Quatro anos depois da Rio-2016: a história que explodiu o grupo de zap e fez Nuzman se retirar
Luís Alejandro Velasco foi um heroi colombiano. Cantado em verso e prosa, condecorado pela pátria, disputado pelos jornais, rádios e televisões. Garoto-propaganda exaltado por seus feitos. A imagem de semideus garantia integridade para vender relógios, sapatos e o que aparecesse pela frente. Cortejado pelas rainhas da beleza, status invejável em um país que ainda hoje ama os concursos de miss. Até o dia em que decidiu dizer que não era bem assim e enfrentar o sistema. Contou sua verdadeira história a um jovem repórter que ensaiava as primeiras linhas no El Espectador, de Bogotá. Um rapaz de apenas 24 anos chamado Gabriel Garcia Marquez. A bomba se abateu sobre a nação em uma série de 14 reportagens que davam conta das farsas de uma recém-instalada ditadura militar, em tempos que icaram conhecidos como de “La violencia”.
Celebridade, Luís Velasco não podia ter o destino da vala comum a tantos opositores anônimos assassinados. Recebeu a punição que Atenas tinha legado para a humanidade como uma das mais crueis entre tantas: o ostracismo. Tirado de cena, relegado ao desterro, foi visto anos depois pelo jornalista de décadas antes, agora então já mundialmente famoso, prêmio Nobel de literatura. Aquecida pela láurea, a série publicada anos antes no matutino virou o impecável “Relatos de um náufrago”, ao qual a assinatura de Gabito garantia retumbante nova vida. Onde o gigante de “Cem anos de solidão” conta o que sentiu ao encontrar anos depois a foto do heroi condenado ao limbo, descoberto atrás da mesa de uma empresa de ônibus porque enfrentara os poderosos. São poucas palavras. Mas o escritor maior consegue em muito pouco, com poesia tão cortante e uma imagem definitiva, dar conta da beleza na existência de alguém que recusou a glória, cargos e dinheiro em nome de suas verdades:
“Vi essa foto: aumentou de peso e de idade e nota-se que a vida o marcou, mas deixou nele a aura serena do heroi que teve a coragem de dinamitar a própria estátua”.
Assim como Luis Velasco, Wantuil Coelho, 62 anos, passou a vida tendo a coragem de dinamitar a própria estátua. (na foto abaixo, Wantuil com Sandra Pires).
Alcançou o panteão do esporte, a glória maior do mundo olímpico. Medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Atlanta, 1996, técnico de uma dupla de vôlei de praia que parecia de sucesso incerto, formada por uma já veterana tão genial quanto irascível, Jackie Silva, e uma jovem recém-saída das quadras da Ilha do Governador, Sandra Pires, mera aposta ainda improvável. A alquimia do jovem treinador foi o caminho para o lugar mais alto do pódio.
Já na volta ao Brasil não estava na foto do carro de bombeiros que saiu em cortejo do Galeão até a zona sul. Daí em diante sua história é uma coleção de novas glórias na modalidade, geralmente abreviadas pela alma rebelde que nunca foi muito chegada aos protocolos e rapapés do poder. Como acontece geralmente com os que não se acomodam muito facilmente às margens compressoras, a simplificação em carimbos de “maluco” ou “brigão” logo chega, maior do que eventuais imensas capacidades. Em inglês ou francês, “deviant” ou “déviant”. Um rótulo apenas e as portas vão se fechando, não importando o talento maior.
A carreira do treinador campeão olímpico, ex-jogador, atacante de Flamengo, CIB e Tijuca, quatro vezes campeão brasileiro e passagem por todas as categorias da seleção, foi seguindo nas sístoles e diástoles da vida, compondo minimamente aqui no que é possível passar pelo estômago sem que ele reclame não ser possível digerir, se contrapondo ali, mas definitivamente afastado dos grandes palcos para onde o notório currículo deveria apontar.
Com a fama de falar na lata, conhecida do Leme ao Pontal na São Sebastião do Rio de Janeiro que é sua cara, seja do cartola mais poderoso, aquele capaz de movimentar os tabuleiros e encaixar as peças como quiser, ou seja da atleta vedete. E assim seguiu dinamitando a própria estátua tantas vezes. E mantendo a aura serena de quem é capaz de fazer isso.
O dia em que os Jogos Olímpicos do Rio-2016 completaram 4 anos foi só mais um nesse caminho que já não adentra os grandes noticiários mas ainda corre como lenda na trilha dos errantes, do lumpen e de todos aqueles que não saem nos jornais mas desfilam altivos pelos calçadões sem esconder tornozeleiras eletrônicas. Só mais um em que Wantuil, o Wantu, quebrou tudo e rasgou todos os tapetes vermelhos. E todas as perspectivas de um contracheque estável no fim do mês.
Foi assim: eram 12h43 quando a primeira mensagem espocou na tela do grupo de whatsapp, o bom e já velho zapzap, que tem como corte um pré-requisito definitivo: só pode estar ali quem já passou por uma quadra de vôlei, seja fechada ou de praia, e tenha participado de Olimpíadas. Técnico, jogador ou cartola. Uma reunião virtual com nome óbvio: “Olímpicos”.
Imagine um medalhão do vôlei brasileiro qualquer. Ele possivelmente está lá. De todas as gerações. Tendo estado em Tóquio-1964 ou na sede aniversariante de ontem, o Rio-2016. Muitos dos que aparecem no grupo louvando Nuzman estão nas redes sociais também criticando políticos e com discursos moralistas. Sabe-se lá por qual razão, algum desavisado convidou Wantuil Coelho para estar ali. Nota de qualificação não faltava, certamente mais dourada do que a de tantos ali. Mas a possibilidade de desastre de juntar a trajetória tão reta quanto torta, dependendo aí da persperctiva daquele que olha, com cartolas habitues das páginas policiais, convenhamos, era grande. E ontem aconteceu.
Na hora acima citada de mais uma terça-feira nesses estranhos tempos de quarentena, estava lá a mensagem enchendo os visores dos smart fones “Olímpicos”:
“Hoje fazem 4 anos da cerimônia de abertura dos JO Rio 2016”.
Duas mensagens depois apagadas se seguiram.
Três minutos depois da primeira celebração, começou o rapapé ao integrante dos “Olímpicos” que mais concentrou poder nesse universo nas últimas décadas por essas terras e também aos demais do grupo que tinham conquistado ouro na edição de 2016 (o das medalhas nesse segundo caso):
“Parabéns Nuzman por ter trazido os jogos, Bernardinho e atletas da quadra, Alison e Bruno, e Rico pelas medalhas conquistadas, tem muito valor esse nosso grupo”.
O concurso de mesuras e genoflexões para Carlos Arthur Nuzman tinha dado a largada. Descolado do mundo real como costumam ser tais competições de afetada e obsequiosa submissão. Constrangedoramente desprovidas de qualquer conexão com tudo o que aconteceu por aqui, nessas bandas sem legado, dos milhões subtraídos numa “pátria mãe tão distraída” em saques e bloqueios. Pedaços de vexame para quem o escândalo mundial que tomou as manchetes abaixo e acima do Equador parece não ter surtido efeito e que recontam os fatos como vitória inconteste:
“Nós conseguimos mudar a opinião de toda a imprensa internacional!!! Muito orgulho de tudo isto!!! Essa é a nossa história!!!”.
O relógio marcava 13h08 quando enfim Wantuil enfim se cansou daquilo tudo.
Tinha entrado no grupo por outras tantas questões. Uma delas, a presença do ídolo na modalidade que embalou na infância o sonho de ser jogador de vôlei. Ao saber que João Cláudio, que aos 16 anos defendeu o Brasil em Tóquio-1964, estava no grupo, quis enfim poder estabelecer relação com aquele que tanto admirou. Mas depois de tantos anos de labuta em areias e quadras sem isso traduzido em qualquer retorno, não resistiu a tanta bajulação ao todo-poderoso envolvido em tantos escândalos. E deu a primeira enxadada na própria estátua. Com alvo certeiro, interrompendo as reverências. Uma lâmina afiada cortando o espaço:
“Parabéns aos espertos q ficaram milionários com os sonhos e suor dos outros”!
Como era possível de se esperar, um longo, muito longo silêncio se seguiu. Exatos 48 minutos de silêncio. Sem uma palavra. Nem sequer um daqueles emojis hoje tão comuns que poderiam quebrar o clima ou explodir tudo de vez.
Até que, às 13h56, Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Organizador do Rio-2016 e na ocasião também do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), que não tinha sido citado nominalmente na mensagem de Wantuil, que falava apenas em “espertos q ficaram milionários com os sonhos e suor dos outros”, resolveu se pronunciar. E comunicou que estava saindo do grupo “Olímpicos” do zap dirigindo-se a um terceiro integrante, sem se dirigir a Wantuil.
“Celso. Estou saindo do grupo. Falta nível e educação a alguns poucos. Falamos no pessoal” .
E uma fração depois surge na tela o famigerado “saiu”, que indica aqueles que deixam o grupo. Logo seguido por um “foi adicionado” da turma do “deixa-disso”, na tentativa de demover o cartola cujos “feitos” faziam aniversário ontem.
Nove minutos se passaram até que Wantuil Coelho dobrou a força de suas marretadas. Escolheu a apontada “falta de nível e educação” como ponto de partida para sua resposta. Evocou o sono dos justos de quem não passou pelas páginas policiais do mundo inteiro e não resistiu a verve de rir da carapuça vestida. Saindo do grupo para entrar de vez na história. Não a olímpica porque essa já estava. Mas das histórias que desde então já são parte da tradição oral de uma gente, e que serão contadas através dos tempos por toda raia miúda. Representando e ressignificadas para todos os “sem nível e sem educação” que dormem o sono dos justos longe dos palácios e jardins pernambucos, os “barões da ralé” cantados pelo poeta, os sem passaporte russo ganho em tenebrosas transações e sem ouro num cofre da Suíça. Às 14h05 o ponto final foi posto por Wantuil Coelho:
“E falta vergonha na cara a muitos! Saio eu Celso q ando com o rosto erguido e durmo o sono dos justos. Agora se a carapuça serviu!”.
O ponto final foi de fato um desses indefectíveis emojis. Tinha a aura serena.
O fim dessa história dos “Olímpícos” não se sabe ainda. Nem importa. Vai virar enredo e fábula como tudo que corre no tempo e na petite histoire. E ganhar a cidade. É possível que acrescida de doses fantásticas de celeumas e farpas, narrativas fantásticas dignas de um personagem de Gabo. E que os documentos dessa página se percam no tempo, em nuvens cibernéticas de mídias aqui não contidas. Restando a lenda. A história que a história olímpica não conta, com a licença da apropriação dos versos verde e rosa. Mas tão grande quanto qualquer uma dessas sagas olímpicas oficiais.
Outro lado:
Essa história já corria as esquinas virtuais quando a reportagem quis ouvir envolvidos. Wantuil Coelho contou que se incomodou com a “bajulação”. Ressalta que tudo o que aconteceu (ver nota abaixo) nas gestões de Carlos Arthur Nuzman não impedem que, de acordo com o próprio Wantuil, considere que o dirigente teve importância para o vôlei brasileiro. “Lá atrás ajudou o vôlei a crescer, mudar o patamar. Mas depois foi por aí”, diz.
O incômodo foi maior:
“Tava incomodado com essa bajulação. Nuzman escreve algo no grupo e é uma loucura, uma puxação de saco surreal. Tá parecendo uma Irmã Dulce, não escreve uma frase sem falar em Deus, e todo mundo achando normal, reverenciando. Hoje não aguentei. Com essa história de 4 anos da Rio 2016, começou uma loucura de puxar saco. No quarto “parabéns” pra ele me irritei e falei o que tava pra falar há um tempo. E aí ele veio falar em nível. O cara que tava de tornozeleira! Não aguentei, falei que eu sairia do grupo”.
Longe do esporte de alto rendimento, Wantuil Coelho se mantém trabalhando numa quadra na praia de Ipanema, na altura do Posto 10, mantida como centro de treinamento de vôlei para pessoas que querem manter a forma física através da modalidade. “Para todas as idades, tem até um grupo sub-80”, ri.
Sem holofotes, começa quando o sol nasce e vai o dia inteiro, uma turma atrás da outra. E no fim do dia conta que dorme em paz:
“Trabalho todo dia o dia inteiro dando aula, de sol a sol. Começo às 7h da manhã com aula de vôlei pra adultos, tem sub-80,vou até tarde na luta, mas ando de cabeça erguida. Tenho uma filha de trinta anos que hoje tem orgulho da história do pai. Não é fácil, dureza, não tenho cargo, meu centro não tem ajuda mas encosto no travesseiro e durmo em paz”.
A reportagem não conseguiu contato com Carlos Arthur Nuzman.
Nota da redação :
Um ano depois dos Jogos Olípicos do Rio-2016, Carlos Arthur Nuzman foi preso (5 de outubro de 2017), num desdobramento da operação “Unfair Play”, parte da Lava Jato no Rio de Janeiro, sob acusação dos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e enriquecimento ilícito. Duas semanas depois (19 de outubro), a prisão foi substituída, por meio de liminar da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por medidas cautelares alternativas, entre elas a proibição de deixar o Rio de Janeiro e de ter acesso às instalações do COB e do Comitê Rio 2016. Na ocasião, também entregou o passaporte e assumiu o compromisso de se apresentar regularmente à Justiça. O julgamento ainda não foi realizado.
A Agência Sportlight, entre outras tantas nótícias sobre o caso na ocasião, contou um pouco da história do dirigente nessa reportagem, publicada no dia da prisão.
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