicar porque o Presidente da República não foi consultado, o
CML, em nota oficial, tratou de vender a idéia que tudo não passou de “atividades de
polícia judiciário militar” como se a ela fosse permitido usar massa bruta aleatoriamente.
Anteriormente, o assessor de imprensa do CML, coronel Helio Borges, disse que os
militares estavam cumprindo um mandado judicial de busca e apreensão que fora
concedido pela Justiça Militar à Polícia Militar. O assessor parlamentar da Secretaria
Estadual de Segurança Pública, coronel Milton Corrêa da Costa, por sua vez, negou a
68 O artigo 5o., inciso 64, da Constituição Federal estabelece que o preso tem direito à identificação dos
responsáveis por sua prisão.
69 Denise Ribeiro e Mauricio Tambasco. “Exército cerca 12 favelas do subúrbio” in Jornal do Brasil, 26
de novembro de 1997.
70 Artigo 5o., inciso III, da Constituição Federal: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante.”
71 Artigo 5o., inciso XI, da CF: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar
sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou,
durante o dia, por determinação judicial”.
72 Reginaldo Oscar de Castro. “Os fuzis e a Constituição” in Jornal do Brasil, 30 de novembro de 1997.
25
existência deste mandado.73 Como o mandado judicial que teria embasado a ação do
Exército não foi localizado na Justiça Militar, a Procuradoria da República pediu à Justiça
Federal a imediata interrupção das ações militares nas favelas.74 O mandado judicial foi
emitido ex post facto. Ou seja, somente no dia 26 de novembro, à noite, é que o Exército
o solicitou. No dia seguinte, juiz da 3a. Auditoria Militar do Rio de Janeiro, emitiu
mandado específico autorizando soldados a entrarem em apenas uma casa da Favela do
Muquiço por suspeitarem que lá estavam as armas roubadas.75
P. 14) Forças Armadas são as principais responsáveis pela segurança do presidente e vicepresidente da República
Desconheço a existência de alguma democracia estável que atribua às Forças
Armadas, através da Casa Militar, a função de fazer a segurança do Presidente da
República. Até mesmo o general Pinochet entregou sua proteção bem como a do Palácio
do Governo, a uma força policial: os Carabineros. No Brasil, a Casa Militar chefiada por
um general, com status de ministro de Estado, reúne além do Gabinete do Ministro,
liderado por um oficial de posto de coronel das Forças Armadas, contém as seguintes
subchefias: a) Subchefia Executiva; b) Subchefia da Marinha; c) Subchefia do Exército; d)
Subchefia da Aeronáutica; e e) Subchefia de Segurança. Esta subchefia mistura oficiais do
Exército, policias militares, bombeiros e agentes da Polícia Federal. Desde 1985, a Polícia
Federal foi, aos poucos, perdendo espaço para os militares no que se refere à segurança
presidencial. Hoje sua presença é meramente residual, por exemplo, faz a varredura de
telefones e ficou responsável pela procura dos responsáveis que atiraram pedras no
ônibus da comitiva presidencial, na cidade de Campina Grande, em maio de 1995. Há
alguns agentes trabalhando, po exemplo, na Subchefia de Segurança fazendo o trabalho de
varredura dos telefones. O Batalhão da Guarda da Presidência (cerca de 1.500 homens) e
o Regimento de Cavalaria da Guarda (cerca de 1.300 homens) fazem a guarda do
Presidente e do Vice-Presidente em Brasília. Segundo a revista Veja,76 a segurança da
fazenda particular do Presidente Fernando Henrique também está a cargo do Exército.
Cerca de dois mil homens, tanques blindados, carros de combate e helicópteros de
transporte estão em alerta permanente para uma eventual invasão da Fazenda Córrego da
Ponte pelos membros do Movimento dos Sem-Terra. Caso a inteligência militar detecte
uma provável invasão, várias unidades militares serão simultaneamente acionadas, dentre
elas, o Batalhão da Guarda da Presidência.
Com a novidade de o Presidente da República poder ser reeleito, a Casa Militar
teve que desenvolver um novo tipo de segurança para FHC, durante a campanha eleitoral.
Para isto foram despachados militares para conhecerem os procedimentos de segurança
73 Fábio Versano & Luciana Conti. “Procurador apura ação militar em favelas” in Jornal do Brasil, 27 de
novembro de 1997.
74 Sergio Torres. “Procuradoria pede que Exército deixe favelas” in Folha de S. Paulo, 28 de novembro
de 1997.
75 “Exército não tinha mandado” in Jornal do Brasil, 28 de novembro de 1997.
76 Policarpo Jr. “Guerra em casa” in Veja, 20 de novembro de 1996.
26
para os presidentes candidatos adotados por vários países, dentre eles os EUA.77 Só que lá
a segurança do presidente é feita por forças civis. O modelo brasileiro, por sua vez, foi
imitado pelo presidente peruano Alberto Fujimori. Após o auto-golpe, Fujimori tirou a sua
guarda pessoal das mãos da polícia e entregou ao Exército.
P. 15) Presença militar em áreas de atividade econômica civil (indústria espacial,
navegação, aviação etc)
Cabe a Marinha o licenciamento, a segurança das embarcações, fiscalização de
documentação, balizamento, sinalização e salvaguarda da vida humana no mar. Até quem
desejar se habilitar a pilotar um jet-ski precisa ser aprovado pela Capitania dos Portos,
órgão do Ministério da Marinha. Acidentes, civil ou militar, da navegação marítima, fluvial
e lacustre são administrativamente julgados pelo Tribunal Marítimo, órgão autônomo
vinculado ao Ministério da Marinha. Cabe, também, a este Tribunal manter o registro da
propriedade marítima. Em 1996, devido a uma continuada falta de segurança nos portos
brasileiros, o governo criou a Comissão Nacional de Segurança nos Portos (Comportos)
reunindo os Ministérios da Marinha, Justiça e Transportes. Uma outra comissão específica
para verificar a segurança portuária em caso de conflitos e greves, é coordenada por um
representante do Ministério da Marinha.78 Em dezembro de 1997, FHC sancionou a Lei de
Segurança do Tráfego Aquaviário que, dentre outros, estabelece que quando os práticos
não chegarem a um acordo sobre o pagamento com os donos de navios, a decisão será
arbitrada pela Marinha. Os práticos são civis aprovados em concurso feito pela Marinha.
O Ministério da Marinha também controla a marinha mercante. Uma das primeiras
medidas do governo FHC foi conseguir aprovar a lei de abertura da navegação de
cabotagem. Ou seja, navios estrangeiros poderiam fazer negócios viajando dentro do país.
O ministro da Marinha adotou a seguinte tática: não contestou a decisão mas tratou de
sabotar o referido projeto.79 Fez um decreto de regulamentação com tantas exigências que
a liberação tornou-se letra morta. Por exemplo, navio que quiser pegar carga no Rio de
Janeiro e levar para Recife, precisa antes apanhar carga em Recife. FHC ganhou no
Congresso ao conseguir aprovar a Emenda Constitucional mas, na prática, a reserva de
mercado persiste.
O tráfego aéreo civil, privado, comercial e desportivo são controlados pelo
Ministério da Aeronáutica.80 Inclusive é ele quem aprova o preço das passagens aéreas e
determina a frequência das rotas e as companhias habilitadas a cumpri-las. A fiscalização
das condições de vôo e navegação das aeronaves e embarcações civis está a cargo dos
militares assim como a investigação de acidentes envolvendo as mesmas. Esta situação
77 Marcelo de Moraes & Tania Monteiro. “Segurança de FHC estuda como agir nas eleições” in O Estado
de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1998.
78 Gustavo Paul. “Armadores alertam para riscos nos portos do Brasil” in O Estado de S. Paulo, 20 de
janeiro de 1998.
79 Vanda Célia. “Brasília -DF” in Correio Braziliense, 22 de março de 1998.
80 Altair Ferreira da Costa, Gílson Carvalho do Santos e Ronaldo de Souza foram multados em R$
1.442,00 e responderam a processo no Serviço Regional de Proteção ao Vôo, órgão do Ministério da
Aeronáutica, por terem invadido espaço aéreo que não era reservado a vôos de asa delta. Marcelo Moreira.
“Aterrissagem azarada” in Jornal do Brasil, 5 de fevereiro de 1998.
27
cria um conflito de competência pois o órgão investigador de acidentes aéreos, Centro
Nacional de Investigação de Acidentes de Incidentes Aeronáuticos (Cenipa), fornece ao
Departamento de Aviação Civil (DAC) os dados para a elaboração do relatório final. Só
que os dois órgãos, e seus integrantes, estão subordinados ao órgão regulamentador: o
ministério da Aeronáutica.
Nos EUA, por exemplo, duas agências independentes regulam a aviação
comercial. A FAA, agência do Departamento de Transportes (DOT) administra todo o
sistema de aviação civil, ou seja, homologa novas aeronaves; supervisiona aeroportos e
tráfego aéreo, concessão de linhas e até mesmo o planejamento do futuro da aviação. Já o
NTSB encarrega-se primordialmente de assuntos ligados à segurança como investigação e
prevenção de acidentes aeronáuticos. Embora mantenha relações com o DOT está
unicamente subordinada ao Congresso. A partir do estudo de acidentes, o NTSB faz
recomendações que devem ser acatadas pela FAA.
Tivessemos tal divisão de atribuições, por certo, muitas críticas feitas a
Aeronáutica seriam evitadas. Por exemplo, no caso da queda do Learjet que carregava o
grupo Mamonas Assassinas, no dia 2 de março de 1996, pela primeira vez a Polícia Civil
resolveu investigar a queda do avião. Enquanto o laudo da Aeronáutica culpou
exclusivamente o piloto e co-piloto pela queda do avião, o delegado José Gouveia
também responsabilizou três integrantes da torre de controle do aeroporto, sendo dois
deles, militares.81 Os militares só prestaram depoimentos depois de intimados pela Justiça.
Após mais de um ano do acidente, não se sabe qual dos dois laudos prevalecerá
prejudicando as famílias das vítimas que buscam indenização. Um caso em que DAC
também, depois de mais de um ano, ainda não resolveu foi o envolvendo o ex-comandante
da FAB, José Raimundo Araújo, que no dia 4 de junho de 1996, chocou o Learjet da
AeroExecutivo com um caminhão estacionado na pista do aeroporto de Ribeirão Preto.
Sua esposa quer saber exatamente o que aconteceu mas o DAC diz que o assunto é
sigiloso.82
Mais recentemente, foi preciso uma decisão judicial para obrigar a Aeronáutica a
revelar, depois de quase um ano, os dados da caixa-preta do Fokker-100 da TAM, que
caiu no dia 31 de outubro de 1996.83 Em dezembro de 1997, a Aeronáutica publicou o
laudo oficial do desastre sem, contudo, tornar público o teor completo das conversas
contidas na caixa-preta do Fokker. Sem isto, a ação judicial da família contra os
responsáveis pelo acidente, no sentido de receber seguro ou iniciar ações indenizatórias
fica prejudicada. O prazo prescreve em outubro de 1998. Procedimento idêntico foi
adotado com a caixa-preta do Learjet que caiu com o grupo Mamonas Assassinas.
A estreita ligação entre o DAC e as companhias de aviação comercial faz com que
tais empresas contratem brigadeiros da reserva, com o intuito de fazer lobby, além de
desenvolver certo tipo de relacionamento que seria vedado caso houvesse uma séria
legislação sobre conflito de interesse. Recentemente, a Varig, durante as festividades de
seu septuagésimo aniversário, resolveu levar oito brigadeiros, três generais, dois
81 Marco Damiani & Mauro Silveira. “Mamonas Assassinas-Um ano sem eles” in Manchete, 1 de março
de 1997.
82 “Coluna do Swann.” in Jornal do Brasil, 20 maio de 1997.
83 “Aeronáutica terá de divulgar caixa preta”, Folha de S. Paulo, 24 de junho de 1997; “Laudo da caixa
preta será apresentado”, in O Estado de S. Paulo, 25 de junho de 1997.
28
almirantes e um ministro do Superior Tribunal de Justiça para participarem de um torneio
de tênis, entre os dias 29 de abril e 4 de maio de 1997, em Manaus. Os integrantes da
comitiva militar, e suas respectivas esposas, ficaram hospedados no Hotel Tropical, um
cinco estrelas pertencente a Varig.84 Já a VASP, patrocinou, no Canadá, uma festa em
homenagem ao brigadeiro Renato Cláudio Pereira recém-nomeado diretor da Organização
Internacional de Aviação. Dentre os oficiais convidados estava o brigadeiro Sócrates
Monteiro, ex-ministro da Aeronáutica do governo Collor, que segundo Gois85 “brindou a
empresa com algumas linhas internacionais”.
Sobre o DAC já se lançou a suspeita de agir parcialmente. Em agosto de 1995, o
Ministério Público de São Paulo decidiu investigar se o DAC prejudicou a Vasp, antes da
privatização da empresa, ao negar a concessão de linhas áreas lucrativas.86 O promotor
Carlos Alberto de Sales suspeita que o DAC discriminou “negativamente” a Vasp,
beneficiando empresas privadas. A reiterada negativa da concessão de linhas competitivas
teria sido um dos fatores que levaram à privatização da empresa em 1990. Salles instaurou
inquérito civil, em 17 de agosto de 19995, para apurar a atuação do DAC em relação à
Vasp no período em que a empresa pertenceu ao Estado de São Paulo. De acordo com o
promotor, vários depoimentos dados à CPI que investigou a privatização da empresa
apontaram um comportamento discriminatório do DAC, evidenciado pelo fato de a
empresa passar a conseguir linhas lucrativas depois de sua privatização.
A Aeronáutica, em 1997, utilizou 32 mil passagens grátis fornecidas pelas
companhias aéreas.87 O passe livre para quem estiver trabalhando foi criado por uma
portaria de 1973. O DAC tem 14 mil funcionários. É como se cada um recebesse 2,28
passagens por ano, embora a maoria dos funcionários trabalhem na área que deve
fiscalizar.88
Por sua vez, técnicos da Secretaria de Direito Econômico (SDE) solicitaram ao
seu secretário-geral, a abertura de um inquérito administrativo contra o DAC para explicar
a existência de um possível cartel entre as empresas que atuam na ponte aérea Rio-São
Paulo. A Varig, Vasp e Transbrasil que integram o chamado pool da ponte aérea cobram
o mesmo preço da Rio-Sul e da TAM que não integram o pool. A relação distância/preço
é um das mais caras do mundo. O processo terminou não sendo aberto pois a atual
legislação não prevê a possibilidade da SDE processar um outro órgão público, no caso, o
DAC. Seria como se o ministro da Justiça, ao qual a SDE está subordinada, processasse o
ministro da Aeronáutica.89 (Mugnatto, 1997a).
A Organização Mundial de Turismo (OMT) criticou o Ministério da Aeronáutica
por garantir às companhias aéreas posição dominante na formulação das políticas de
aviação, em detrimento da indústria do turismo. Segundo a OMT, o DAC através do
“Livro Branco - Política em Matéria de Serviço de Transporte Aéreo Comercial” traçou,
desde 1991, as diretrizes que são seguidas pelo governo brasileiro até hoje. A OMT
84 “Boca-livre militar” in Veja, 14 de maio 1997.
85 Ancelmo Gois. “Radar” in Veja, 133 de agosto de 1997.
86 “Inquérito apura se DAC causou prejuízo a Vasp e ao governo” in Folha de S. Paulo, 18 agosto 1995.
87 “Ricardo Boechat” in O Globo, 26 de janeiro de 1998.
88 Sandra Brasil. “Voando de graça” in Veja, 28 de janeiro de 1998.
89 Sílvia Muganatto. “DAC pode ser investigado pelo governo” in Jornal do Brasil, 2 de agosto de 1997.
29
acredita que desmilitarizando o DAC conseguirá reforçar a posição da indústria do
turismo.90
O governo FHC iniciou estudos para tirar o Departamento de Aviação Civil
(DAC) das mãos da Aeronáutica.91 Mas, com a crise desencadeada pela saída do ministro
da Aeronáutica, brigadeiro Mauro Gandra, amigo do dono da Líder Taxi Aéreo, empresa
associada a Raytheon, vencedora do contrato de fornecimento de sofisticados
equipamentos para o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), o governo resolveu
engavetar tais estudos.92 Além do Brasil, só o Paraguai e Equador têm sua aviação civil
subordinada a um ministério militar.
Posteriormente, o Ministro da Casa Civil, um dos mais fortes do governo FHC,
retomou os estudos sobre a desregulamentação do setor e a privatização da Empresa de
Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero), responsável pela construção, operação e
manutenção dos aeroportos brasileiros. Tal como noutras áreas da economia, a
desregulamentação visa a abertura do mercado nacional às empresas estrangeiras para a
redução dos preços das passagens. O plano do governo é substituir o DAC e a Infraero
por uma agência reguladora, similar às que estão sendo criadas para os setores de
petróleo, energia elétrica e telecomunicações. As empresas privadas de aviação aliaram-se
à Aeronáutica contra o projeto governamental. Chegaram a indicar o ex-ministro da
Aeronáutica, Mauro Gandra, que já dirigiu o DAC, para a presidência do Sindicato
Nacional das Empresas de Transporte Aéreo, com o intuito de ajudar a derrubar a idéia da
desregulamentação.93
Já a Infraero, repassa ao Ministério da Aeronáutica 40% do que arrecada graças a
uma portaria de 28 de dezembro de 1995. Em 1996, transferiu para a FAB US$ 333,9
milhões, ou seja, mais de um terço dos recursos recebidos pela FAB para gastos em
despesa, com exceção da folha de pagamentos.94 Estima-se que em 1997, o repasse suba
para R$ 430 milhões, quase cinco vezes o orçamento da Aeronáutica para investimentos.
Não é só verbas que a Infraero repassa. Durante o nebuloso episódio da implantação do
Sistema de Vigilância de Amazônia (Sivam), o contribuinte soube que três dos cinco
oficiais da reserva da Aeronáutica que trabalhavam na Assessoria Parlamentar do
Ministério da Aeronáutica no Congresso, pertenciam a empresa Esca que foi selecionada
para implantar o Sivam. A Esca teve a falência decretada por ter fraudado o INSS. Os
três oficiais, um brigadeiro e dois coronéis, foram logo contratados para exercerem cargo
de confiança na Infraero, e postos à disposição do Ministério. Cada oficial recebe
mensalmente R$ 3.427,60, afora o salário de oficial da reserva. A Aeronáutica, ao
contrário do Exército e da Marinha, usa oficiais da reseva como assessores
parlamentares.95
90 Ibid. “Turismo quer DAC desmilitarizado” in Jornal do Brasil, 27 de outubro de 1997.
91 A aviação civil era vinculada ao Ministério da Viação e Obras Públicas. A partir de 1941, com a
criação do Ministério da Aeronáutica por Getúlio Vargas, é que os militares passaram a controlar tal
aviação.
92 Sônia Mossri. “Lôbo tenta conter insatisfaçào de oficiais” in Folha de S. Paulo, 23 de novembro de
1995.
93 Tânia Monteiro. “Aeronáutica reage a projeto de privatização” in O Estado de S. Paulo, 24 de outubro
de 1997.
94 Ibid. “Infraero ajuda a sustentar a FAB” in O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 1997.
95 Eumano Silva & Eduardo Hollanda “Desvio de rota” in IstoÉ, 5 de novembro de 1997.
30
A briga de bastidores entre os ministros da Casa Civil, Clóvis Carvalho, e o
ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Lélio Lobo, veio à tona, no dia 23 de outubro de
1997, durante a cerimônia, do Dia do Aviador. Lobo, em declaração pública, defendeu
que seu ministério continuasse a controlar o tráfego aéreo, política de tarifas das
companhias aéreas e a administração dos aeroportos em todo o país. No dia 24 de janeiro
de 1998, Carvalho anunciou que FHC decidiu tirar do projeto de criação da Agência
Nacional dos Transportes, todo o setor aeroviário. O monopólio estatal na aviação civil
persiste. Deste modo, a futura agência contemplará apenas o Departamento Nacional de
Estradas de Rodagem (DNER), a Marinha Mercante e a Rede Ferroviária Federal.96 Frisese que noutros setores ditos estratégicos como energia, mineração ou telecomunicação a
privatização segue adiante.
O programa espacial brasileiro ainda possui significativa presença militar embora
ele seja de cunho civil. A Infraero, Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária,
responsável pela operação dos aeroportos civis do país passou a administrar o Centro de
Lançamentos de Alcântara (CLA), no Maranhão. Convênio neste sentido foi assinado, no
final de 1996, entre o presidente da Infraero, Brigadeiro Adyr da Silva, e o diretor do
Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Aeronáutica, Tenente-Brigadeiro Walter
Werner Brauer. O diretor-geral da Agência Espacial Brasileira (AEB) também é militar.
Trata-se do Major-Brigadeiro, Ajax Barros de Mello, que ocupa o segundo posto em
importância na AEB. O Brigadeiro é assessorado por dois coordenadores-geral, ambos
coronéis.
Mais recentemente, em 1996, a Fundação Habitacional do Exército (FHE), cujos
diretores são apontados pelo Ministério do Exército, adquiriu 49% do capital do
Banfort— Banco Fortaleza S.A. O general Romildo Canhim, ex-ministro do governo
Itamar Franco, juntamente com o presidente do Banfort, José Afonso Sancho, tornaram-se
os responsáveis pela execução da política do Banfort definida pelo conselho de
administração. Trata-se de uma parceria inédita na história da administração militar
brasileira. No dia 15 maio de 1997, o Banfort foi liquidado extrajudicialmente pelo Banco
Central por falta de recursos em caixa para saldar compromissos. Os bens do presidente
do conselho de administração, general Waldstein Iran Kummel, do general Luiz Carlos de
Lima Coutinho e do brigadeiro Volney do Rego, ficaram em indisponibilidade por
determinação do Banco Central. Nada impede que o FHE volte a tentar uma parceria com
outro banco privado.
No dia 23 de setembro de 1997, o Congresso decretou e o Presidente da
República sancionou a Lei no. 9.503 instituindo o novo Código de Trânsito Brasileiro.
Antes do advento do regime militar inaugurado em 1964, o policiamento do trânsito
estava a cargo da Polícia Civil. Durante o período autoritário esta função foi transferida
para as Polícias Militares. O novo Código ratificou a decisão da ditadura ao considerar
como membro do Sistema Nacional de Trânsito as Polícias Militares em vez das Polícias
Civis. Afora isto, o referido diploma legal decidiu que sete pessoas participam do
Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), que coordena o Sistema Nacional de
Trânsito e é órgão máximo normativo e consultivo. Um dos integrantes do CONTRAN é
um representante do Ministério do Exército. No Código anterior, o CONTRAN era
96 Eliane Cantanhêde & William França. “Lobby da Aeronáutica tira setor aéreo de nova agência” in
Folha de S. Paulo, 24 de janeiro de 1998.
31
composto por vinte e uma pessoas. Portanto, o novo Código de Trânsito em vez de
afastar o Exército de uma atividade eminentemente civil, optou por fortalecer a presença
castrense.
P. 16) Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar contas totalmente
ao Tesouro
De acordo com as Leis 5.651 e 5.658, de 11 de dezembro de 1970 e 7 de junho de
1971, respectivamente, os ministérios militares estão autorizados a proceder a venda ou
permuta de bens imóveis da União sob sua jurisdição, cuja utilização ou exploração não
atenda mais às necessidades dos respectivos ministérios. Por essas Leis, redigidas durante
o regime militar, os ministérios militares, ao contrário dos ministérios civis, não precisam
prestar contas de suas negociações patrimoniais ao Tesouro Nacional.
Esse enclave autoritário funciona com regras autônomas que diferem de outras
instituições submetidas ao crivo democrático. O arrecadado vai para o Fundo do Exército,
Marinha ou Aeronáutica. As Forças Armadas apenas precisam de autorização do
Presidente da República para alienar algum bem, caso os recursos originários da venda
sejam aplicados em obras consideradas de importância fundamental para a Força, como
ampliação de quartéis e construção de imóveis de uso restrito do ministério envolvido.
Curiosamente, lei similar foi incorporada, por Pinochet, à Lei Orgânica das Forças
Armadas doze dias antes do Presidente Aylwin tomar posse na presidência do Chile.97
17) A política salarial do militar é similar a existente durante o regime autoritário
O art. 37-X, da Constituição de 1988, estipula que os funcionários públicos civis e
militares devem ter aumento salarial em datas comuns. Foi uma tentativa de evitar que os
servidores militares tivessem aumentos diferenciados dos servidores civis, tal como
ocorreu durante o regime militar. Este artigo, no entanto, foi violado pelos governos
Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC. Não importa se há algum plano econômico de
congelamento de salários ou haja contenção de despesas por parte do Tesouro Nacional.
Assim que os militares acham que seus salários estão aviltados, começa a haver pressões
na caserna que chegam aos ministérios militares, e terminam na mesa do Presidente. Este
chama o ministro da Fazenda e pede que ache uma solução para a crise antes que ela saia
dos quartéis. Frequentemente opta-se por conceder novos benefícios pecuniários apenas
para o setor militar. Embora, às vezes, tais beneficios sejam, também, estendidos ao setor
civil.
Quando o aumento salarial é unilateral, os servidores civis podem entrar com um
mandado de segurança. No dia 19 de fevereiro de 1997, o STF concedeu a 11 servidores
civis o direito de receberem o aumento de 28,86% concedido pelo Presidente Itamar aos
militares em janeiro de 1993. Para evitar disputas jurídicas, o governo FHC decidiu
conceder semestralmente uma gratificação salarial. Tecnicamente diferente de aumento
97 Juan Linz & Alfred Stepan. Problems of Democratic Transition and Consolidation Baltimore: John
Hopkins University Press, 1996:208-9.
32
salarial, os servidores civis não podem alegar que houve violação do art. 37. Na prática,
todavia, voltou-se a situação existente durante o regime autoritário. Para evitar que os
militares ganhem tão mal quanto o funcionalismo público civil, o Presidente Fernando
Henrique enviou ao Congresso, em 26 de março de 1996, proposta de Emenda
Constitucional No. 338-A na qual os militares federais deixam de ser considerados
servidores públicos e passam a ter uma carreira específica, cuja política salarial será regida
por leis próprias.
A Emenda andou lentamente no Congresso. Bastou o início da greve das Polícias
Militares estaduais, em julho de 1997, para que a mesma deslanchasse. Os congressistas
temeram que a insatisfação salarial atingisse os quartéis federais e enviaram um sinal
tranquilizador às tropas. Tal Emenda terminou sendo aprovada em janeiro de 1998,
durante convocação extraordinária do Congresso Nacional. Logo em seguida, FHC
tratou de redigir uma Medida Provisória concedendo aumento médio de 60% na
Gratificação de Condição Especial de Trabalho (GCET) dos militares federais. O Tesouro
vinha pagando 36% do GCET, e subiu para 77% em 1998 e 100% em fevereiro de1999.
Os ministérios militares já tinham inserido no contracheques de seus funcionários o
aumento da GCET quando o Governo se deu conta que a Constituição proíbe que matéria
de objeto de Emenda Constitucional possa ser regulada por Medida Provisória. Para não
contrariar os militares, fez-se necessário uma ginástica jurídica em três tempos. FHC
enviou um Projeto de Lei ao Congresso, em caráter de urgência na calada da noite do dia
17 de fevereiro, propondo o aumento; dois dias depois baixou um decreto autorizando o
Ministério da Fazenda e o Estado-Maior das Forças Armadas a adiantarem o aumento e
incluiu na Medida Provisória 1.639-38 o pagamento dos salários de uma vez, em vez de
duas parcelas como era feito anteriomente.98 Os militares passaram a usufruir de um
aumento antes mesmo de ter sido apreciado pelo Congresso, ou seja, sem amparo numa
lei aprovada.99 Trata-se da política do fato consumado e de duvidosa legalidade.100
Somente em maio de 1998 é que o Congresso transformou em lei o decreto presidencial.
Convém lembrar que estudo feito por assessor do Ministério de Planejamento e
Orçamento concluiu que, entre 1995 e 1997, houve uma queda acumulada de 4% do gasto
com servidores civis e um aumento acumulado de 7% do gasto com o pessoal militar.101 O
governo, em 1998, não se dispôs a rever esta situação.
Conclusão
As 17 prerrogativas existentes governo Sarney mantiveram-se, praticamente,
intactas durante os governos Collor, Itamar e FHC. A tênue diferença poderia ser
creditada a possível criação de um fragilizado Ministério da Defesa por parte de FHC, nos
98 Paulo Mussoi & Eugênia Lopes. “Militar recebe aumento na quarta” in Jornal do Brasil, 20 de
fevereiro de 1998.
99 Lendro Fortes. “Militares têm aumento que Congresso não analisou” in O Globo, 20 de fevereiro de
1998.
100 Olímpio Cruz Neto. “Aumento divide o Supremo” in O Globo, 21 de fevereiro de 1998.
101 Fabio Giambiagi. “Por que cresce o gasto com o pessoal?” in Folha de S. Paulo, 11 de janeiro de
1998.
33
últimos meses de seu governo. As diferenças entre os quatro presidentes nestes13 anos
devem, desse modo, ser medidas pelo grau de suas atitudes e não pela natureza de seus
comportamentos vis-à-vis os militares. A democracia tutelada/protegida/guardiã vem
mantendo com regularidade o padrão que consiste na continuada existência de altas
prerrogativas militares e baixa contestação militar.102
Como já mencionado, esta situação foi denominada de “golpe branco” por Stepan,
redundando na existência de um sistema não-democrático. Ou seja, a democracia brasileira
é tão conservadora com os interesses castrenses que os militares não se sentem
impulsionados a contestarem os governos civis. Esta paz dos pântanos dá a falsa
impressão de que os militares estão recolhidos aos quartéis e afastados dos processos de
decisão política. Sem tentativa de golpe de estado, governos democraticamente eleitos se
sucedem só que a estabilidade de um sistema difere da natureza deste sistema, pois
pode-se criar sistemas democráticos e não-democráticos que durem ou não.103
Temos aí um equilíbrio instável. Equilíbrio no sentido de que a situação parece
agradar tanto a civis quanto a militares que, no momento, nenhuma das duas partes se vê
motivada a mudar o relacionamento civil-militar existente. Portanto, nem os militares
priorizam o golpe de estado nem os civis trabalham para dar um salto qualitativo de um
governo para um regime democrático.
O equilíbro é instável não porque seja imprevisível o comportamento civil-militar
ou porque o mesmo deixe de apresentar padrões minimamente regulares. E sim, porque os
interesses são fluidos e basta surgir condições políticas distintas para civis ou militares
abandonarem tal equilíbrio. Isto significa dizer que se algum dia os civis resolverem tentar
acabar com a maior parte das prerrogativas militares, sem uma contra-partida, tal atitude
poderá detonar uma reação pretoriana que ameace a existência do governo de plantão.
Presidentes eleitos pelo voto popular, ficam receosos de implementarem certas decisões
devido a esperada reação castrense. Este tipo de constrangimento é muito pouco
democrático.
Ainda temos uma transição incompleta, ou seja, ainda somos uma democracia
“iliberal” onde se praticam os ritos formais eleitorais, mas os eleitos, logo a seguir,
mutilam as liberdades políticas e econômicas.104 Se o golpe militar ortodoxo ou
heterodoxo não mais atrai determinados atores políticos, os golpes institucionais via a
manipulação de procedimentos democráticos está na crista da onda.105 Por isso mesmo,
há ainda um longo e tortuoso caminho rumo a uma possível democratização das relações
civil-militares no Brasil pois os militares continuam sendo um ator chave no processo de
tomada de decisões políticas.106 O ponto de não-retorno ao autoritarismo ainda não foi
atingido pela frágil democracia brasileira que, por sinal, ainda não passou pelo teste da
102 Para visão oposta vide, Scott D. Tollefson. “Civil-Military Relations in Brazil: The Myth of Tutelary
Democracy” (paper apresentado no Encontro da Latin American Studies Association, Washington D.C.,
28-30 de setembro de 1995).
103 Samuel Huntington. A Terceira Onda São Paulo: Ed. Ática, 1994:21.
104 Fareed Zakaria. “The Rise of Illiberal Democracy” in Foreign Affairs, vol. 76, 1997.
105 Jorge Zaverucha. Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares Rio de Janeiro: Ed.
Civilização Brasileira, 1999 (no prelo).
106 Para uma visão distinta vide, Wendy Hunter. Eroding Military Power Chapel Hill: The University of
North Carolina, 1997. Na p. 23 ela escreve: “at the risk of exaggeration, conditions of the 1980s and
1990s have rendered the Brazilian military somewhat of a paper tiger”.
34
oposição assumir o poder. Pelo que foi aqui apresentado, não há indícios promissores de
que conseguiremos passar de um governo democrático para um regime democrático a
curto ou médio prazos. A longo prazo, como lembra Keynes, todos nós estaremos mortos.
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lasa98/Zaverucha.pdf
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