2 de jul. de 2020

Sarney, Collor, Itamar, FHC e as Prerogativas Militares (1985-1998) Jorge Zaverucha Universidade Federal de Pernambuco zav@npd.ufpe.br

Sarney, Collor, Itamar, FHC e as Prerogativas Militares (1985-1998) Jorge Zaverucha Universidade Federal de Pernambuco zav@npd.ufpe.br Prepared for delivery at the 1998 meeting of the Latin American Studies Association, The Palmer Hilton House Hotel, Chicago, Illinois, September 24-26, 1998 1 Sarney, Collor, Itamar, FHC e as Prerrogativas Militares (1985-1998) A principal essência de qualquer sistema de controle civil democrático é a minimização do poder militar - -Samuel Huntington. While a country may have civilian control of the military without democracy , it cannot have democracy without civilian control -- Richard H. Kohn Alfred Stepan sugeriu que a análise das relações civil-militares deveria ser, principalmente, função de duas variáveis: o grau e abrangência das prerrogativas militares; e o grau e nível de constestação militar às ordens civis. 1 Várias combinações entre prerrogativas e contestação podem surgir e a que melhor se adaptaria à realidade brasileira seria a existência de baixa contestação militar e altas prerrogativas militares (“x” na matriz 2x 2 abaixo). Prerrogativas High Low contestação high y z low x w Combinações: (high, High) = y = posição praticamente insustentável para líderes democráticos (high, Low) = z = posição insustentável para líderes militares (low, High) = x = “acomodação civil desigual” ou “golpe branco” (low, Low) = w = controle civil democrático sobre os militares Por definição, altas prerrogativas implica a inexistência de facto, assim como de jure, de controle civil democrático sobre os militares. Tal situação Stepan define como “acomodação civil desigual” e pode gerar instabilidade política, bastando que o governo civil decida erradicar tais estruturas militares latentes. Caso não queira correr riscos e opte pela permanência das altas prerrogativas, configura-se o que Stepan2 chama de “golpe 1 Rethinking Military Politics Princeton: Princeton University Press, 1988:99-102. 2 Ibid., p. 101. 2 branco”, redundando na existência do que ele chama de um sistema não-democrático.3 Nese sentido, a ausência de contestação militar não significa, necessariamente, que os militares voltaram aos quartéis. Pelo contrário, pode ser uma evidência da sua significativa participação no processo de tomada de decisões políticas, como espero que as prerrogativas dos governos Sarney, Collor, Itamar e FHC venham evidenciar. Mas o que vem a ser prerrogativa militar? Prerrogativas militares “referem-se àquelas áreas onde, desafiados ou não, os militares, como instituição, assumem ter adquirido o direito ou privilégio, formal ou informal, de governar tais áreas, de ter um papel em áreas extramilitares dentro do aparato de estado, ou até mesmo de estruturar o relacionamento entre estado e a sociedade política ou civil”. 4 Portanto, o que se espera de um país democrático é a erradicação de tais prerrogativas, caso se queira estabelecer um controle civil democrático sobre os militares, e, consequentemente, um regime democrático. Até porque altas prerrogativas militares se correlacionam com alto grau de autonomia castrense, no sentido dos militares serem capazes de impor, frequentemente, seus interesses aos civis via canais legais ou quando ocorram resistências. Decorridos quase quatro anos do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), proponho-me a analisar o grau e a abrangência das prerrogativas militares existentes em seu governo e nos anteriores, a saber: José Sarney (JS), Fernando Collor de Mello (FC), Itamar Franco (IF). O período contemplado vai de 1985 a setembro de 1998. São, portanto, treze anos de relações civil-militares espaço suficiente para se tirar conclusões. Na tabela abaixo, “S” significa sim, ou seja, existe a prerrogativa militar e “P” representa a palavra prerrogativa. _______________________________________________________________________ Tabela de Prerrogativas Militares JS FC IF FHC ________________________________________________________________________ P. 1- Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem S S S S P. 2- Militares controlam principais agências de inteligência; S S S S parca fiscalização parlamentar P. 3- Militares da ativa ou da reserva participam do gabinete governamental S S S S P. 4- Inexistência do Ministério da Defesa S S S ? P. 5- Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre assuntos de defesa nacional S S S S P. 6- Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais S S S S 3 Defino esta situação como “democracia tutelada” ou “tutela amistosa”. Brian Loveman e Patrice McSherry, respectivamente, usam as expressões “democracia protegida” e “democracia guardiã”. Brian Loveman. “’Protected Democracies’ and Military Guardianship: Political Transitions in Latin America, 1978-1993” in Journal of Interamerican Studies and World Affairs, vol. 36, no. 2, 1994:105-89; J. Patrice McSherry. “Military Political Power and Guardian Structures in Latin America” in Journal of Third World Studies, 1995:80-119; Jorge Zaverucha. Rumor de Sabres São Paulo: Ed. Ática, 1994:10. 4 Ibid. p. 93. 3 P. 7- Polícia Militar sob parcial controle das Forças Armadas S S S S P. 8- Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas S S S S P. 9- Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados por tribunais comuns S S S S P. 10- Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares mesmo que cometam crimes comuns ou políticos S S S S P. 11- Militar tem o direito de prender civil ou militar sem mandado judicial e sem flagrante delito S S S S P. 12- Autoridade extrajudicial e legislativa pode ser exercida S S S S pelos militares P. 13- Potencial para os militares se tornarem uma força independente de execução durante intervenção interna S S S S P. 14- Forças Armadas são as principais responsáveis pela segurança do presidente e vice-presidente da República S S S S P. 15- Presença militar em áreas de atividade econômica civil (indústria espacial, navegação, aviação etc.) S S S S P. 16- Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar contas totalmente ao Tesouro S S S S P. 17- A política salarial do militar é similar a existente durante S S S S o regime autoritário Análise das Prerrogativas Militares P. 1) Forças Armadas garantem os poderes constitucionais, a lei e a ordem O Artigo 142 da Constituição confere às Forças Armadas a atribuição de garantir os poderes constitucionais (Executivo, Legislativo e Judiciário), a lei e a ordem. A noção de ordem e desordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in)desejada de determinados indivíduos. Além do mais, tal artigo não especifica se a lei é constitucional ou ordinária, se a ordem é política, social ou moral nem quem define quando é que a lei e a ordem foram violadas.5 Basta determinada ordem do Executivo ser considerada ofensiva à lei e à ordem, para que os ministros militares possam constitucionalmente não respeitá-la, mesmo sendo o Presidente da República o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Há uma espada de Dâmocles fardada pairando sobre a cabeça dos poderes constitucionais. Tais poderes estão sendo constitucionalmente lembrados de que eles 5 Para uma lista de artigos constitucionais de teor autoritário vide Jorge Zaverucha. “The 1988 Brazilian Constitution and its Authoritarian Legacy: Formalizing Democracy While Gutting its Essence” in Journal of Third World Studies, vol. XV, no.1, 1998:105-124. 4 podem ir até aonde as Forças Armadas acharem conveniente. Por conseguinte, em vez de tais poderes garantirem o funcionamento das Forças Armadas, são elas, em última instância, que garantem o funcionamento dos referidos poderes. Afinal, elas são as guardiãs da pátria. Em caso de confronto entre os poderes constitucionais, os militares arbitram a resolução do mesmo, na qualidade de poder moderador. Estabeleceu-se uma Constituição e foi entregue, precisamente aos que são mais tentados a violá-la, a tarefa de manter a sua supremacia.6 Uma contradição em termos. Não é à toa que as Constituições Pinochetista e Sandinista também conferem às Forças Armadas o papel de guardiãs da lei e da ordem. Alguns exemplos atestam o papel de guardiães das Forças Armadas. Um dos mais importantes é descrito pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães. Ele explicou porque não disputou com José Sarney o direito de substituir o Presidente Tancredo Neves, que faleceu antes de tomar posse: “Eu não fui ‘bonzinho’ coisa nenhuma. Segui as instruções dos meus juristas. O meu ‘Pontes de Miranda’ estava lá fardado e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney”. 7 O “Pontes de Miranda” chamava-se general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney. O general Leônidas não ficou nesta cutucada. Por exemplo, o coronel do Exército, Sebastião Ferreira Chaves, ex-secretário de Segurança Pública do governador paulista Abreu Sodré nos anos 70, constatou que a Polícia Militar agia com base na violência e a Polícia Civil perdera a capacidade de investigação. Diante disto, tentou convencer o deputado Ulysses Guimarães, presidente do Congresso Nacional, a mudar o sistema policial na Constituição de 1988, sugerindo, dentre outros, a extinção das Polícias Militares. O deputado disse ao coronel “que já não podia mudar nada porque tinha um compromisso com o general Leônidas”. 8 Alguns outros exemplos relevantes são: 1) Os constituintes de 1988 votaram, sob ameaça de uso de tanques, a manutenção do presidencialismo e cinco anos de mandato para Sarney; 2) As Forças Armadas foram consultadas sobre o impedimento de Collor e deram sua anuência à assunção de Itamar Franco. O novo presidente terminou nomeando nove militares para o seu ministério, cifra recorde no presidencialismo civil brasileiro; 3) As Forças Armadas negociaram a saída do ministro da Justiça, Maurício Corrêa, sob o risco de deposição do próprio presidente Itamar Franco. Corrêa teria, presumidamente, tomado uns goles de álcool a mais e comportado-se com falta de decoro no sambódromo do Rio de Janeiro; 4) Diante do grave quadro sócio-econômico, inclusive com uma inflação galopante, Itamar Franco ventilou a possibilidade, tal como Alfonsín, de entregar o poder sem esperar pelo término do mandato. Antes de tomar a decisão de antecipar a eleição presidencial, Itamar reuniu-se com os ministros militares. Estes se opuseram a idéia e o Presidente não mais falou no assunto.9 Garantido pelos militares não havia porque sucumbir às pressões políticas adversária; 6 Eugenio Zaffaroni. Poder Judiciário São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995:37. 7 Ronaldo Costa Couto. Tancredo: Casos e Acasos Rio de Janeiro: Record, 1997:179. Pontes de Miranda, era um famoso constitucionalista brasileiro. 8 Hélio Contreiras. Militares Confissões Rio de Janeiro: Mauad Editorial, 1998:55. 9 “Militares rejeitam antecipação” in Folha de S. Paulo, 2 de outubro de 1993. 5 5) Logo em seguida, ainda em outubro estourou o chamado “Escândalo do Orçamento” envolvendo a Comissão Mista do Orçamento que teria alguns de seus membros envolvidos em um esquema criado para desviar dotações orçamentárias em proveito próprio. Foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, presidida pelo deputado-coronel Jarbas Passarinho. Voltaram as pressões para que Itamar fechasse o Congresso e “fujimorizasse” o país.10 No mês seguinte, o deputado Aloisio Mercadante (PT) e o senador José Bisol (PSB) acharam ter descoberto uma conexão entre a Empresa Odebrecht e atuação de certos deputados. Preocupados com a repercussão do fato sobre um Congresso já fragilizado, os dois deputados procuraram Passarinho. Ele relatou a descoberta a Itamar, e logo em seguida conversou com o ministro do Exército. O general Zenildo Lucena comunicou querer a apuração de todos os casos de corrupção e que o Exército estaria pronto para intervir se necessário fosse.11 O alerta de Passarinho fez com que os senadores Pedro Simon e José Bisol conversassem com Itamar; o deputado José Genoíno contactasse um antigo interlocutor, o Almirante Mário César Flores, diretor da Secretaria de Assuntos Estratégicos, e que o deputado Mercadante procurasse o ministro do Exército antes de dialogar com o Congresso. O deputado alegou que fora defender a democracia ante o general, legitimando a participação política dos militares em assuntos domésticos.12 Mercadante temeu um golpe de estado pudesse soterrar a tão sonhada chance de Lula, o grande favorito nas pesquisas, chegar à presidência. Através de documentos, mostrou ao general que não havia qualquer parlamentar do PT envolvido em negociatas. O então governador Antonio Carlos Magalhães (ACM) também concordou com Mercadante no papel das Forças Armadas de “protetoras” da democracia. Em solenidade comemorativa ao Dia do Marinheiro, em dezembro de 1993, quando a crise se amainava, ACM declarou: “Os militares são os guardiães (grifei) das instituições brasileiras, e… têm de ser os guardiães (grifei) da Constituição que precisa ser modificada para atender os anseios do país.” 13 Atualmente, ACM preside o Senado e é o parlamentar detentor da mais alta comenda do Exército; 6) Durante as greves das Polícias Militares (junho/agosto de 1997), as Forças Armadas garantiram o funcionamento dos poderes constitucionais. Mas, ao deixarem de reprimir os militares grevistas, embora a Constituição proíba a greve de militares, fizeram com que os governadores de estado, reféns de suas polícias, concedessem, via intimidação, aumento salarial. Enquanto isto, os funcionários públicos civis, que também reivindicavam aumento, continuaram com seus salários congelados; 10 Para uma visão distinta vide Guillermo O’Donnell. “Illusions and Conceptual Flaws” in Journal of Democracy, vol. 7, no. 4, 1996:168. Ele diz que não houve rumor nem receio de intervenção militar durante a crise da Comissão do Orçamento. No dia 5 de janeiro de 1994, o Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, durante programa televisivo revelou a existência de pressões cívico-militares para o fechamento do Congresso. Foi inclusive convocado a depor no Congresso. José Carlos Ferreira, amigo particular de Itamar e com boas conexões na caserna teria sido um dos articuladores do auto-golpe. Vide Gilberto Dimenstein & Josias de Souza. A História do Real. São Paulo: Ed. Ática, 1996:111. 11 Luiz Costa Porto. “A casa do espanto” in Veja, 8 de dezembro de 1993. 12 Elio Gaspari. “As vivandeiras do PT” in Veja, 8 de dezembro de 1993. 13 “Brasileiro tem que votar e pagar impostos” in Jornal do Brasil, 14 de dezembro de 1993. 6 7) No dia 10 de dezembro de 1997, Fernando Henrique Cardoso participou de um almoço de confraternização com 150 oficiais-generais, tendo como anfitrião o ministro do Exército, general Zenildo Lucena. Este, em seu discurso, lembrou a FHC que os militares há muito tempo vem dando sua cota de sacrifício. Lucena acrescentou que ao assumir as restrições impostas ao setor público, as Forças Armadas se colocam como “fator importante, senão decisivo (grifei), para o respaldo das políticas adotadas pelo governo”. 14 FHC entendeu o recado do general, e respondeu dizendo que havia determinado ao ministro da Fazenda pressa nos estudos para a concessão integral aos militares da Gratificação de Condições Especiais de Trabalho (GCET), além de ter prometido recursos para o reaparelhamento das três forças. P. 2) Militares controlam as principais agências de inteligência; parca fiscalização parlamentar Não há no Brasil linhas que demarquem as atividades de inteligência doméstica e externa e as atividades de inteligência civil e militar. Quem fazia a inteligência externa durante o regime militar era a 2a. Seção do Estado-Maior do Exército que, por sinal, tinha também uma seção de inteligência doméstica. Com a radicalização ideológica, em 1967, foi criado o Centro de Informação do Exército (CIE), para combater a luta armada.15 A guerrilha foi destruída mas o CIE continua fazendo espionagem política. A presença do CIE na coleta de informações fora do âmbito da respectiva força, é confirmada pelo artigo 5o. da Portaria No. 323 de 31 de março de 1981 que estabelece a competência do CIE nos seguintes termos: “orientar, coordenar e desenvolver atividades de informações internas e de segurança interna, bem como de contra-informações do sistema de informações do exército. Assessorar o ministro, nos assuntos de informações internas e nos de contra-informações”. O chefe do CIE, general Cláudio Figueiredo, explicou a diferença entre a antiga e a nova CIE: “A diferença é que antes nós participávamos de operações e hoje trabalhamos apenas para assessorar o processo decisório”. 16 Para melhor exercer este assessoramento, o Exército criou, em julho de 1994, a Escola de Inteligência Militar (EsIMEx). Ativada no ano seguinte, a Escola funciona junto ao CIE. Isto sem falar nos serviços de inteligência das Polícias Militares (P-2) que continuam, tal qual durante o regime militar, a fazer parte do sistema de informações do Exército, conforme dispuserem os Comandos Militares de Área, nas respectivas áreas de jurisdição (Decreto No. 88.777, de 30 de setembro de 1983). Isto significa, que as PMs são obrigadas, por lei, a passar as informações coletadas através do chamado “canal técnico” ao ministro do Exército. Ou seja, o ministro possui informações sobre o próprio governador de Estado. E mais, não há qualquer controle das Assembléias Legislativas Estaduais sobre as P-2. Há, além do mais, policiais militares trabalhando em quartéis do Exército à disposição do mencionado sistema de informações. 14 “Militares também têm o seu dia” in Correio Braziliense, 11 de dezembro de 1997. 15 Maria Celina D’Araújo, Glaucio Ary Dillon & Celso Castro (eds.). Anos de Chumbo Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994:56. 16 “Fax Brasília” in IstoÉ, 6 de agosto de 1997. 7 Um notório caso foi a revelação, em setembro de 1996, de informes da P-2 do Distrito Federal (DF) que espionava sindicalistas, ativistas do MST e até membros do Partido dos Trabalhadores, o partido político do governador do Distrito Federal, Cristóvam Buarque. Esses relatórios eram entregues dentre outros, ao CIE, às áreas de inteligência do Comando Militar do Planalto e do Comando Naval de Brasília e à Secretaria de Inteligência da Aeronáutica.17 No final de abril de 1996, a espionagem militar se fez presente durante as manifestações populares de rua, no Rio de Janeiro, contra a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Um agente disfarçado de cinegrafista e militante filmou manifestantes. O policial militar infiltrado estava de calça jeans e camisa estampada com tons amarelos. Como os partidos de esquerda se posicionaram contra a privatização, o agente colou na blusa os dizeres: “Não vamos deixar o ouro na mão do imperialismo. Contra a entrega da Vale!”. 18 O detalhe é que a realização da manifestação pública fora aprovada pelas autoridades competentes. Mais recentemente, o governador do Ceará, Tasso Jereissati, manteve, durante o mês de julho de 1997, agentes do serviço de inteligência do Exército e da Polícia Militar infiltrados na Associação de Cabos e Soldados e no Sindicato de Policiais Civis.19 No sertão pernambucano, agentes do serviço de inteligência do Exército foram infiltrados nas quadrilhas de assaltantes e narcotraficantes que aterrorizam os habitantes da região.20 A extinção do Serviço Nacional de Informações e a criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) não alterou o quadro de predomínio militar nas atividades de inteligência no país. Tanto Collor quanto Itamar, sem falar no Congresso, demonstraram falta de interesse na criação de mecanismos institucionais que permitam um melhor controle parlamentar sobre as atividades da inteligência no país. FHC achando pouco a existência dos serviços de inteligência militares resolveu, em abril de 1996, remilitarizar a inteligência civil. O Presidente, inicialmente, retirou do controle da SAE a Subsecretaria de Inteligência (SSI) passando-a para a direção de um general da reserva que ficava sob a supervisão do Secretário-Geral da Presidência da República. Em seguida, entregou a direção do SSI a um oficial superior da ativa, sem consultar o Congresso.21 Trata-se do General Alberto Cardoso, chefe da Casa Militar da Presidência da República, que reportase diretamente ao Presidente da República.22 Salvo engano, caso único no mundo democrático. A SSI ocupa uma área de 16 hectares em Brasília, afora suas ramificações estaduais, e o General Cardoso chefia uma equipe de 900 agentes e administra uma verba de R$ 24 milhões de reais.23 Detalhe: a SSI não está submetida a controle do Congresso. Além de espionar as atividades do Movimento Sem-Terra,24 as insatisfações dentro das Polícias Militares, o general Cardoso investiga a Polícia Federal (PF) e fez pressão para 17 Luis Alberto Weber. “ Ninho de Arapongas” in Correio Braziliense, 21 de setembro de 1996. 18 “PM infiltrado filma manifestação no Rio” in Folha de S. Paulo, 30 de abril de 1997. 19 Manoel Fernandes. “Enfim, derrotados” in Veja, 6 de agosto de 1997. 20 Inácio França. “Serviço de Inteligência no Sertão” in Diário de Pernambuco, 1 de novembro de 1997. 21 O general-presidente Castelo Branco encaminhou, em 1964, ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de criação do SNI dispondo sobre a necessidade de submeter o nome de seu Chefe ao Senado Federal. 22 “Civilians lose the intelligence battle” in Brazil Report, 2 de maio de 1996. 23 “O SNI de FHC” in Veja, 18 de fevereiro de 1998. 24 “General acompanha saques” in Diário de Pernambuco, 18 de junho de 1998. 8 tirar seu diretor-geral. Um dos motivos seria o fato do delegado Vicente Chelloti ter cortado as comunicações entre o serviço de inteligência da PF e os das Forças Armadas.25 Por outro lado, a Medida Provisória No. 813, de 1 de janeiro de 1995, anunciou que seria criada a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sob a forma de autarquia civil. Como o Congresso Nacional sinalizou não estar disposto a dar um cheque em branco para o Executivo criar a Abin ao seu alvitre, FHC , através da Medida Provisória No. 1.090, de 25 de agosto de 1995, anunciou que “no prazo de 180 dias contados da publicação desta Medida Provisória, o Poder Executivo encaminhará ao Congresso Nacional projeto de Lei dispondo sobre a criação, estrutura, competências e atribuições da Agência Brasileira de Inteligência.” Ao depor no Congresso, no dia 21 de maio de 1996, o general Cardoso afirmou “que os ministérios militares produzem a inteligência estritamente militar, voltada para suas missões”. Contradizendo o general Cardoso, o cabo do Exército, José Alves Firmino, revelou, em julho de 1997, que usou crachá falso de jornalista para fazer espionagem política no Congresso Nacional, para o Exécito, além, dentre outros, de ter “acompanhado” o 10.o Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), realizado em agosto de 1995, em Vitória do Espírito Santo. Firmino apresentou material mostrando a espionagem militar atuando, em 1993, no 8o. Encontro Nacional do PT; em 1993, no XLIII Congresso Anual da União Nacional dos Estudantes (UNE); em 1995, durante manifestação na qual a UNE, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e o Sindicato dos Petroleiros (SINDIPETRO) protestaram, em frente ao Congresso Nacional, contra a quebra do monopólio do petróleo etc. Dentre a documentação trazida a público pelo cabo Firmino está a Portaria No. 081, de 7 de novembro de 1995, que aprovou diretriz para a criação das Companhias de Inteligência (Cia Intlg). A nova agência de inteligência nasceu e se mantém sem o controle do Congresso de suas atividades. Até o momento, nenhuma Comissão do Congresso decidiu convocar o ministro do Exército para vir prestar esclarecimentos sobre as violações cometidas pelo cabo Firmino e seu colegas militares à Constituição Federal. De acordo com a documentação revelada, os militares assim agiram por terem recebido ordens burocráticas superiores. A sociedade precisa saber, inclusive se os atos de espionagem política foram feitos à revelia dos Presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso ou se tais atos tiveram a chancela presidencial. A documentação supra citada encontra-se de posse da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e já foi entregue ao ministro da Justiça.26 Finalmente, no dia 19 de setembro de 1996, o Projeto de Lei No. 3.651 foi enviado pelo Executivo à Câmara de Deputados. O mesmo institui o Sistema Brasileiro de Inteligência (SBI) e cria a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão de assessoramento direto ao Presidente da República e órgão central do SBI. O projeto tem a virtude de propor que a fiscalização externa da Abin seja feita por Comissão Mista do Congresso. Contudo, inquieta saber que ficou assegurada a presença militar no referido Projeto de Lei. É que a execução da Política Nacional de Inteligência, fixada pelo Presidente da República, será levada a efeito pela Abin, sob a supervisão da Câmara de 25 Policarpo Jr. “Exército quer a PF” in Veja, 1 de julho de 1998. 26 Agradeço ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos, deputado Pedro Wilson, o acesso aos referidos documentos. 9 Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo. Acontece que dos nove integrantes desta Câmara, nada menos que cinco são militares: Ministros de Estado da Marinha, Exército, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças Armadas e Chefe da Casa Militar da Presidência da República! Afora isto, o referido projeto não separa o serviço de informação civil dos organismos militares. O Congresso solicitou modificações e aguardase nova proposta do Executivo. P. 3) Militares da ativa ou da reserva participam do gabinete governamental Durante o governo Sarney, seis militares tiveram asssento no gabinete governamental: ministros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Estado-Maior das Forças Armdas (Emfa) e Casa Militar. Collor retirou o status de ministro do chefe da Casa Militar e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, permitindo, todavia, que os mesmos tivessem assento em seu gabinete. Como havia extinto o SNI, cinco militares passaram a fazer parte do gabinete governamental. Itamar manteve os cinco militares e adicionou mais quatro militares em ministérios de natureza civil. Tal como no governo Collor, cinco militares têm voz e voto no gabinete de FHC. Nunca um ministro do Exército, Marinha ou Aeronáutica foi exonerado por qualquer dos quatro presidentes civis.27 O atual Presidente, extinguiu o cargo de ministro-chefe da Casa Militar, criando o cargo de Natureza Especial de chefe da Casa Militar com prerrogativas, garantias e vantagens e direitos equivalentes ao de ministro de estado. Os poderes conferidos ao general Alberto Cardoso vão muito além do que necessita um chefe de Casa Militar. O referido general dirige a Subsecretaria de Inteligência (SSI), órgão civil; é o encarregado do Governo, junto ao Congresso, pela elaboração do texto que servirá para a criação do Sistema Brasileiro de Inteligência (SBI); negociou em nome do Governo, no lugar do Ministro da Justiça, o fim da greve das Polícias Civis e Militares em julho de 1997; coordenou os trabalhos da elaboração de uma nova Política de Defesa Nacional; faz parte do grupo que estuda a criação do Ministério da Defesa; coordenou os estudos sobre a criação de uma Secretaria Nacional Antidrogas e da Coordenação Conjunta do Sul do Pará;28 e dirigiu, por curto espaço de tempo, a recém-criada Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) que está subordinada a própria Casa Militar.29 O general Cardoso, portanto, está envolvido tanto em atividades de 27 Apenas o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, brigadeiro Camarinha, foi exonerado pelo presidente Sarney com o aval dos três ministros militares. 28 Dentre os órgão que fazem parte desta Coordenação estão a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e a Secretaria de Segurança Pública do Pará e o Exército. As ações serão coordenadas pelo general Edson Sá Rocha, comandante da 23a. Brigada de Infantaria da Selva, com poderes para interferir até na elaboração da reforma agrária Cf. “Governo tem plano para o Sul do Pará” in Jornal do Brasil, 4 de maio de 1998 e “Éxército agora é quem manda no Sul do Pará” in Jornal do Commercio, 7 de maio de 1998. 29 Monica Gugliano. “FH assina decreto que cria a Secretaria Nacional Antidrogas” in O Globo, 20 de junho de 1998. Em julho de 1998, FHC anunciou um civil para dirigir a Senad que ficará, todavia, subordinada ao general Alberto Cardoso. Também foi anunciado a extinção do Conselho Federal de Entorpecentes, de composição exclusivamente civil. Em seu lugar surgirá o Conselho Nacional Antidrogas da qual fará parte o Estado Maior das Forças Armadas (EMFA). 10 inteligência civil, de defesa externa, de segurança pública e de combate ao tráfico de drogas. P. 4) Inexistência do Ministério da Defesa Nenhum dos quatro últimos presidentes civis conseguiram criar o Ministério da Defesa. FHC vem tentando desde o início de seu governo, tendo incumbido o ministrochefe do Emfa, general Benedito Onofre Leonel, desta missão. Chegou a mudar uma regulamentação que impedia um militar ao passar para a reserva ficar à frente do Emfa, com o intuito de fazer com que o general Leonel continuasse no cargo e na sua missão. Uma proposta lançada, em 1995, pelos militares foi a da criação do Ministério da Defesa (MD) sem que isto implicasse o fim dos ministérios militares. O Presidente não aceitou, e as negociações continuaram. Bastou que os EUA anunciassem que a Argentina será seu sócio militar extra-Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), imediatamente seguida da declaração, no dia 17 de agosto de 1997, do presidente Carlos Menem de que o lugar dos países latinoamericanos no Conselho de Segurança da ONU deveria ser rotativo, e não fixo para o Brasil, como desejava a diplomacia verde-amarela, para que o tema do Ministério da Defesa voltasse às páginas dos jornais. A ocasião escolhida por FHC foi a reunião do Grupo do Rio em Assunção. No dia 24 de agosto de 1997, o presidente brasileiro anunciou a criação do Ministério da Defesa. Foi uma clara manobra política para favorecer a candidatura do Brasil a um acento no Conselho de Segurança da ONU, já que seria difícil explicar ao mundo como um país com vaga neste Conselho aspira decidir sobre questões de segurança internacional quando o presidente da República não consegue fazer que seus subordinados cumpram sua determinação de criar o referido ministério. O general Benedito Leonel, anunciou, em maio de 1998, perante a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara de Deputados, a disposição do governo federal de criar o Ministério da Defesa até dezembro de 1998. Contudo, não serão extintos os ministérios do Exército, Marinha e Aeronáutica. Caso prevaleça tal anúncio, estaremos diante de um arranjo institucional inédito no mundo: Ministério da Defesa com militares com status de ministro de Estado! “A estrutura organizacional nós já temos, mas é preciso prosseguir com cuidado para evitar traumas”, afirmou Leonel salientando que a unificação das três forças só acontecerá no final da implantação do novo ministério, que até o momento, não tem prazo para ser concluído.30 FHC continua tentando acabar com a figura de ministros militares também por que tem um projeto de implantação do Parlamentarismo. Ficaria muito estranho, que numa queda de gabinete, todos os ministros caíssem com exceção dos militares. Por isso mesmo, espera-se que sejam criadas secretarias para cada Força não se sabendo se tais chefes militares terão ou não status de ministro.31 Mesmo que consiga criar um Ministério de Defesa “puro”, é razoável se esperar que os “secretários” militares continuarão a ser, 30 “FHC criará até dezembro o Ministério da Defesa”, Jornal do Commercio, 28 de maio de 1998. 31 Caso tais chefes mantenham o status de ministro como já ocorre com o general-ministro da Casa Militar, a Prerrogativa no. 3 fica inalterada. 11 de fato, o elo político entre o Presidente e as três Forças. Em outras palavras, o real fator de poder. O novo ministro da Defesa terá, provavelmente, a limitada atribuição de centralizar o orçamento das Forças Armadas, comprar armas e definir a política de defesa do Brasil. Frise-se que mesmo tendo prometido às Forças Armadas investir, até 2015, R$ 4 bilhões em reaparelhamento e modernização de equipamentos, FHC ainda não foi capaz de anunciar o fim dos ministros militares.32 A notícia veio à luz no momento em que as contas públicas tiveram o pior resultado desde 1991 e o governo alegava não ter verbas para enfrentar uma das piores secas da história; para aumentar o salário do funcionalismo público congelado há quase quatro anos; para evitar o sucateamento das universidades federais que ficaram com suas atividades paralisadas por mais de dois meses; e para impedir o reinício da epidemia de dengue. Os militares queixam-se, com razão, da falta de interlocutores no Congresso. Em parte, isto se deve ao fato da maioria dos partidos políticos não contemplar em seus programas, as relações civil-militares. Contudo, o elevado grau de autonomia política e administrativa dos ministérios militares, dificulta a interação deles com o Congresso. Com um Ministério da Defesa enfraquecido este tipo de problema dificilmente será atenuado. Há um outro motivo para explicar a oposição castrense ao fim dos ministérios militares. É que o artigo 91 da Constituição estipula a presença de ministros militares como membros natos do Conselho de Defesa Nacional, além de fazerem parte da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden) subordinada à Presidência da República. Como estamos em setembro de 1998, e não sabe-se a data oficial da sua criação, o que ocorrerá com os ministros militares, nem quem será o novo ministro (civil ou militar), optei por colocar na tabela de prerrogativas “?”. P. 5) Falta de rotina legislativa e de sessões detalhadas sobre assuntos de defesa nacional Tanto a Câmara dos Deputados como o Senado possuem Comissões de Defesa Nacional que, todavia, são pouco disputadas pelos parlamentares. Visando garantir o quórum, a Comissão de Defesa Nacional permite que seus membros façam parte de outras comissões, uma vez que aquela não rende votos aos parlamentares. Uma grande parte de seu componentes não entende do assunto e exerce muito mais um papel formal do que efetivo. Segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres, O Brasil recuperou, em 1995, a posição de maior importador de produtos militares da América do Sul.33 De acordo com o mesmo instituto, os gastos militares no governo FHC, em milhões de dólares a preços de 1995, vem crescendo a olhos vistos. Passou de 8.741 em 1995 para 10.377 em 1996 e 11.247 em 1997.34 Isto não tem gerado maiores debates no Congresso, embora, a última guerra brasileira tenha sido lutada contra o Paraguai no século passado. 32 Leandro Fortes. “Reaparelhamento das Forças Armadas custará 4 bi” in O Globo, 5 de maio de 1998. 33 Sandra Brasil. “Tratamento vip” in Veja, 4 de fevereiro de 1998. 34 Imogen Mark & Jonathan Wheatley. “Weapons makers lured as national pride pushes South America to rearm” in Financial Times, 25 de junho de 1998. 12 A omissão do Congresso não se limita apenas a compra de armas. Por exemplo, no dia 26 de novembro de 1996, o presidente em exercício, Marco Maciel, autorizou o Exército a reativar um antigo projeto, que fora engavetado por Collor devido a restrições orçamentárias: a construção de um reator de gás-grafite. O ato de Maciel, atropelou três artigos da Constituição, a saber: artigos 21, 49 e 225. O primeiro diz que “toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional”. O segundo diz ser da competência exclusiva do Congresso Nacional “aprovar as iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares”. E o terceiro estipula que “as usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas”. Flagrante violação da Constituição não mereceu uma sessão sequer das referidas comissões para discutir o tema. No dia 8 de abril de 1997, o Conselho de Defesa Nacional frustrou a pretensão do ministro da Aeronáutica de comprar, sem licitação, 14 aviões F-5 usados além de radares para 41 aeronaves da FAB. FHC por meio do Decreto No. 2.295, de 4 de agosto de 1997, resolveu o impasse. Autorizou não só a Aeronáutica, mas o Exército e a Marinha a comprar equipamentos e contratar obras e serviços técnicos especializados na área de inteligência sem licitação, desde que justifiquem que as aquisições “colocam em risco objetivos de segurança nacional”. O Presidente, portanto, ignorou o Congresso, e as Comissões de Defesa Nacional. Logo após o ataque especulativo contra o Real, em outubro de 1997, provocada pela crise asiática, o governo lançou 51 medidas com vistas a diminuir os gastos do governo e aumentar a arrecadação. O pacote de medidas propôs cortes em bolsas de estudo, em verbas culturais e nas aposentadorias de deficiente físicos e idosos. Propôs aumento do preço da gasolina, da contribuição para o Imposto de Renda, e dos lucros em aplicações financeiras etc. No entanto, no dia 11 de novembro de 1997, o Senado aprovou um empréstimo, junto ao Brazilian American Merchant Bank, de R$ 573 milhões para a compra de armas e equipamentos para o Exército. Um empréstimo desta monta foi aprovado apressadamente sem, mais uma vez, ter sido contemplado pelas Comissões de Defesa Nacional e no, caso, da Comissão de Fiscalização.35 Outros países afetados pela crise econômica, como a Malásia, Tailândia e a Coréia do Sul (em estado de guerra com a Coréia do Norte) cancelaram ou adiaram as compras de equipamento militar.36 No final de 1997, veio à luz a notícia de que a Marinha compraria 23 caças Skyhawk A-4, projetados em 1952, para equipar o porta-aviões Minas Gerais, comprado em 1956, e que anda a apenas 25 nós de velocidade. O Decreto No. 55.627, de 26 de janeiro de 1965, assinado pelo Presidente-General Castello Branco, determinou que somente a Aeronáutica poderia operar aviões com asas fixas. A Marinha alega que a Lei Complementar No. 69 de 1991, a permitir adquirir tais aviões. Discussões à parte, ressalto: a) que a verba de R$ 70 milhões foi retirada da Marinha de seu próprio orçamento sem consultar o Congresso; b) durante o governo Collor os ministros da Marinha e Aeronáutica haviam decidido que a Marinha poderia 35 “ Senado aprova empréstimo para aparelhar Exército” in O Globo, 12 de novembro de 1997. 36 “Notas internacionais” in Veja, 28 janeiro de 1998. A Tailândia adiou a compra de oito caças americanos FA-18 por U$ 400 milhões; a Coréia do Sul fez o mesmo com quatro aviões-radares Awacs e a Malásia cancelou compras de U$ 600 milhões, incluindo helicópteros e carros de combate. 13 adquirir aviões, mas os mesmos seriam operados e mantidos pela Força Aérea Brasileira., embora sob o comando e controle direto da Marinha. Seriam aviões de esclarecimento de longo alcance baseados não em porta-aviões, e sim em bases aéreas ao longo do litoral.37 A Marinha, portanto, mudou sua orientação e comunicou o fato consumado ao Presidente da República. Tenta repetir o que fez no início da década de 60, quando procurou furar o bloqueio da Aeronáutica ao comprar pequenos aviões suíços.38 Certa ou errada a nova doutrina, ela foi tomada à revelia do Congresso. O presidente da Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia disse que iria convocar o ministro da Marinha para explicar a compra. Em vão. Em julho de 1998, o Governo iniciou a militarização do combate às drogas que passará a ser comandado pelo Chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso. A recémcriada Secretaria Nacional Antidrogas, dirigida por um civil, ficou subordinada ao general. Afora isto, extinguiu-se o Conselho Federal de Entorpecente, de composição exclusivamente civil, e surgiu o Conselho Nacional Antidrogas, do qual faz parte o Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa). Os serviços de inteligência das Forças Armadas passam a participar do sistema e tropas militares serão usadas em ações especiais contra narcotraficantes como a destruição de laboratórios clandestinos de refino de cocaína na Amazônia Legal.39 Até então, os militares só estavam autorizados a participar destas atividades dando apoio logístico à Polícia Federal. Esta mudança de orientação não foi discutida pelo Congresso. Segundo o general Cardoso, a mudança foi efetivada via orientação secreta feita por FHC, em fevereiro de 1996.40 Com base no artigo 144 da Constituição, o Presidente interpretou que não cabia a Polícia Federal a exclusividade na prevenção e repressão do tráfico. O que era secreto em fevereiro de 1996 tornou público em julho de 1998. P. 6) Ausência do Congresso na promoção de oficiais-generais Segundo a Constituição (Art. 84-III) cabe ao Presidente da República promover os oficiais-generais. Na prática, ocorre o seguinte: Os alto-comandos militares enviam, ao Presidente, a lista com os nomes e a ordem dos candidatos a promoção, e ele a chancela. É uma prática nos países do Primeiro Mundo e também na Argentina, Bolívia, Colômbia, Paraguai, Uruguai e Venezuela que tais promoções tenham de passar antes pelo crivo do Senado, como ocorre com, a nomeação do diretor-presidente do Banco Central e dos embaixadores. A Constituição Chilena de 1980 retirou do Senado o direito de opinar sobre promoções de oficiais-generais, fortalecendo o poder do então ditador Augusto 37 Antonio Carlos Pereira. “A autonomia da Marinha” in O Estado de S. Paulo, 13 de janeiro de 1998. 38 Vanda Celia. “Brasília- DF” in Correio Braziliense, 31 de janeiro de 1998; Janio de Freitas. “Mais naufrágios” in Folha de S. Paulo, 28 de janeiro de 1998. 39 Leandro Fortes. “Governo começa a militarizar combate às drogas” in O Globo, 18 de julho de 1998. 40 Ibidem. 14 Pinochet.41 Em governos democráticos, a participação do Senado constitui uma maneira de o Congresso controlar o Executivo e de este dividir responsabilidades com o Legislativo, principalmente pelo fato do Presidente ser constitucionalmente o comandante supremo das Forças Armadas. Caso o Presidente e o Senado discordem de algum nome indicado na lista de promoções, o Senado pode evitar o desgaste presidencial ao vetar o indicado. Evitar-se-ia um possível confronto institucional entre o Presidente e seus comandados, dentre eles os ministros militares, pois o Senado funcionou como uma espécie de amortizador de tensões políticas. Complicações políticas poderão surgir no dia em que um presidente quiser vetar algum nome proposto pelas Forças Armadas para promoção. Basta lembrarmos que o Alto-Comando sugeriu, ao então presidente Collor, a promoção do General José Luis Lopes, que comandou a invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), m Volta Redonda, redundando na morte de três trabalhadores. Collor aceitou a indicação.42 O candidato Luiz Inácio Lula da Silva havia prometido, caso vencesse a eleição, abrir um inquérito para investigar as circunstâncias das mortes durante a invasão da CSN. Caso o Alto-Comando tivesse sugerido tal promoção a Lula, estaria aberto um espaço para o surgimento de uma crise institucional. No dia 31 de março de 1997, FHC seguiu decisão de Collor e promoveu José Luis Lopes a general-de-exército. Lopes passou a dirigir o Comando Militar do Leste, um dos mais importantes do país, que tem a cidade de Volta Redonda em seu raio de atuação. No discurso de homenagem aos novos oficiais promovidos, FHC disse: “Nesse período [como Presidente], eu tenho constatado o acerto das indicações feitas pelos ministros, nas listas para minha escolha, as quais eu tenho avalizado integralmente”. 43 Na verdade, é desde 1985, que há um perfeito acerto nas indicações feitas pelos ministros militares. Nunca Sarney, Collor, Itamar e FHC deixaram de promover algum nome que estivesse na lista apresentada pelos militares. No dia 31 de março de1994, exatos 30 anos depois do início do regime militar, Itamar Franco promoveu o coronel-médico Ricardo Agnese Fayad a general-de-brigada. O Dr. Fayad vinha respondendo, desde 1988, a processo ético no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) acusado de ter dado apoio técnico às sessões de tortura praticadas entre 1969 e 1974 no Quartel General da Rua Barão de Mesquita. Fayad foi um dos poucos médicos do Exército a ser premiado com a Medalha do Pacificador além de ter recebido a medalha de Ordem do Mérito Militar.44 No dia 4 de abril de 1994, Fayad teve seu registro profissional cassado pelo Cremerj, em decisão unânime de seus 21 membros.45 No ano seguinte, o Conselho Federal de Medicina (CFM) confirmou a cassação do registro de Fayad. O militar conseguiu suspender a decisão na Justiça, baseando-se na Lei No. 6.681, de 1979, assinada pelo presidente-general João Figueiredo.46 A Lei impede ações disciplinares dos conselhos 41 Brian Loveman. “Misión Cumplida? Civil Militar Relations and the Chilean Political Transition” in Journal of Interamerican Studies ans World Affairs, vol. 33, no. 3, 199:66. 42 Jorge Zaverucha. “A Promoção” in O Estado de S. Paulo, 20 de maio de 1992. 43 Noticiário do Exército, 16 de maio de 1997. 44 “CRM cassa registro de general-médico,” Jornal do Brasil, 6 de maio de 1994. 45 “Conselho Regional cassa general-médico,” Folha de S. Paulo, 6 de maio de 1994. 46 A original é a Lei No. 5.526, de 5 de novembro de 1968, criada no auge da repressão política. 15 regionais de medicina contra médicos militares no exercício de suas atividades técnicoprofissionais decorrentes de sua condição militar. Ou seja, médico militar só está sujeito a ação disciplinar da diretoria de saúde de cada força. O CFM recorreu, teve seu primeiro recurso negado, e voltou a recorrer. No início de 1997, o general foi transferido do Rio Grande do Sul e assumiu a 1a. subdiretoria de Saúde do Exército, seu primeiro cargo em Brasília. Com a fusão da 1a. e 2a. subdiretorias, no dia 17 de fevereiro de 1998, FHC voltou a prestigiá-lo ao nomeá-lo para o cargo de Subdiretor de Saúde, o segundo cargo mais importante na área de Saúde do Exército.47 Um dos quatro princípios da política de Direitos Humanos do governo FHC é a ausência de pessoas ligadas à prática de torturas em sua equipe. Ante a reação de organizações de direitos humanos, do Cremerj e CFM, o Exército imediatamente divulgou nota.48 Nela, lê-se que o Exército “orgulha-se em contar com o Gen Fayad em suas fileiras. Esse sentimento é respaldado por uma destacada folha de serviços prestados pelo Gen Fayad, como médico e como militar.” O porta-voz do Presidência da República, disse que ele ao assinar a nomeação de Fayad não conhecia seu antepassado além de que o general estava exercendo cargo administrativo, e não de médico. Os militares descartaram o desconhecimento, lembrando que FHC já o promovera administrativamente em 1997.49 FHC decidiu somente reavaliar a nomeação depois da decisão da Justiça sobre o recurso. Só que não há prazo para a Justiça julgar tal recurso e o mesmo nada tem a ver com as denúncias contra o general, mas com a aplicação da Lei No. 6.681. Cada vez mais pressionado, FHC conseguiu que o general pedisse uma licença de seis meses sendo, por conseguinte, exonerado do cargo. O Presidente resolveu a crise mas sua autoridade foi arranhada: foi incapaz de mandar para a reserva um de seus subordinados. Para parecer que não houve punição, FHC negociou com o Alto Comando do Exército e com seu ministro a saída do cargo de Fayad através de uma licença de seis meses. E mais, nem ele nem o Congresso trataram de abolir a Lei No. 6.681, ou seja, novos Fayads poderão surgir. O preço pago por FHC para consegurir a licença de Fayad não demorou a surgir. O Presidente indicou para ministro do STM, o ex-deputado e tenente-coronel reformado João Baptista Fagundes, nada menos, que o advogado de Fayad no processo movido contra o Conselho Federal de Medicina.50 Até então a praxe das nomeações pertencia a OAB que, estranhamente, silenciou. O STM em reunião secreta, no dia 6 de maio de 1998, decidiu por ampla maioria que não iria empossá-lo. Momentos antes, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a indicação presidencial, faltando o plenário pronunciar-se. Irritado, o ministro do Exército mandou que 30 militares que trabalhavam para o STM, como 47 Solano Nascimento. “Governo promove militar da repressão” in Correio Braziliense, 7 de março de 1998. 48 Solano Nascimento. “Cresce a reação contra médico da repressão” in Correio Braziliense, 11 de março de 1998. 49 Rui Nogueira. “FHC mantém general acusado de tortura” in Folha de S. Paulo, 12 de março de 1998. 50 Fagundes chegou a defender os militares na Câmara de Deputados por ocasião dos debates sobre a bomba que explodiu no Riocentro, alegando que o atentado fora um “complô comunista”. Cf. Maurício Dias. “Informe JB” in Jornal do Brasil, 21 de abril de 1998 e 7 de maio de 1998. 16 motoristas e taifeiros, se apresentassem para novas funções. A OAB entrou, somente no dia 12 de maio, com um mandado de segurança contra a indicação de Fagundes no STF. Alegou-se que a indicação feria o artigo 142 da Constituição, que garante ao militar reformado os mesmos direitos e deveres inerentes às prerrogativas da patente. Isso implica que Fagundes continua mantendo relação de dependência com as autoridades militares, embora seja da reserva e esteja advogando. Além do mais, a indicação violava o artigo 128 da Lei Orgânica da Magistratura. Ela proíbe que parentes consanguíneos componham uma mesma turma, câmara ou seção. Fagundes é irmão de Aldo Fagundes vice-presidente do STM. A OAB conseguiu liminar suspendendo a nomeação temporária no dia seguinte. P. 7 e 8) Polícia Militar e Bombeiros sob parcial controle das Forças Armadas Quando ocorre um golpe de Estado, as Forças Armadas invariavelmente procuram exercer controle sobre as polícias. O Brasil não fugiu a regra. No dia 30 de dezembro de 1969, o general-presidente Emílio Médici editou o Decreto-Lei no. 1.072 extinguindo as corporações policiais civis locais e transformando seus integrantes em policiais militares. Os PMs passaram a ficar sujeitos ao trinômio: instrução militar, regulamento militar e justiça militar. Quando se dá a transição para a democracia, há uma preocupação dos novos governamentes em tirar a polícia do controle das Forças Armadas. O objetivo é tornar nítida a separação de suas funções: a polícia é responsável pela ordem interna, ou seja, pelos problemas de segurança pública, enquanto os militares federais se encarregam dos problemas externos, leia-se, da guerra. A Constituição de 1988 não procurou fazer essa separação; ao contrário dificultou-a. Pela primeira vez na história republicana, concedeu aos membros das Polícias Militares o status de servidor público militar, idêntico ao usufruído pelos integrantes das Forças Armadas. A Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão criado em 1967, continua vinculada ao Ministério do Exército e possui a tarefa de controlar parcialmente as PMs.51 O tipo de armamento, a localização dos quartéis, o adestramento das tropas e a coordenação das PMs continuam sob o controle da IGPM que, a partir da Constituição de 1988, perdeu o controle sobre a instrução das PMs. Emenda Constitucional apresentada, em setembro de 1997, por FHC ao Congresso, sugere a volta deste controle para as mãos da IGPM. As PMs continuam sendo regidas por preceitos disciplinares redigidos à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército, conforme o Decreto-Lei no. 667, de 2 de julho de 1969,52 e submetidas à Justiça Militar Estadual. Caso tal Emenda seja aprovada o trinômio-- instrução militar, regulamento militar, justiça militar-- estipulado 51 Até mesmo o Congresso de Honduras decidiu, em agosto de 1997, que a FUSEP, sob controle do Exército, depois do golpe de estado de 1963, deverá ser desmilitarizada, no espaço de oito meses, e se transformar numa polícia civil. 52 A prisão por transgressão disciplinar justifica-se em tempo de guerra e no controle de conscritos. Contudo, o lobby das Forças Armadas, durante a Constituinte de 1998, manteve tal dispositivo válido para período de paz atingindo, deste modo, oficiais de alta patente e praças profissionais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros. Vide Eliezer Pereira Martins. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade. São Paulo: Ed. de Direito, 1996:84. 17 pelo Decreto-Lei no. 1.072 do presidente-general Médici , estará plenamente restabelecido. Os governadores indicam os comandantes das PMs, em geral oriundos da própria corporação, embora ainda haja poucos estados onde as PMs são comandadas por oficiais do Exército. Além do mais, os governadores pagam os salários dos policiais militares postos à disposição do Exército e da tropa mesmo quando elas são federalizadas, ou seja, quando estão sob o controle do Exército. O policial militar tem, portanto, dois patrões: os estados e a União. Este arranjo institucional é potencialmente explosivo pois em situação de conflito entre o governador de Estado e o Presidente da República, o policial fica inseguro a qual instância obedecer. Idêntica situação ocorre com os Corpos de Bombeiro Militares. Para que possam ter a condição de militar e assim serem considerados forças auxiliares, reserva do Exército tem que ser controlados pelo Ministério do Exército; serem estruturados à base da hierarquia e da disciplina militar; serem componentes das Forças Policiais Militares, ou independentes destas, desde que lhe sejam proporcionadas pelas unidades da Federação condições de vida autônoma reconhecidas pelo Estado Maior do Exército; possuírem uniformes e subordinarem-se aos preceitos gerais do regulamento interno e dos Serviços Gerais e do Regulamento Disciplinar, ambos do Exército, e da legislação específica sobre precedência entre militares das Forças Armadas e os integrantes das forças auxiliares; exercerem suas atividades profissionais em regime de trabalho de tempo integral, e ficarem sujeitos ao Código Penal Militar. A Constituição de 1988 nada fez para devolver à Polícia Civil algumas de suas atribuições existentes antes do início do regime militar. Até antes 1964, a Polícia patrulhava as ruas e o trânsito com seus Guardas Civis fardados, atuava na prevenção e repressão ao crime, além de que fazia a segurança de governadores e dignitários.53 Hoje está consolidada a militarização da área civil de segurança, pois a Polícia Militar encarrega-se do policiamento ostensivo e do trânsito, o Corpo de Bombeiros cuida do controle de incêndios e acidentes em geral, e a Casa Militar Estadual responsabiliza-se pela segurança governamental e pelo comando do sistema de defesa civil (enchentes, deslizamento de morros etc). E mais, a chefia de cada um destes três órgãos possui nível de secretário de estado. A rivalidade entre a Polícia Civil e Militar se acirrou com a criação da Guarda Municipal (GM), polícia fardada ostensiva de investidura civil. O VI Congresso Nacional de Delegados de Polícia Civil, realizado nos dia 8-12 outubro de 1996, em Foz de Iguaçu, encaminhou uma proposta no sentido de permitir que a GM pudesse também fazer o policiamento ostensivo, na qualidade de segmento policial uniformizado civil. O objetivo seria o de recapturar espaço civil perdido, como foi dito acima, com o advento do regime militar. O que, todavia, está acontecendo é um aumento da presença militar na atividade de segurança pública. Embora esteja sob o controle dos Prefeitos, as GMs são comandadas, em geral por oficiais da Polícia Militar da reserva ou até mesmo da ativa, como ocorre em Recife. A cidade de São Paulo, por sua vez, resolveu entregar o comando da sua GM a um coronel da reserva do Exército! 53 José Edson Barbosa. “Devolvam as atribuições da Polícia” in Jornal do Commercio, 16 de maio de 1997. 18 Ocorre, mais uma vez, um duplo comando. É só imaginarmos uma séria desavença política entre o Prefeito do Recife e o Governador do Estado, e o comandante da Guarda Municipal ficará numa situação delicada: a de obedecer ao Prefeito, ao Comandante-Geral da Polícia Militar ou ao ministro do Exército. Afora isto, o Grupo Especial de Controle Urbano da GM do Rio de Janeiro é treinado pela Polícia do Exército. Se não bastasse a Polícia Militar parcialmente subordinada ao Exército, temos a situação de uma polícia de investidura civil estar sendo comandada por um militar estadual ou federal. Sem falar que a Secretaria Nacional de Segurança Pública é dirigida pelo general da reserva Gilberto Serra e o Departamento de Assuntos de Segurança Pública, pelo general da reserva Dyonelio Morosini. Convém lembrar que a Constituição de 1988 reuniu, não por acaso, no mesmo título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas), três capítulos: o Capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio), o Capítulo II (Das Forças Armadas) e o Capítulo III (Da Segurança Pública). P. 9) Baixa possibilidade de militares da ativa serem julgados em tribunais comuns Até o governo Itamar, a possibilidade de um militar ser julgado por tribunal comum era praticamente nula. Isto porque a definição de crime militar é tão ampla que faz com que vários ilícitos cometidos por militares possam ser enquadrados em algum artigo do Código Penal Militar. Em 1996, após o massacre de sem-terras, em Eldorado dos Carajás, e ante a ameaça da Organização dos Estados Americanos de denunciar internacionalmente atos de negligência das Justiças Militares, o Executivo resolveu agir. O Presidente deu ordens ao então ministro da Justiça, Nélson Jobim, que ficasse em plenário cabalando votos para a aprovação de um novo Projeto de Lei do deputado Hélio Bicudo. Em janeiro de 1996, a Câmara de Deputados eliminou o foro militar para crimes cometidos por policiais militares contra civis, no exercício de funções de policiamento. Todavia, a Câmara inovou: decidiu que a investigação continuaria sendo feita por militares.54 Acontece que pela Constituição de 1988, cabe à polícia civil apurar as infrações com exceção dos crimes militares. No dia 9 de maio de 1996, o Senado desfigurou o projeto Bicudo. O Executivo, desta vez omitiu-se. Jobim que estava numa reunião em Maputo, lá ficou. O líder do governo no Senado, Élcio Alvares, apensou ao projeto Bicudo um outro que estava engavetado, e lhe deu o trâmite de urgência. Este outro projeto fora confeccionado, em 1993, pelo ex-deputado, Genebaldo Corrêa, conhecido como um dos “anões” da Comissão do Orçamento. 54 A relutância militar em manter a investigação, mesmo de crime civil, sob controle militar é influenciada pelo histórico episódio ocorrido em 1954. Naquele ano houve um atentado contra Carlos Lacerda, resultando na morte do major-aviador Rubens Vaz. As investigações feitas pela Polícia Civil do atentado da Rua Toneleros, em Copacabana, provocaram reações na Aeronáutica. Depois de muita pressão, o inquérito civil foi paralisado e aberto um IPM. Os suspeitos passaram a ser levados para a base aérea do Galeão, onde eram ouvidos por militares. Cercada de toda a segurança e sigilo, a base passou a ser chamada de República do Galeão por conta da independência, em relação ao Palácio do Catete, com que se processaram as investigações. O mandante do atentado, segundo o IPM, foi o chefe da segurança de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato. FHC prometeu distanciar-se da era Vargas. Contudo, pouco fez para mudar este legado autoritário. 19 O projeto Corrêa era muito mais brando para com os policiais militares. Aprovado pelo Senado, o projeto apenas excluiu os crimes dolosos contra a vida de civis da competência da Justiça Militar. Portanto, ficou de fora da alçada da Justiça comum os crimes mais corriqueiramente cometidos por policiais militares: crimes contra o patrimônio, abuso de autoridade, espancamento, prisão ilegal, extorsão, sequestro, prevaricação etc. Enquanto o projeto Bicudo olimpicamente ignorou os militares federais, o projeto Corrêa estipulou que as alterações feitas valiam tanto para militares estaduais como para os federais. Ou seja, os membros das Forças Armadas que cometessem crimes dolosos contra civis, também, seriam julgados por tribunais comuns. Desgostosos, os ministros militares pressionaram o Presidente.55 Cardoso, no dia 7 de agosto de 1996, sancionou o projeto na sua totalidade ao editar a Lei No. 9.299. Mas, treze dias depois, enviou ao Congresso o Projeto de Lei No. 2.314, propondo a exclusão dos militares federais da Lei No. 9.299. Este projeto presidencial é generoso para com os militares federais, contudo, é mais rigoroso com os PMs que o anterior. Estipula que homicídio, seja doloso ou culposo, e lesão corporal deixam de ser crimes militares desde que cometidos apenas por PMs e, passíveis, consequentemente, de serem julgados em tribunal comum. Neste novo projeto, o então ministro da Justiça, Nelson Jobim, tenta consertar um êrro técnico contido na Lei No. 9.299. Embora tenha transferido para a Justiça comum crimes dolosos contra a vida de civis cometidos por militares em geral, os crimes não deixaram de ser militares. Ora, o artigo 124 da Constituição estabelece a competência da Justiça Militar para processar e julgar crimes militares. O militar julgado pela Justiça comum pode contestar o resultado, baseando-se na exposicão de motivos do próprio Nélson Jobim que ainda por cima tornou-se ministro do Supremo Tribunal Federal, onde a disputa poderá chegar. O Congresso ainda não votou esta proposta presidencial nem FHC está se esforçando para que a mesma seja aprovada. Na prática, a Lei No. 9.299 não vigora para os militares federais. No dia 12 de novembro de 1996, o Superior Tribunal Militar julgou inconstitucional tal lei. Por isso, o Ministério Público Militar, em 26 de janeiro de 1997, denunciou três soldados do 14o. Batalhão Logístico do Exército, em Recife, por prática de crime doloso contra a vida do estudante Fábio de Melo Castelo Branco. Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça considerou constitucional a Lei No. 9.299 e os policiais militares envolvidos na chacina de Eldorado dos Carajás serão julgados em tribunal comum. Portanto, já está configurada juridicamente a existência de dois tipos de militares: os de primeira categoria, os militares federais, e os de segunda categoria, os militares estaduais. Embora ambos sejam servidores públicos militares, mesmo que cometam crimes idênticos serão julgados em tribunais e por códigos penais distintos, podendo receber punições diferenciadas. P. 10) Alta possibilidade de civis serem julgados por tribunais militares mesmo que cometam crimes comuns ou políticos 55 Jorge Zaverucha. “O Congresso, o Presidente e a Justiça Militar” in Marco Aurélio G. de Oliveira (ed.) Política e Contemporaneidade no Brasil, 1997:240. 20 A Constituição da Guatemala, de 1985, prevê no artigo 219, que nenhum civil pode ser julgado por tribunal militar. Já a Constituição do Peru, de 1993, estabelece no artigo 173, que o Código de Justiça Militar não é aplicável aos civis exceto nos casos de crime de traição ou terrorismo. A Constituição Paraguaia de 1992, artigo 174, permite que tribunal militar tenha jurisdição sobre civil somente em caso de conflito armado internacional. Guatemala, Peru e Paraguai são países detentores, de um modo geral, de instituições mais frágeis que o Brasil. No entanto, a Constituição brasileira, de 1988, de acordo com o artigo 125, apenas proíbe que civis sejam julgados por tribunais militares estaduais.56 Tribunais militares federais, todavia, continuam aptos a julgar civis por crimes comuns ou políticos. Durante o governo Collor, por exemplo, David Freitas Oliveira, 20 anos, acusado de pichar o muro da casa de um sargento, do 4o. Batalhão do Exército, na Vila Militar foi julgado por tribunal militar ao ser enquadrado no artigo 261, I e II, do Código Penal Militar, que versa sobre dano qualificado mediante emprego de substância inflamável ou explosiva ( em uma alusão ao spray) e por motivo egoístico.57 No governo Sarney, cito o caso do pastor luterano Werner Fuchs, condenado pela Justiça Militar a dois anos de prisão por ter acusado o Exército de “roubar” terra. Havia uma disputa judicial desde 1956 por conta do Exército ter desapropriado 7.614 hectares para servir como campo de treinamento em Papanduva, ao norte de Santa Catarina.58 No governo Itamar Franco, a Polícia Federal com mandato de busca e apreensão expedido pelo Juiz Auditor da 5a. Circunscrição Militar do estado do Paraná, deteve quatro brasileiros, acusados de pertencerem ao grupo separatista ‘O Sul é o meu País’. Em maio de 1993 foram indiciados pela Lei de Segurança Nacional e estão para ser julgados pela Auditoria Militar Federal. A ação foi determinada pelo então ministro da Justiça, Maurício Corrêa. Em 1994, Aureliano Caetano de Lira e José Antonio de Lira foram condenados pela Auditoria Militar Federal, em Pernambuco, por terem tentado subtrair madeira de árvores cortadas em área sob administração do Exército e provocado tiroteio ao serem surpreendidos por patrulha militar. Em 1995, no governo FHC, o Superior Tribunal Militar, em sentença apelatória, condenou Eliel Emerenciano do Amaral e Eider Vasconcelos por apropriação indébita de material de construção pertencente a estabelecimento militar, e Quergenildo Leite da Silva e José Augusto Tobias da Silva Filho foram incursos por crime de receptação. Por sua vez, o repórter Marques Edilberth Casara, da revista Manchete, publicou, em outubro de 1996, a reportagem de capa intitulada “Sou militar e sou gay”. O Comando Militar do Leste abriu um IPM que considerou a matéria ofensiva às Forças Armadas. Em janeiro de 1997, o IPM indiciando o repórter e o civil Márcio da Silveira Martins, o soldado M da reportagem, foi encaminhado ao Ministério Público Militar. Martins foi enquadrado nos artigos 172 (uso indevido de uniforme militar) e 219 (ofensa às Forças Armadas) e Casara nestes dois artigos combinado como o artigo 53 (co-autoria). O 56 Para maiores detalhes sobre o funcionamento da Justiça Militar estadual vide Jorge Zaverucha ( 1999) “Military Justice in the State of Pernambuco after the Military Regime: An Authoritarian Legacy” in Latin American Research Review, vol. 35, 1999 (no prelo) 57 George Alonso. “Tribunal Militar julga pichador em Brasília” in Folha de S. Paulo, 21 de fevereiro de 1992. 58 “Partido planeja transferir campo de Exército” in Folha de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1994. 21 processo encontra-se na Auditoria da 1a. Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro (Drumond, 1997). Caberá ao Ministério Público Militar decidir se oferece a denúncia ou se pede o arquivamento do caso. Mais recentemente, os irmãos Antonio Carlos e Kleber Monteiro foram presos foram presos pelo Exército porque tentaram usar uma passagem de acesso ao conjunto habitacional onde moram, que fica em frente ao quartel. Por ordem do comandante do Terceiro Regimento de Carros de Combate, na Vila Militar de Deodor, general Valdésio Guilherme de Figueiredo, o acesso havia sido fechado aos moradores. Com a interdição, os moradores passaram a viver um dilema. A Avenida Brasil corta o bairro ao meio e, para chegar ao outro lado, todos usavam a passagem subterrânea. Hoje, só idosos, crianças e mulheres podem continuar descendo por ali. Aos homens resta correr e driblar os carros nas duas pistas mais movimentadas. Os civis ficaram ilegalmente detidos no quartel, já que quartel só é prisão de militar, como lembrou o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB, Antônio Carlos Berenhauser.59 Os dois irmãos ficaram presos por dois dias, entre 7 e 9 de outubro de 1997 e afirmam terem sido espancados na prisão. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Carlos Santana (PT-RJ), encaminhou, no dia 22 de outubro de 1997, ao ministro da Justiça, Íris Rezende, laudo médico comprovando a denúncia.60 A assessoria do Comando Militar do Leste (CML) informou que a passagem subterrânea fica em área sob jurisdição militar e só quem pode usá-la é o Exército. Segundo o coronel Gérson Ribeiro assessor de imprensa do CML, os dois rapazes insistiram em atravessar a passagem apesar de terem sido impedidos por soldados. Eles teriam xingado e brigado com os militares e foram presos depois de autuados em flagrante por desacato à ordem. O auto, segundo o CML, já foi enviado à Auditoria Militar. Já existe jurisprudência que confere competência à Justiça Militar para julgar crime praticado por civil em lugar sujeito à administração militar e contra autoridade militar.61 Frise-se que caso civil provoque lesão corporal ou morte em militar motivada por colizão de trânsito, desde que a viatura militar federal esteja trafegando em missão especificamente militar, conforme o art. 42 da Constituição Federal, o civil responderá por crime contra a pessoa na Auditoria Militar Federal. P. 11) Militar tem o direito de prender civil ou militar sem mandato judicial e sem flagrante delito O artigo 5o., LXI da Constituição, estabelece que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.” O radicalismo deste texto justifica-se em situações de guerra ou períodos de exceção. O mesmo foi mantido devido, mais uma vez, a uma imposição das Forças Armadas preocupadas em controlar os conscritos, mas que terminou atingindo praças profissionais, 59 “General da Vila Militar prende rapazes por cruzarem passagem subterrânea” in O Globo, 7 outubro de 1997. 60 “Ministro recebe depoimentos sobre prisões no Rio” in O Globo, 23 de outubro de 1997. 61 José da Silva Loureiro Neto. Direito Penal Militar São Paulo: Ed. Atlas, 1995:46. 22 oficiais das Forças Armadas, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares e o que é mais grave: civis. Como o Código Penal Militar (CPM) e os Regulamentos Disciplinares Militares (RDM), não definem com clareza a linha que separa os crimes e transgressões militares próprios dos impróprios,62 fica ampla a possibilidade de limitar a liberdade fundamental do militar. Por exemplo, se um policial militar “conversar ou fazer ruído em ocasiões, lugares ou horas impróprias”, 63 poderá ser preso. Há ainda um agravante: o CPM foi criado por uma lei, mas o RDM é fruto de decreto, e decreto não precisa passsar por processo legislativo. Ele é instrumento de regulamentação nos estritos limites da lei que o enseja. Só que esta lei inexiste. Portanto, enquanto não tramitar pelo Congresso Nacional e pelas Assembléias Legislativas dos Estados projetos de lei que definam as condutas passíveis de prisão por transgressão militar, são inconstitucionais as prisões por transgressão militar.64 Durante a Operação Rio, em 1994, os militares aprisionaram civis sem mandato judicial ou flagrante delito bastando para isso a presunção de que o indivíduo estivesse cometendo algum ilícito. E o que é pior, de acordo com a lei militar uma pessoa pode ficar presa provisoriamente por um período de trinta dias, renováveis por mais vinte, sem que esta prisão necessite da aprovação de um juiz. A decisão sobre a renovação da prisão encontra-se afeta à mais alta autoridade militar da região, cabendo ao juiz apenas receber a comunicação sobre a prisão e a renovação da mesma. Na verdade a função da prisão provisória está sendo deturpada, pois transformou-se num meio de prender alguém até que se obtenham provas de sua vinculação a um crime.65 Já a autoridade policial civil, de acordo com a Lei No. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, só pode prender uma pessoa temporariamente por, cinco dias no máximo, renováveis por mais cinco, mas somente a aprovação do Juiz. P.12) Autoridade extrajudicial e legislativa pode ser exercida pelos militares Os sistemas de organização judiciária militar existente nos países românicos caracteriza-se pela desvinculação da esfera administrativa disciplinar militar da esfera penal militar. Esta separação não era respeitada na Espanha do general Franco. Ou seja, instituições militares ligadas ao executivo militar julgavam pessoal militar. No período pós-autoritário, foi redigida uma lei determinando que somente instituições jurídicas militares poderiam se encarregar de exercer funções judiciais. Hoje em dia no Chile, o juiz militar de primeira instância é, por definição, o chefe militar da região onde está ocorrendo o julgamento. No Brasil, em termos de ilícito penal, esta separação existe formalmente, mas nem sempre é respeitada. Em algumas situações, como a do desaparecimento de revólver 62 Márcio Luís C. Freyesleben. A Prisão Provisória no CPPM Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1997:177. 63 Transgressão disciplinar de número 50 do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Pernambuco, Decreto No. 6.752, de 01 de outubro de 1980. 64 Eliezer Pereira Martins. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade São Paulo: Ed. De Direito, 1996:87-88. 65 Dyrceu Cintra Júnior e Aguiar Dias. “O Judiciário Brasileiro em face dos direitos humanos” in Justiça e Democracia no. 4, 1996:30. 23 militar, o Inquérito Policial Militar (IPM) é aberto por um comando militar, isto é, por uma instituição vinculada ao executivo militar. O IPM sugere que o policial militar seja administrativamente e civilmente punido tão severamente que, quando o caso chega aos tribunais militares, muitas vezes, o acusado não é mais apenado. Juizes-Auditores da Auditoria da Justiça Militar de Pernambuco têm alegado não querer infligir mais um castigo ao militar, embora, as instâncias administrativa, civil e penal sejam independentes entre si. O mais grave é que, durante o IPM, o acusado não tem direito a se defender nem a constituir advogado de defesa. Só quando o caso chega à Auditoria Militar é que o acusado pode oferecer sua defesa. Como no caso supra-mencionado o processo é arquivado, o militar fica sem o direito ao contraditório. Frise-se que a maioria dos IPMs são conduzidos por oficiais sem formação jurídica adequada, ao contrário dos inquéritos comuns que são dirigidos por delegados de polícia, bacharéis em Direito. A situação se agrava na esfera das transgressões disciplinares-militares não especificadas, ou seja, aquelas que não são tipificadas e onde o legislador deixa de descrever pormenorizadamente a conduta transgressional. O conteúdo transgressional acaba por ser preenchido pelo aplicador que transforma-se em legislador. Tome-se o artigo 12 do Regulamento Disciplinar da Polícia do Estado de São Paulo que dispõe verbis: “[são transgressões disciplinares não especificadas] todas as ações ou omissões não especificadas neste regulamento, praticadas contra as leis, as instituições, os símbolos nacionais, contra a dignidade da classe, contra os preceitos da subordinação, regras de conduta e de serviço estabelecidas nas leis e regulamentos, ou prescritas por autoridades competentes”. Como se nota, tanto o conteúdo como a sanção são indeterminados e o acusado só saberá a posteriori o que foi proibido. Trata-se de uma violação do princípio da taxatividade administrativa militar, que exige tanto que as transgressões disciplinares se achem previstas em normas anteriores como que tais normas determinem com clareza os contornos e os limites dos fatos puníveis.66 A incompatibilidade com o Estado de Direito se aprofunda ao mirar-se o Art. 5o., LV, da Constituição de 1988. Pelo mesmo, os litigantes em processo judicial ou administrativo e os acusados em geral, “têm direito a saber a exata descrição da conduta que a eles se imputa como garantia do contraditório e da ampla defesa, já que ninguém pode defender-se do que é inespecífico, não delimitado… Deste modo, não se concebe que o administrador seja transformado em legislador, criando figuras típicas segundo o seu prazer ou ódio, deixando em insegurança jurídica o administrado que a qualquer momento pode ser punido pelo mero capricho do detentor do poder disciplinar”. 67 P. 13) Potencial para os militares se tornarem uma força independente de execução durante intervenção interna 66 Eliezer Pereira Martins. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade São Paulo: Ed. De Direito, 1996:74. 67 Ibid., p. 74. 24 Persiste o risco dos militares federais, utilizados em operações de segurança pública venham a subordinar suas ações à hierarquia militar, em vez de atuarem como braço armado do poder político. A Operação Rio (1994-95) é o mais notável exemplo: os militares agiram praticamente sem qualquer controle político. A nomeação do comandante, o planejamento tático-estratégico da operação, a decisão sobre onde, quando e como empregar tropas, o tipo de munição e o custo da operação foram da alçada exclusivamente militar. Em momento algum, qualquer representante da Justiça estadual ou federal acompanhou o deslocamento das tropas militares. Nenhum militar federal transgressor foi julgado por tribunal comum. A autonomia castrense reapareceu, no Rio de Janeiro, no dia 22 de novembro de 1997. Bastou que dois fuzis militares fossem roubados de sentinelas nas imediações da Vila Militar de Deodoro. Em represália, o Exército fez uma operação na favela do Muquiço. Como as armas roubadas não foram encontradas, soldados do Comando Militar do Leste (CML) ocuparam 12 favelas da redondeza. Vários deles com os rostos encobertos68 usaram caminhões, com placas também cobertas, um carro de combate “Urutu” e até um tanque de guerra (M-113).69 Ocupantes de carros que trafegavam pela área foram obrigados a parar, fornecer documentos e se submeter a minuciosa revista. Mulheres foram revistadas, crianças que iam para escola obrigadas a abrir mochilas70 e residências foram violadas.71 Uma verdadeira operação de ocupação militar para procurar duas armas! Segundo o secretário-geral do Conselho Federal da OAB, “os moradores daquelas favelas, no caso específico dessa operação militar— assim como sistematicamente ocorre em relação as operações policiais convencionais--, foram tratados previamente como culpados. Subverteu-se como de hábito, quando se trata de parcela pobre da população brasileira, do princípio universal da presunção de inocência consagrada pela Constituição… [Os defensores do Estado Democrático de Direito] reclama dos Poderes da República, principalmente do Presidente da República, cujas prerrogativas foram usurpadas, pronta ação no sentido de impor o imediato restabelecimento da ordem pública”. 72 Para não ter de explicar porque o Presidente da República não foi consultado, o CML, em nota oficial, tratou de vender a idéia que tudo não passou de “atividades de polícia judiciário militar” como se a ela fosse permitido usar massa bruta aleatoriamente. Anteriormente, o assessor de imprensa do CML, coronel Helio Borges, disse que os militares estavam cumprindo um mandado judicial de busca e apreensão que fora concedido pela Justiça Militar à Polícia Militar. O assessor parlamentar da Secretaria Estadual de Segurança Pública, coronel Milton Corrêa da Costa, por sua vez, negou a 68 O artigo 5o., inciso 64, da Constituição Federal estabelece que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão. 69 Denise Ribeiro e Mauricio Tambasco. “Exército cerca 12 favelas do subúrbio” in Jornal do Brasil, 26 de novembro de 1997. 70 Artigo 5o., inciso III, da Constituição Federal: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.” 71 Artigo 5o., inciso XI, da CF: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. 72 Reginaldo Oscar de Castro. “Os fuzis e a Constituição” in Jornal do Brasil, 30 de novembro de 1997. 25 existência deste mandado.73 Como o mandado judicial que teria embasado a ação do Exército não foi localizado na Justiça Militar, a Procuradoria da República pediu à Justiça Federal a imediata interrupção das ações militares nas favelas.74 O mandado judicial foi emitido ex post facto. Ou seja, somente no dia 26 de novembro, à noite, é que o Exército o solicitou. No dia seguinte, juiz da 3a. Auditoria Militar do Rio de Janeiro, emitiu mandado específico autorizando soldados a entrarem em apenas uma casa da Favela do Muquiço por suspeitarem que lá estavam as armas roubadas.75 P. 14) Forças Armadas são as principais responsáveis pela segurança do presidente e vicepresidente da República Desconheço a existência de alguma democracia estável que atribua às Forças Armadas, através da Casa Militar, a função de fazer a segurança do Presidente da República. Até mesmo o general Pinochet entregou sua proteção bem como a do Palácio do Governo, a uma força policial: os Carabineros. No Brasil, a Casa Militar chefiada por um general, com status de ministro de Estado, reúne além do Gabinete do Ministro, liderado por um oficial de posto de coronel das Forças Armadas, contém as seguintes subchefias: a) Subchefia Executiva; b) Subchefia da Marinha; c) Subchefia do Exército; d) Subchefia da Aeronáutica; e e) Subchefia de Segurança. Esta subchefia mistura oficiais do Exército, policias militares, bombeiros e agentes da Polícia Federal. Desde 1985, a Polícia Federal foi, aos poucos, perdendo espaço para os militares no que se refere à segurança presidencial. Hoje sua presença é meramente residual, por exemplo, faz a varredura de telefones e ficou responsável pela procura dos responsáveis que atiraram pedras no ônibus da comitiva presidencial, na cidade de Campina Grande, em maio de 1995. Há alguns agentes trabalhando, po exemplo, na Subchefia de Segurança fazendo o trabalho de varredura dos telefones. O Batalhão da Guarda da Presidência (cerca de 1.500 homens) e o Regimento de Cavalaria da Guarda (cerca de 1.300 homens) fazem a guarda do Presidente e do Vice-Presidente em Brasília. Segundo a revista Veja,76 a segurança da fazenda particular do Presidente Fernando Henrique também está a cargo do Exército. Cerca de dois mil homens, tanques blindados, carros de combate e helicópteros de transporte estão em alerta permanente para uma eventual invasão da Fazenda Córrego da Ponte pelos membros do Movimento dos Sem-Terra. Caso a inteligência militar detecte uma provável invasão, várias unidades militares serão simultaneamente acionadas, dentre elas, o Batalhão da Guarda da Presidência. Com a novidade de o Presidente da República poder ser reeleito, a Casa Militar teve que desenvolver um novo tipo de segurança para FHC, durante a campanha eleitoral. Para isto foram despachados militares para conhecerem os procedimentos de segurança 73 Fábio Versano & Luciana Conti. “Procurador apura ação militar em favelas” in Jornal do Brasil, 27 de novembro de 1997. 74 Sergio Torres. “Procuradoria pede que Exército deixe favelas” in Folha de S. Paulo, 28 de novembro de 1997. 75 “Exército não tinha mandado” in Jornal do Brasil, 28 de novembro de 1997. 76 Policarpo Jr. “Guerra em casa” in Veja, 20 de novembro de 1996. 26 para os presidentes candidatos adotados por vários países, dentre eles os EUA.77 Só que lá a segurança do presidente é feita por forças civis. O modelo brasileiro, por sua vez, foi imitado pelo presidente peruano Alberto Fujimori. Após o auto-golpe, Fujimori tirou a sua guarda pessoal das mãos da polícia e entregou ao Exército. P. 15) Presença militar em áreas de atividade econômica civil (indústria espacial, navegação, aviação etc) Cabe a Marinha o licenciamento, a segurança das embarcações, fiscalização de documentação, balizamento, sinalização e salvaguarda da vida humana no mar. Até quem desejar se habilitar a pilotar um jet-ski precisa ser aprovado pela Capitania dos Portos, órgão do Ministério da Marinha. Acidentes, civil ou militar, da navegação marítima, fluvial e lacustre são administrativamente julgados pelo Tribunal Marítimo, órgão autônomo vinculado ao Ministério da Marinha. Cabe, também, a este Tribunal manter o registro da propriedade marítima. Em 1996, devido a uma continuada falta de segurança nos portos brasileiros, o governo criou a Comissão Nacional de Segurança nos Portos (Comportos) reunindo os Ministérios da Marinha, Justiça e Transportes. Uma outra comissão específica para verificar a segurança portuária em caso de conflitos e greves, é coordenada por um representante do Ministério da Marinha.78 Em dezembro de 1997, FHC sancionou a Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário que, dentre outros, estabelece que quando os práticos não chegarem a um acordo sobre o pagamento com os donos de navios, a decisão será arbitrada pela Marinha. Os práticos são civis aprovados em concurso feito pela Marinha. O Ministério da Marinha também controla a marinha mercante. Uma das primeiras medidas do governo FHC foi conseguir aprovar a lei de abertura da navegação de cabotagem. Ou seja, navios estrangeiros poderiam fazer negócios viajando dentro do país. O ministro da Marinha adotou a seguinte tática: não contestou a decisão mas tratou de sabotar o referido projeto.79 Fez um decreto de regulamentação com tantas exigências que a liberação tornou-se letra morta. Por exemplo, navio que quiser pegar carga no Rio de Janeiro e levar para Recife, precisa antes apanhar carga em Recife. FHC ganhou no Congresso ao conseguir aprovar a Emenda Constitucional mas, na prática, a reserva de mercado persiste. O tráfego aéreo civil, privado, comercial e desportivo são controlados pelo Ministério da Aeronáutica.80 Inclusive é ele quem aprova o preço das passagens aéreas e determina a frequência das rotas e as companhias habilitadas a cumpri-las. A fiscalização das condições de vôo e navegação das aeronaves e embarcações civis está a cargo dos militares assim como a investigação de acidentes envolvendo as mesmas. Esta situação 77 Marcelo de Moraes & Tania Monteiro. “Segurança de FHC estuda como agir nas eleições” in O Estado de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1998. 78 Gustavo Paul. “Armadores alertam para riscos nos portos do Brasil” in O Estado de S. Paulo, 20 de janeiro de 1998. 79 Vanda Célia. “Brasília -DF” in Correio Braziliense, 22 de março de 1998. 80 Altair Ferreira da Costa, Gílson Carvalho do Santos e Ronaldo de Souza foram multados em R$ 1.442,00 e responderam a processo no Serviço Regional de Proteção ao Vôo, órgão do Ministério da Aeronáutica, por terem invadido espaço aéreo que não era reservado a vôos de asa delta. Marcelo Moreira. “Aterrissagem azarada” in Jornal do Brasil, 5 de fevereiro de 1998. 27 cria um conflito de competência pois o órgão investigador de acidentes aéreos, Centro Nacional de Investigação de Acidentes de Incidentes Aeronáuticos (Cenipa), fornece ao Departamento de Aviação Civil (DAC) os dados para a elaboração do relatório final. Só que os dois órgãos, e seus integrantes, estão subordinados ao órgão regulamentador: o ministério da Aeronáutica. Nos EUA, por exemplo, duas agências independentes regulam a aviação comercial. A FAA, agência do Departamento de Transportes (DOT) administra todo o sistema de aviação civil, ou seja, homologa novas aeronaves; supervisiona aeroportos e tráfego aéreo, concessão de linhas e até mesmo o planejamento do futuro da aviação. Já o NTSB encarrega-se primordialmente de assuntos ligados à segurança como investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos. Embora mantenha relações com o DOT está unicamente subordinada ao Congresso. A partir do estudo de acidentes, o NTSB faz recomendações que devem ser acatadas pela FAA. Tivessemos tal divisão de atribuições, por certo, muitas críticas feitas a Aeronáutica seriam evitadas. Por exemplo, no caso da queda do Learjet que carregava o grupo Mamonas Assassinas, no dia 2 de março de 1996, pela primeira vez a Polícia Civil resolveu investigar a queda do avião. Enquanto o laudo da Aeronáutica culpou exclusivamente o piloto e co-piloto pela queda do avião, o delegado José Gouveia também responsabilizou três integrantes da torre de controle do aeroporto, sendo dois deles, militares.81 Os militares só prestaram depoimentos depois de intimados pela Justiça. Após mais de um ano do acidente, não se sabe qual dos dois laudos prevalecerá prejudicando as famílias das vítimas que buscam indenização. Um caso em que DAC também, depois de mais de um ano, ainda não resolveu foi o envolvendo o ex-comandante da FAB, José Raimundo Araújo, que no dia 4 de junho de 1996, chocou o Learjet da AeroExecutivo com um caminhão estacionado na pista do aeroporto de Ribeirão Preto. Sua esposa quer saber exatamente o que aconteceu mas o DAC diz que o assunto é sigiloso.82 Mais recentemente, foi preciso uma decisão judicial para obrigar a Aeronáutica a revelar, depois de quase um ano, os dados da caixa-preta do Fokker-100 da TAM, que caiu no dia 31 de outubro de 1996.83 Em dezembro de 1997, a Aeronáutica publicou o laudo oficial do desastre sem, contudo, tornar público o teor completo das conversas contidas na caixa-preta do Fokker. Sem isto, a ação judicial da família contra os responsáveis pelo acidente, no sentido de receber seguro ou iniciar ações indenizatórias fica prejudicada. O prazo prescreve em outubro de 1998. Procedimento idêntico foi adotado com a caixa-preta do Learjet que caiu com o grupo Mamonas Assassinas. A estreita ligação entre o DAC e as companhias de aviação comercial faz com que tais empresas contratem brigadeiros da reserva, com o intuito de fazer lobby, além de desenvolver certo tipo de relacionamento que seria vedado caso houvesse uma séria legislação sobre conflito de interesse. Recentemente, a Varig, durante as festividades de seu septuagésimo aniversário, resolveu levar oito brigadeiros, três generais, dois 81 Marco Damiani & Mauro Silveira. “Mamonas Assassinas-Um ano sem eles” in Manchete, 1 de março de 1997. 82 “Coluna do Swann.” in Jornal do Brasil, 20 maio de 1997. 83 “Aeronáutica terá de divulgar caixa preta”, Folha de S. Paulo, 24 de junho de 1997; “Laudo da caixa preta será apresentado”, in O Estado de S. Paulo, 25 de junho de 1997. 28 almirantes e um ministro do Superior Tribunal de Justiça para participarem de um torneio de tênis, entre os dias 29 de abril e 4 de maio de 1997, em Manaus. Os integrantes da comitiva militar, e suas respectivas esposas, ficaram hospedados no Hotel Tropical, um cinco estrelas pertencente a Varig.84 Já a VASP, patrocinou, no Canadá, uma festa em homenagem ao brigadeiro Renato Cláudio Pereira recém-nomeado diretor da Organização Internacional de Aviação. Dentre os oficiais convidados estava o brigadeiro Sócrates Monteiro, ex-ministro da Aeronáutica do governo Collor, que segundo Gois85 “brindou a empresa com algumas linhas internacionais”. Sobre o DAC já se lançou a suspeita de agir parcialmente. Em agosto de 1995, o Ministério Público de São Paulo decidiu investigar se o DAC prejudicou a Vasp, antes da privatização da empresa, ao negar a concessão de linhas áreas lucrativas.86 O promotor Carlos Alberto de Sales suspeita que o DAC discriminou “negativamente” a Vasp, beneficiando empresas privadas. A reiterada negativa da concessão de linhas competitivas teria sido um dos fatores que levaram à privatização da empresa em 1990. Salles instaurou inquérito civil, em 17 de agosto de 19995, para apurar a atuação do DAC em relação à Vasp no período em que a empresa pertenceu ao Estado de São Paulo. De acordo com o promotor, vários depoimentos dados à CPI que investigou a privatização da empresa apontaram um comportamento discriminatório do DAC, evidenciado pelo fato de a empresa passar a conseguir linhas lucrativas depois de sua privatização. A Aeronáutica, em 1997, utilizou 32 mil passagens grátis fornecidas pelas companhias aéreas.87 O passe livre para quem estiver trabalhando foi criado por uma portaria de 1973. O DAC tem 14 mil funcionários. É como se cada um recebesse 2,28 passagens por ano, embora a maoria dos funcionários trabalhem na área que deve fiscalizar.88 Por sua vez, técnicos da Secretaria de Direito Econômico (SDE) solicitaram ao seu secretário-geral, a abertura de um inquérito administrativo contra o DAC para explicar a existência de um possível cartel entre as empresas que atuam na ponte aérea Rio-São Paulo. A Varig, Vasp e Transbrasil que integram o chamado pool da ponte aérea cobram o mesmo preço da Rio-Sul e da TAM que não integram o pool. A relação distância/preço é um das mais caras do mundo. O processo terminou não sendo aberto pois a atual legislação não prevê a possibilidade da SDE processar um outro órgão público, no caso, o DAC. Seria como se o ministro da Justiça, ao qual a SDE está subordinada, processasse o ministro da Aeronáutica.89 (Mugnatto, 1997a). A Organização Mundial de Turismo (OMT) criticou o Ministério da Aeronáutica por garantir às companhias aéreas posição dominante na formulação das políticas de aviação, em detrimento da indústria do turismo. Segundo a OMT, o DAC através do “Livro Branco - Política em Matéria de Serviço de Transporte Aéreo Comercial” traçou, desde 1991, as diretrizes que são seguidas pelo governo brasileiro até hoje. A OMT 84 “Boca-livre militar” in Veja, 14 de maio 1997. 85 Ancelmo Gois. “Radar” in Veja, 133 de agosto de 1997. 86 “Inquérito apura se DAC causou prejuízo a Vasp e ao governo” in Folha de S. Paulo, 18 agosto 1995. 87 “Ricardo Boechat” in O Globo, 26 de janeiro de 1998. 88 Sandra Brasil. “Voando de graça” in Veja, 28 de janeiro de 1998. 89 Sílvia Muganatto. “DAC pode ser investigado pelo governo” in Jornal do Brasil, 2 de agosto de 1997. 29 acredita que desmilitarizando o DAC conseguirá reforçar a posição da indústria do turismo.90 O governo FHC iniciou estudos para tirar o Departamento de Aviação Civil (DAC) das mãos da Aeronáutica.91 Mas, com a crise desencadeada pela saída do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Mauro Gandra, amigo do dono da Líder Taxi Aéreo, empresa associada a Raytheon, vencedora do contrato de fornecimento de sofisticados equipamentos para o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), o governo resolveu engavetar tais estudos.92 Além do Brasil, só o Paraguai e Equador têm sua aviação civil subordinada a um ministério militar. Posteriormente, o Ministro da Casa Civil, um dos mais fortes do governo FHC, retomou os estudos sobre a desregulamentação do setor e a privatização da Empresa de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero), responsável pela construção, operação e manutenção dos aeroportos brasileiros. Tal como noutras áreas da economia, a desregulamentação visa a abertura do mercado nacional às empresas estrangeiras para a redução dos preços das passagens. O plano do governo é substituir o DAC e a Infraero por uma agência reguladora, similar às que estão sendo criadas para os setores de petróleo, energia elétrica e telecomunicações. As empresas privadas de aviação aliaram-se à Aeronáutica contra o projeto governamental. Chegaram a indicar o ex-ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra, que já dirigiu o DAC, para a presidência do Sindicato Nacional das Empresas de Transporte Aéreo, com o intuito de ajudar a derrubar a idéia da desregulamentação.93 Já a Infraero, repassa ao Ministério da Aeronáutica 40% do que arrecada graças a uma portaria de 28 de dezembro de 1995. Em 1996, transferiu para a FAB US$ 333,9 milhões, ou seja, mais de um terço dos recursos recebidos pela FAB para gastos em despesa, com exceção da folha de pagamentos.94 Estima-se que em 1997, o repasse suba para R$ 430 milhões, quase cinco vezes o orçamento da Aeronáutica para investimentos. Não é só verbas que a Infraero repassa. Durante o nebuloso episódio da implantação do Sistema de Vigilância de Amazônia (Sivam), o contribuinte soube que três dos cinco oficiais da reserva da Aeronáutica que trabalhavam na Assessoria Parlamentar do Ministério da Aeronáutica no Congresso, pertenciam a empresa Esca que foi selecionada para implantar o Sivam. A Esca teve a falência decretada por ter fraudado o INSS. Os três oficiais, um brigadeiro e dois coronéis, foram logo contratados para exercerem cargo de confiança na Infraero, e postos à disposição do Ministério. Cada oficial recebe mensalmente R$ 3.427,60, afora o salário de oficial da reserva. A Aeronáutica, ao contrário do Exército e da Marinha, usa oficiais da reseva como assessores parlamentares.95 90 Ibid. “Turismo quer DAC desmilitarizado” in Jornal do Brasil, 27 de outubro de 1997. 91 A aviação civil era vinculada ao Ministério da Viação e Obras Públicas. A partir de 1941, com a criação do Ministério da Aeronáutica por Getúlio Vargas, é que os militares passaram a controlar tal aviação. 92 Sônia Mossri. “Lôbo tenta conter insatisfaçào de oficiais” in Folha de S. Paulo, 23 de novembro de 1995. 93 Tânia Monteiro. “Aeronáutica reage a projeto de privatização” in O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 1997. 94 Ibid. “Infraero ajuda a sustentar a FAB” in O Estado de S. Paulo, 24 de outubro de 1997. 95 Eumano Silva & Eduardo Hollanda “Desvio de rota” in IstoÉ, 5 de novembro de 1997. 30 A briga de bastidores entre os ministros da Casa Civil, Clóvis Carvalho, e o ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Lélio Lobo, veio à tona, no dia 23 de outubro de 1997, durante a cerimônia, do Dia do Aviador. Lobo, em declaração pública, defendeu que seu ministério continuasse a controlar o tráfego aéreo, política de tarifas das companhias aéreas e a administração dos aeroportos em todo o país. No dia 24 de janeiro de 1998, Carvalho anunciou que FHC decidiu tirar do projeto de criação da Agência Nacional dos Transportes, todo o setor aeroviário. O monopólio estatal na aviação civil persiste. Deste modo, a futura agência contemplará apenas o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), a Marinha Mercante e a Rede Ferroviária Federal.96 Frisese que noutros setores ditos estratégicos como energia, mineração ou telecomunicação a privatização segue adiante. O programa espacial brasileiro ainda possui significativa presença militar embora ele seja de cunho civil. A Infraero, Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária, responsável pela operação dos aeroportos civis do país passou a administrar o Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA), no Maranhão. Convênio neste sentido foi assinado, no final de 1996, entre o presidente da Infraero, Brigadeiro Adyr da Silva, e o diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Aeronáutica, Tenente-Brigadeiro Walter Werner Brauer. O diretor-geral da Agência Espacial Brasileira (AEB) também é militar. Trata-se do Major-Brigadeiro, Ajax Barros de Mello, que ocupa o segundo posto em importância na AEB. O Brigadeiro é assessorado por dois coordenadores-geral, ambos coronéis. Mais recentemente, em 1996, a Fundação Habitacional do Exército (FHE), cujos diretores são apontados pelo Ministério do Exército, adquiriu 49% do capital do Banfort— Banco Fortaleza S.A. O general Romildo Canhim, ex-ministro do governo Itamar Franco, juntamente com o presidente do Banfort, José Afonso Sancho, tornaram-se os responsáveis pela execução da política do Banfort definida pelo conselho de administração. Trata-se de uma parceria inédita na história da administração militar brasileira. No dia 15 maio de 1997, o Banfort foi liquidado extrajudicialmente pelo Banco Central por falta de recursos em caixa para saldar compromissos. Os bens do presidente do conselho de administração, general Waldstein Iran Kummel, do general Luiz Carlos de Lima Coutinho e do brigadeiro Volney do Rego, ficaram em indisponibilidade por determinação do Banco Central. Nada impede que o FHE volte a tentar uma parceria com outro banco privado. No dia 23 de setembro de 1997, o Congresso decretou e o Presidente da República sancionou a Lei no. 9.503 instituindo o novo Código de Trânsito Brasileiro. Antes do advento do regime militar inaugurado em 1964, o policiamento do trânsito estava a cargo da Polícia Civil. Durante o período autoritário esta função foi transferida para as Polícias Militares. O novo Código ratificou a decisão da ditadura ao considerar como membro do Sistema Nacional de Trânsito as Polícias Militares em vez das Polícias Civis. Afora isto, o referido diploma legal decidiu que sete pessoas participam do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), que coordena o Sistema Nacional de Trânsito e é órgão máximo normativo e consultivo. Um dos integrantes do CONTRAN é um representante do Ministério do Exército. No Código anterior, o CONTRAN era 96 Eliane Cantanhêde & William França. “Lobby da Aeronáutica tira setor aéreo de nova agência” in Folha de S. Paulo, 24 de janeiro de 1998. 31 composto por vinte e uma pessoas. Portanto, o novo Código de Trânsito em vez de afastar o Exército de uma atividade eminentemente civil, optou por fortalecer a presença castrense. P. 16) Forças Armadas podem vender propriedade militar sem prestar contas totalmente ao Tesouro De acordo com as Leis 5.651 e 5.658, de 11 de dezembro de 1970 e 7 de junho de 1971, respectivamente, os ministérios militares estão autorizados a proceder a venda ou permuta de bens imóveis da União sob sua jurisdição, cuja utilização ou exploração não atenda mais às necessidades dos respectivos ministérios. Por essas Leis, redigidas durante o regime militar, os ministérios militares, ao contrário dos ministérios civis, não precisam prestar contas de suas negociações patrimoniais ao Tesouro Nacional. Esse enclave autoritário funciona com regras autônomas que diferem de outras instituições submetidas ao crivo democrático. O arrecadado vai para o Fundo do Exército, Marinha ou Aeronáutica. As Forças Armadas apenas precisam de autorização do Presidente da República para alienar algum bem, caso os recursos originários da venda sejam aplicados em obras consideradas de importância fundamental para a Força, como ampliação de quartéis e construção de imóveis de uso restrito do ministério envolvido. Curiosamente, lei similar foi incorporada, por Pinochet, à Lei Orgânica das Forças Armadas doze dias antes do Presidente Aylwin tomar posse na presidência do Chile.97 17) A política salarial do militar é similar a existente durante o regime autoritário O art. 37-X, da Constituição de 1988, estipula que os funcionários públicos civis e militares devem ter aumento salarial em datas comuns. Foi uma tentativa de evitar que os servidores militares tivessem aumentos diferenciados dos servidores civis, tal como ocorreu durante o regime militar. Este artigo, no entanto, foi violado pelos governos Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC. Não importa se há algum plano econômico de congelamento de salários ou haja contenção de despesas por parte do Tesouro Nacional. Assim que os militares acham que seus salários estão aviltados, começa a haver pressões na caserna que chegam aos ministérios militares, e terminam na mesa do Presidente. Este chama o ministro da Fazenda e pede que ache uma solução para a crise antes que ela saia dos quartéis. Frequentemente opta-se por conceder novos benefícios pecuniários apenas para o setor militar. Embora, às vezes, tais beneficios sejam, também, estendidos ao setor civil. Quando o aumento salarial é unilateral, os servidores civis podem entrar com um mandado de segurança. No dia 19 de fevereiro de 1997, o STF concedeu a 11 servidores civis o direito de receberem o aumento de 28,86% concedido pelo Presidente Itamar aos militares em janeiro de 1993. Para evitar disputas jurídicas, o governo FHC decidiu conceder semestralmente uma gratificação salarial. Tecnicamente diferente de aumento 97 Juan Linz & Alfred Stepan. Problems of Democratic Transition and Consolidation Baltimore: John Hopkins University Press, 1996:208-9. 32 salarial, os servidores civis não podem alegar que houve violação do art. 37. Na prática, todavia, voltou-se a situação existente durante o regime autoritário. Para evitar que os militares ganhem tão mal quanto o funcionalismo público civil, o Presidente Fernando Henrique enviou ao Congresso, em 26 de março de 1996, proposta de Emenda Constitucional No. 338-A na qual os militares federais deixam de ser considerados servidores públicos e passam a ter uma carreira específica, cuja política salarial será regida por leis próprias. A Emenda andou lentamente no Congresso. Bastou o início da greve das Polícias Militares estaduais, em julho de 1997, para que a mesma deslanchasse. Os congressistas temeram que a insatisfação salarial atingisse os quartéis federais e enviaram um sinal tranquilizador às tropas. Tal Emenda terminou sendo aprovada em janeiro de 1998, durante convocação extraordinária do Congresso Nacional. Logo em seguida, FHC tratou de redigir uma Medida Provisória concedendo aumento médio de 60% na Gratificação de Condição Especial de Trabalho (GCET) dos militares federais. O Tesouro vinha pagando 36% do GCET, e subiu para 77% em 1998 e 100% em fevereiro de1999. Os ministérios militares já tinham inserido no contracheques de seus funcionários o aumento da GCET quando o Governo se deu conta que a Constituição proíbe que matéria de objeto de Emenda Constitucional possa ser regulada por Medida Provisória. Para não contrariar os militares, fez-se necessário uma ginástica jurídica em três tempos. FHC enviou um Projeto de Lei ao Congresso, em caráter de urgência na calada da noite do dia 17 de fevereiro, propondo o aumento; dois dias depois baixou um decreto autorizando o Ministério da Fazenda e o Estado-Maior das Forças Armadas a adiantarem o aumento e incluiu na Medida Provisória 1.639-38 o pagamento dos salários de uma vez, em vez de duas parcelas como era feito anteriomente.98 Os militares passaram a usufruir de um aumento antes mesmo de ter sido apreciado pelo Congresso, ou seja, sem amparo numa lei aprovada.99 Trata-se da política do fato consumado e de duvidosa legalidade.100 Somente em maio de 1998 é que o Congresso transformou em lei o decreto presidencial. Convém lembrar que estudo feito por assessor do Ministério de Planejamento e Orçamento concluiu que, entre 1995 e 1997, houve uma queda acumulada de 4% do gasto com servidores civis e um aumento acumulado de 7% do gasto com o pessoal militar.101 O governo, em 1998, não se dispôs a rever esta situação. Conclusão As 17 prerrogativas existentes governo Sarney mantiveram-se, praticamente, intactas durante os governos Collor, Itamar e FHC. A tênue diferença poderia ser creditada a possível criação de um fragilizado Ministério da Defesa por parte de FHC, nos 98 Paulo Mussoi & Eugênia Lopes. “Militar recebe aumento na quarta” in Jornal do Brasil, 20 de fevereiro de 1998. 99 Lendro Fortes. “Militares têm aumento que Congresso não analisou” in O Globo, 20 de fevereiro de 1998. 100 Olímpio Cruz Neto. “Aumento divide o Supremo” in O Globo, 21 de fevereiro de 1998. 101 Fabio Giambiagi. “Por que cresce o gasto com o pessoal?” in Folha de S. Paulo, 11 de janeiro de 1998. 33 últimos meses de seu governo. As diferenças entre os quatro presidentes nestes13 anos devem, desse modo, ser medidas pelo grau de suas atitudes e não pela natureza de seus comportamentos vis-à-vis os militares. A democracia tutelada/protegida/guardiã vem mantendo com regularidade o padrão que consiste na continuada existência de altas prerrogativas militares e baixa contestação militar.102 Como já mencionado, esta situação foi denominada de “golpe branco” por Stepan, redundando na existência de um sistema não-democrático. Ou seja, a democracia brasileira é tão conservadora com os interesses castrenses que os militares não se sentem impulsionados a contestarem os governos civis. Esta paz dos pântanos dá a falsa impressão de que os militares estão recolhidos aos quartéis e afastados dos processos de decisão política. Sem tentativa de golpe de estado, governos democraticamente eleitos se sucedem só que a estabilidade de um sistema difere da natureza deste sistema, pois pode-se criar sistemas democráticos e não-democráticos que durem ou não.103 Temos aí um equilíbrio instável. Equilíbrio no sentido de que a situação parece agradar tanto a civis quanto a militares que, no momento, nenhuma das duas partes se vê motivada a mudar o relacionamento civil-militar existente. Portanto, nem os militares priorizam o golpe de estado nem os civis trabalham para dar um salto qualitativo de um governo para um regime democrático. O equilíbro é instável não porque seja imprevisível o comportamento civil-militar ou porque o mesmo deixe de apresentar padrões minimamente regulares. E sim, porque os interesses são fluidos e basta surgir condições políticas distintas para civis ou militares abandonarem tal equilíbrio. Isto significa dizer que se algum dia os civis resolverem tentar acabar com a maior parte das prerrogativas militares, sem uma contra-partida, tal atitude poderá detonar uma reação pretoriana que ameace a existência do governo de plantão. Presidentes eleitos pelo voto popular, ficam receosos de implementarem certas decisões devido a esperada reação castrense. Este tipo de constrangimento é muito pouco democrático. Ainda temos uma transição incompleta, ou seja, ainda somos uma democracia “iliberal” onde se praticam os ritos formais eleitorais, mas os eleitos, logo a seguir, mutilam as liberdades políticas e econômicas.104 Se o golpe militar ortodoxo ou heterodoxo não mais atrai determinados atores políticos, os golpes institucionais via a manipulação de procedimentos democráticos está na crista da onda.105 Por isso mesmo, há ainda um longo e tortuoso caminho rumo a uma possível democratização das relações civil-militares no Brasil pois os militares continuam sendo um ator chave no processo de tomada de decisões políticas.106 O ponto de não-retorno ao autoritarismo ainda não foi atingido pela frágil democracia brasileira que, por sinal, ainda não passou pelo teste da 102 Para visão oposta vide, Scott D. Tollefson. “Civil-Military Relations in Brazil: The Myth of Tutelary Democracy” (paper apresentado no Encontro da Latin American Studies Association, Washington D.C., 28-30 de setembro de 1995). 103 Samuel Huntington. A Terceira Onda São Paulo: Ed. Ática, 1994:21. 104 Fareed Zakaria. “The Rise of Illiberal Democracy” in Foreign Affairs, vol. 76, 1997. 105 Jorge Zaverucha. Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1999 (no prelo). 106 Para uma visão distinta vide, Wendy Hunter. Eroding Military Power Chapel Hill: The University of North Carolina, 1997. Na p. 23 ela escreve: “at the risk of exaggeration, conditions of the 1980s and 1990s have rendered the Brazilian military somewhat of a paper tiger”. 34 oposição assumir o poder. Pelo que foi aqui apresentado, não há indícios promissores de que conseguiremos passar de um governo democrático para um regime democrático a curto ou médio prazos. A longo prazo, como lembra Keynes, todos nós estaremos mortos.
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lasa98/Zaverucha.pdf
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