Pelo menos 80 parlamentares são donos de concessões públicas de rádio e TV, contrariando a Constituição. Como?
Nas últimas semanas, veio à tona um debate sobre a possibilidade de o governo criar uma rede pública de televisão, com conteúdo independente das influências políticas da vez. A discussão se dá também em torno da proposta de uma rede do Poder Executivo, algo que seria como uma Voz do Brasil 24 horas por dia no ar, não no rádio, mas em um canal de TV. Nada se falou, no entanto, sobre uma outra rede de emissoras de rádio e TV já existente, presente praticamente em todo o país, interligada por um fator comum: são de propriedade de políticos, muitos deles parlamentares da atual legislatura.
De acordo com o mais recente levantamento, divulgado no final do ano passado, pelo menos um terço dos 81 senadores e mais de 10% dos 513 deputados federais controlam canais de rádio ou televisão. Isso poderia ser apenas uma razão de desconfiança, pela possibilidade de uso político da comunicação, se não estivesse escrito na Constituição que é proibido. O Artigo 54 afirma que deputados e senadores, a partir do momento em que tomam posse, não podem "firmar ou manter contrato" ou "aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado" em empresa concessionária de serviço público. Rádios e televisões são justamente isso: recebem a concessão de uso de uma faixa do espectro eletromagnético por onde transmitem sua programação. Espectro esse que é público, finito e, por isso, regulado pelo Estado. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz: "Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior".
São 27 senadores e 53 deputados sócios ou parentes de proprietários de empresas de comunicação concessionárias de serviço público. Esses parlamentares foram rastreados em um cruzamento de dados realizado pela Agência Repórter Social. As bases de dados foram as declarações prestadas pelos próprios parlamentares aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), a pesquisa do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), do Rio Grande do Sul, que divulgou uma lista de senadores com parentes donos de emissoras, e uma lista divulgada em 2005 pelo sociólogo e doutor em Comunicações da Universidade de Brasília (UnB), Venício de Lima, de deputados que têm os nomes entre os sócios de concessionárias, em uma listagem divulgada então pelo Ministério das Comunicações - que não está mais no site do governo.
Além desses 80 parlamentares, entretanto, muitos outros podem dirigir veículos de comunicação sem que a sociedade saiba. A dificuldade para descobrir, com precisão, quantos deles têm concessões, é grande. Não há uma lista pública atualizada com os nomes dos sócios proprietários de rádios e televisões. E, mesmo que houvesse, muitos parlamentares colocam as empresas em nome de laranjas, às vezes sem parentesco algum.
Como é que pode?, perguntaria o leitor mais curioso. O uso político das concessões não é recente. O livro Vozes da Democracia - Histórias da Comunicação na Redemocratização do Brasil, escrito por 32 jornalistas de várias partes do país, conta que, "no final do governo Figueiredo (1979-1985), houve um número excessivo de concessões de canais de rádio e TV em um curto período. Somente nos últimos dois meses e meio do governo do general Figueiredo houve 91 decretos de concessões. Quase o mesmo número de todo o ano anterior (99 decretos) e mais que o total de 1983 (80 decretos). Entre os privilegiados, as redes de televisão Bandeirantes e SBT".
Venício de Lima diz que "até a Constituição de 1988 o direito de outorga era exclusivo do Poder Executivo. O processo começava no Ministério das Comunicações, que emitia um ato de outorga, que depois era enviado diretamente ao presidente da República, que assinava". Depois de 88, por uma reivindicação liderada pela Federação Nacional dos Jornalistas, o poder de outorga passou a ser compartilhado pela União com o Poder Legislativo. Ou seja, o processo de concessão, hoje, "começa no ministério, vai para a Secretaria de Relações Institucionais, depois vai para o Congresso. Na Câmara, entra na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), e de lá vai para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que tem poder terminal sobre a confirmação da outorga. Por lá, passam todos os processos". Depois da Câmara, o processo ainda segue para o Senado, onde passa por comissões similares, para só depois receber a autorização de funcionamento. Isso, para rádios comerciais; comunitárias, educativas e TV a cabo seguem por outros caminhos. Uma rádio recebe concessão para atuar por dez anos; uma TV, por 15.
Com todos esses processos e burocracia, alguém poderia até imaginar que cada concessão é investigada a fundo. Até dezembro do ano passado, entretanto, jamais um pedido de renovação de concessão ou outorga havia sido sequer questionado. Pela primeira vez na história, então, 83 foram rejeitadas. O que não quer dizer que os pedidos não serão aceitos - eles apenas foram rejeitados na comissão. Ainda precisam ser analisados pela CCJ da Câmara. Depois, seguirão para votação em plenário. Para a rejeição definitiva, serão necessários os votos de dois quintos dos 513 deputados - a aprovação ocorre por maioria simples.
Os processos haviam chegado à Comissão com pareceres favoráveis dos respectivos relatores, mas foram rejeitados pelos deputados Júlio Semeghini (PSDB-SP), Ricardo Barros (PP-PR), Luiza Erundina (PSB-SP), Jorge Bittar (PT-RJ) e Vic Pires Franco (PFL-BA). Segundo o deputado Jorge Bittar, "a Constituição quis dar ao Legislativo poderes de conhecer o setor e influir nas concessões, de forma que esse processo seja transparente e democrático", mas, de acordo com ele, em muitos dos processos analisados faltava a documentação apropriada. "Não sabemos como os processos são formados, como são definidos, quais são as prioridades do Ministério das Comunicações. Essa questão está sendo tratada como uma verdadeira caixa fechada. Diante disso, resolvemos adotar uma medida enérgica com a reprovação de todos os processos. É preciso abrir a caixa, em benefício da democracia e do cidadão." Não há, no entanto, previsão de data para a apreciação dos processos na CCJ.
O que pareceu ter sido um avanço na Constituição de 1988 - a transferência do Executivo para o Legislativo do poder de outorga - ainda não se mostrou eficiente, quase 20 anos depois. Isso porque os próprios concessionários estão onde as concessões são feitas ou renovadas: um de cada cinco membros da própria CCTCI é sócio de concessões públicas de rádio ou televisão. E mesmo na subcomissão especial, criada em fevereiro de 2007 para "analisar as normas de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagem", há donos de emissoras. O deputado Jorginho Maluly (PFL-SP) é um deles.
Maluly é sócio das rádios Clube de Mirandópolis Ltda., Veneza Paulista Ltda. e Cidade Andradina Ltda., segundo o levantamento da pesquisa Repórter Social. Jorge Maluly Netto, pai de Jorginho e prefeito reeleito (PFL) de Araçatuba (SP) com mais de 35 mil votos, tem no nome as empresas Rádio Nova Bebedouro Ltda. e a TV Sistema Araça de Comunicação Ltda. "Acho que a comissão está avançando, estamos em um processo de moralidade cada vez maior, e estou disposto a contribuir para que a comissão tenha imparcialidade e possa cumprir com o seu papel", diz Jorginho. O deputado afirma que ser sócio de rádio não irá interferir em seu trabalho na comissão. "Eu mesmo tenho uma pequena emissora de rádio, mas, se minha participação for ter alguma conotação de parcialidade, eu abro mão, para que outros colegas decidam se minha empresa está dentro dos padrões. A subcomissão tem feito uma série de audiências para tocar nesse ponto: se há um direcionamento ou não. Por exemplo, eu, que tenho uma empresa, se isso vier a interferir no meu trabalho na comissão, eu deixo a comissão, para que ela trabalhe da melhor maneira possível." O deputado cita, inclusive, a existência de uma proposta para que a lei volte a ser como era antes de 1988, no período militar: "Existe até uma corrente, defendida pelo deputado Paulo Bornhausen (PFL-SC) para tirar do Congresso essa prerrogativa de conceder as outorgas e deixar no próprio ministério, para não ter esse vínculo de o parlamentar interferir na concessão de uma empresa do seu interesse".
Questionado sobre o Artigo 54 da Constituição, Maluly diz que conseguiu a rádio antes de se eleger. "Existe algo que se chama direito adquirido. Temos na Constituição um artigo que diz que promotor público não pode participar do processo político, e temos deputados que são promotores. Por quê? Porque tinham o direito antes da Constituição. Me tornei parlamentar agora, mas jamais vou usar do meu poder para me beneficiar. Quando houver algo do meu interesse, nem participarei de votações. A comissão é suprapartidária. Estamos avançando para a democratização ainda mais do setor das comunicações. Não podemos misturar os interesses pessoais com os interesses da nação", defende. Para o pesquisador Venício de Lima, não é bem assim. "Há um impedimento legal. Isso é um incoerência. Como o camarada que concede a concessão pode também ser o mesmo que consegue a concessão? Há uma flagrante obscenidade no ato. Isso existe por causa de uma interpretação equivocada da lei. E mesmo antes de 88 havia o código das comunicações, que também impedia isso."
Além de Jorginho Maluly, outro parlamentar membro da subcomissão especial da CCTCI que analisa as normas para concessão é o deputado Frank Aguiar (PTB-SP). "Estamos analisando as melhores formas de restringir isso, para que os parlamentares não possam usufruir de uma licença que é pública", defende. Ele faz questão de destacar que nunca teve uma concessão pública. Novato na vida política, mas rodado nos bailes de forró, onde é conhecido como o "Cãozinho dos Teclados", Aguiar analisa que estar em projeção na mídia faz, sim, diferença na hora da eleição. "Óbvio que a arte possibilita meios de se comunicar com a população muito mais diretamente. Na mídia, como parlamentar, você tem um espaço mínimo, que tem de disputar com outros 512. Como artista, você fala diretamente com a população". Na comissão, Frank Aguiar é suplente de outro comunicador, o deputado Carlos Massa Júnior (PSC-PR), conhecido também como Ratinho Júnior.
E assim como aguiar, outro parlamentar que se beneficiou dos meios de comunicação para alcançar uma vaga na Câmara dos Deputados é Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO). Radialista de origem, Leréia tinha um programa em sua cidade natal, Minaçu, na divisa de Goiânia com Tocantins. "Abordava jornalismo em geral, não só política, como também polícia e esporte", conta. Admite que o "rádio tem uma interação imediata com o cidadão, de divulgar idéias". Mas não considera que foi favorecido politicamente pelo fato de ser proprietário de uma emissora, a Rádio FM Serra da Mesa, em Minaçu, em que tinha um programa. "Não atuo desde 1996", defende-se. Na época, já havia exercido o mandato de deputado estadual em Goiás e era suplente de sua segunda legislatura. Leréia também se defende dizendo que conseguiu a concessão antes de se tornar político. Por "direito adquirido", não poderia ter sua concessão retirada. "Eu sou profissional da área." Leréia transfere as denúncias para outra faixa do dial. "O que acontece muito hoje são rádios comunitárias que conseguem concessão, mas que, na verdade, por trás das associações têm políticos que interferem e usam a rádio", acusa.
Em seu livro Mídia, Teoria e Política, Venício de Lima conta que "expressões como 'coronelismo eletrônico' ou 'cartórios eletrônicos' têm sido freqüentemente utilizadas para caracterizar a tentativa de políticos de exercer, por meio da mídia que possuem, o controle sobre parte do eleitorado. O resultado é que o vínculo entre as comunicações e as elites políticas, sobretudo regionais e locais, deixou raízes profundas no país - e essa é uma característica que certamente vai existir ainda por muitos anos".
Um levantamento de 1994, divulgado no ano seguinte, indicava que 31,12% de todas as emissoras de rádio e televisão no Brasil eram controladas por políticos. "Existem estados onde é notória a presença de políticos no controle das comunicações. São freqüentemente mencionados: nos estados da Bahia (grupo de Antonio Carlos Magalhães); Maranhão (José Sarney); Rio Grande do Norte (Aluízio Alves); Sergipe (Albano Franco e João Alves); Pará (Jader Barbalho); Roraima (Inocêncio Oliveira); São Paulo (Orestes Quércia) e Paraná (Paulo Pimentel e José Carlos Martinez)", conta Venício. "Aqui em Brasília, há casos em que a mãe do deputado distrital é a dona da rádio - o Brunelli. O senador brasiliense Paulo Octavio [que renunciou ao Congresso para assumir a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo do Distrito Federal] é o latifundiário local de concessão", diz.
Antonio Carlos Magalhães, hoje senador (PFL-BA), era ministro das Comunicações do governo Sarney durante os debates da nova Constituição e um dos grandes interessados em manter o poder da comunicação. "Representado na Constituinte pelo seu irmão, deputado Ângelo Magalhães (PFL-BA), por seu filho, deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), e também pelo então secretário-geral do Ministério das Comunicações, Rômulo Vilar Furtado, que acompanhou a votação das novas leis ao lado de sua esposa, a então deputada Rita Furtado, principal articuladora do chamado 'grupo das comunicações'", conforme lembra o livro Vozes da Democracia.
Segundo o estudo A Legislação Sobre as Concessões na Radiodifusão, da pesquisadora Anita Simis, publicado em julho de 2006, "não causou espanto, portanto, o fato de a comissão criada pelo Ministro Antonio Carlos Magalhães, no início de outubro de 1985, para examinar possíveis irregularidades nas concessões feitas no último período do regime militar, ter concluído pela absoluta regularidade de todos os processos. Igualmente, não causou surpresa a continuação e mesmo o aumento do uso de critérios políticos e político-eleitorais nas concessões de rádio e TV. Por exemplo, em setembro de 1988, um mês antes da promulgação da nova Constituição, embora um só canal de TV tivesse sido anunciado para concessão em determinada área geográfica, o presidente (José Sarney) concedeu quatro canais. A razão foi que, em vez de apenas um, quatro amigos do presidente estavam concorrendo pela concessão. O assessor de imprensa do Ministério das Comunicações disse publicamente que, na opinião do governo, aqueles que mereciam a confiança do ministro e do presidente deveriam ganhar a concorrência. O próprio presidente, quando interpelado por repórteres para explicar porque tinha autorizado quatro concessões, em vez de uma, como previsto, disse que tinha sido difícil para ele deixar de atender às solicitações dos amigos".
Entre idas e vindas, desafinos e chiados, o fato é que até hoje há espaço para utilizar as concessões como moeda política para a compra de apoios. Em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o mesmo decreto que estendeu a licitação para concessões de rádios comerciais excluiu a necessidade de licitações para concessões de rádios educativas. Ainda assim, são obrigadas a passar pelos processos do Congresso. "Na melhor das hipóteses, o parlamento tem sido conivente", avalia Venício de Lima. Na época, o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), um dos mais atuantes nas questões de comunicações no Congresso, afirmou: "Esse decreto transforma novamente a concessão de televisão em balcão de negócios políticos, como foi praxe no governo Sarney. Essas concessões ferem os princípios constitucionais".
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais (Abepec), Jorge da Cunha Lima, considerou que a outorga e a renovação de concessões de emissoras públicas ainda são atos políticos e "de simpatia". Não levam em consideração parâmetros científicos e sociais que requerem uma "observação profunda" de elementos jurídicos, políticos, técnicos e de conteúdo.
Mesmo o Poder Executivo andou dando jeitinhos para conceder emissoras sem passar pelo Congresso. Um decreto de 1998 abriu a possibilidade de que retransmissoras virassem geradoras, por um processo interno do Ministério das Comunicações. Venício diz que "só agora saiu uma regulação que impede isso. Antes, muitos se beneficiaram com isso: existem no Brasil mais de 10 mil retransmissoras".
Presidente da subcomissão especial da CCTCI, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) defende a discussão aberta das concessões, sob pena "de a Câmara aprovar concessões que serão posteriormente criticadas pela sociedade". Ela disse acreditar que uma legislação específica, criada em parceria com a população e entidades do setor, dará mais segurança para os deputados aprovarem ou negarem a outorga e renovação de concessões às emissoras educativas. Para Venício, é um começo: "Na subcomissão, de 14 membros, pelo menos a Erundina está conseguindo levantar o problema. Esse é o primeiro passo".
METODOLOGIA: Com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral, 2002 e 2006 (deputados e senadores eleitos para o quadriênio 2007-2010), dados levantados pelo professor Venício de Lima, da UnB, conforme dados do Ministério das Comunicações, em 2005, e não declarados em 2006 aos TREs, dados levantados pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), em 2005, com base na lista do Ministério das Comunicações, e não declarados em 2006 aos TREs. Fonte: Repórter Social, Epcom, Venício de Lima (Dez/2006)
André Deak e Daniel Merli são editores da Agência Brasil, membros do Coletivo Intervozes de Comunicação Social e dois dos autores do livro reportagem Vozes da Democracia - A História da Comunicação na Redemocratização do Brasil
De acordo com o mais recente levantamento, divulgado no final do ano passado, pelo menos um terço dos 81 senadores e mais de 10% dos 513 deputados federais controlam canais de rádio ou televisão. Isso poderia ser apenas uma razão de desconfiança, pela possibilidade de uso político da comunicação, se não estivesse escrito na Constituição que é proibido. O Artigo 54 afirma que deputados e senadores, a partir do momento em que tomam posse, não podem "firmar ou manter contrato" ou "aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado" em empresa concessionária de serviço público. Rádios e televisões são justamente isso: recebem a concessão de uso de uma faixa do espectro eletromagnético por onde transmitem sua programação. Espectro esse que é público, finito e, por isso, regulado pelo Estado. A primeira linha do artigo seguinte da Constituição, de número 55, diz: "Perderá o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior".
São 27 senadores e 53 deputados sócios ou parentes de proprietários de empresas de comunicação concessionárias de serviço público. Esses parlamentares foram rastreados em um cruzamento de dados realizado pela Agência Repórter Social. As bases de dados foram as declarações prestadas pelos próprios parlamentares aos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), a pesquisa do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), do Rio Grande do Sul, que divulgou uma lista de senadores com parentes donos de emissoras, e uma lista divulgada em 2005 pelo sociólogo e doutor em Comunicações da Universidade de Brasília (UnB), Venício de Lima, de deputados que têm os nomes entre os sócios de concessionárias, em uma listagem divulgada então pelo Ministério das Comunicações - que não está mais no site do governo.
Além desses 80 parlamentares, entretanto, muitos outros podem dirigir veículos de comunicação sem que a sociedade saiba. A dificuldade para descobrir, com precisão, quantos deles têm concessões, é grande. Não há uma lista pública atualizada com os nomes dos sócios proprietários de rádios e televisões. E, mesmo que houvesse, muitos parlamentares colocam as empresas em nome de laranjas, às vezes sem parentesco algum.
Como é que pode?, perguntaria o leitor mais curioso. O uso político das concessões não é recente. O livro Vozes da Democracia - Histórias da Comunicação na Redemocratização do Brasil, escrito por 32 jornalistas de várias partes do país, conta que, "no final do governo Figueiredo (1979-1985), houve um número excessivo de concessões de canais de rádio e TV em um curto período. Somente nos últimos dois meses e meio do governo do general Figueiredo houve 91 decretos de concessões. Quase o mesmo número de todo o ano anterior (99 decretos) e mais que o total de 1983 (80 decretos). Entre os privilegiados, as redes de televisão Bandeirantes e SBT".
Venício de Lima diz que "até a Constituição de 1988 o direito de outorga era exclusivo do Poder Executivo. O processo começava no Ministério das Comunicações, que emitia um ato de outorga, que depois era enviado diretamente ao presidente da República, que assinava". Depois de 88, por uma reivindicação liderada pela Federação Nacional dos Jornalistas, o poder de outorga passou a ser compartilhado pela União com o Poder Legislativo. Ou seja, o processo de concessão, hoje, "começa no ministério, vai para a Secretaria de Relações Institucionais, depois vai para o Congresso. Na Câmara, entra na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), e de lá vai para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que tem poder terminal sobre a confirmação da outorga. Por lá, passam todos os processos". Depois da Câmara, o processo ainda segue para o Senado, onde passa por comissões similares, para só depois receber a autorização de funcionamento. Isso, para rádios comerciais; comunitárias, educativas e TV a cabo seguem por outros caminhos. Uma rádio recebe concessão para atuar por dez anos; uma TV, por 15.
Com todos esses processos e burocracia, alguém poderia até imaginar que cada concessão é investigada a fundo. Até dezembro do ano passado, entretanto, jamais um pedido de renovação de concessão ou outorga havia sido sequer questionado. Pela primeira vez na história, então, 83 foram rejeitadas. O que não quer dizer que os pedidos não serão aceitos - eles apenas foram rejeitados na comissão. Ainda precisam ser analisados pela CCJ da Câmara. Depois, seguirão para votação em plenário. Para a rejeição definitiva, serão necessários os votos de dois quintos dos 513 deputados - a aprovação ocorre por maioria simples.
Os processos haviam chegado à Comissão com pareceres favoráveis dos respectivos relatores, mas foram rejeitados pelos deputados Júlio Semeghini (PSDB-SP), Ricardo Barros (PP-PR), Luiza Erundina (PSB-SP), Jorge Bittar (PT-RJ) e Vic Pires Franco (PFL-BA). Segundo o deputado Jorge Bittar, "a Constituição quis dar ao Legislativo poderes de conhecer o setor e influir nas concessões, de forma que esse processo seja transparente e democrático", mas, de acordo com ele, em muitos dos processos analisados faltava a documentação apropriada. "Não sabemos como os processos são formados, como são definidos, quais são as prioridades do Ministério das Comunicações. Essa questão está sendo tratada como uma verdadeira caixa fechada. Diante disso, resolvemos adotar uma medida enérgica com a reprovação de todos os processos. É preciso abrir a caixa, em benefício da democracia e do cidadão." Não há, no entanto, previsão de data para a apreciação dos processos na CCJ.
O que pareceu ter sido um avanço na Constituição de 1988 - a transferência do Executivo para o Legislativo do poder de outorga - ainda não se mostrou eficiente, quase 20 anos depois. Isso porque os próprios concessionários estão onde as concessões são feitas ou renovadas: um de cada cinco membros da própria CCTCI é sócio de concessões públicas de rádio ou televisão. E mesmo na subcomissão especial, criada em fevereiro de 2007 para "analisar as normas de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagem", há donos de emissoras. O deputado Jorginho Maluly (PFL-SP) é um deles.
Maluly é sócio das rádios Clube de Mirandópolis Ltda., Veneza Paulista Ltda. e Cidade Andradina Ltda., segundo o levantamento da pesquisa Repórter Social. Jorge Maluly Netto, pai de Jorginho e prefeito reeleito (PFL) de Araçatuba (SP) com mais de 35 mil votos, tem no nome as empresas Rádio Nova Bebedouro Ltda. e a TV Sistema Araça de Comunicação Ltda. "Acho que a comissão está avançando, estamos em um processo de moralidade cada vez maior, e estou disposto a contribuir para que a comissão tenha imparcialidade e possa cumprir com o seu papel", diz Jorginho. O deputado afirma que ser sócio de rádio não irá interferir em seu trabalho na comissão. "Eu mesmo tenho uma pequena emissora de rádio, mas, se minha participação for ter alguma conotação de parcialidade, eu abro mão, para que outros colegas decidam se minha empresa está dentro dos padrões. A subcomissão tem feito uma série de audiências para tocar nesse ponto: se há um direcionamento ou não. Por exemplo, eu, que tenho uma empresa, se isso vier a interferir no meu trabalho na comissão, eu deixo a comissão, para que ela trabalhe da melhor maneira possível." O deputado cita, inclusive, a existência de uma proposta para que a lei volte a ser como era antes de 1988, no período militar: "Existe até uma corrente, defendida pelo deputado Paulo Bornhausen (PFL-SC) para tirar do Congresso essa prerrogativa de conceder as outorgas e deixar no próprio ministério, para não ter esse vínculo de o parlamentar interferir na concessão de uma empresa do seu interesse".
Questionado sobre o Artigo 54 da Constituição, Maluly diz que conseguiu a rádio antes de se eleger. "Existe algo que se chama direito adquirido. Temos na Constituição um artigo que diz que promotor público não pode participar do processo político, e temos deputados que são promotores. Por quê? Porque tinham o direito antes da Constituição. Me tornei parlamentar agora, mas jamais vou usar do meu poder para me beneficiar. Quando houver algo do meu interesse, nem participarei de votações. A comissão é suprapartidária. Estamos avançando para a democratização ainda mais do setor das comunicações. Não podemos misturar os interesses pessoais com os interesses da nação", defende. Para o pesquisador Venício de Lima, não é bem assim. "Há um impedimento legal. Isso é um incoerência. Como o camarada que concede a concessão pode também ser o mesmo que consegue a concessão? Há uma flagrante obscenidade no ato. Isso existe por causa de uma interpretação equivocada da lei. E mesmo antes de 88 havia o código das comunicações, que também impedia isso."
Além de Jorginho Maluly, outro parlamentar membro da subcomissão especial da CCTCI que analisa as normas para concessão é o deputado Frank Aguiar (PTB-SP). "Estamos analisando as melhores formas de restringir isso, para que os parlamentares não possam usufruir de uma licença que é pública", defende. Ele faz questão de destacar que nunca teve uma concessão pública. Novato na vida política, mas rodado nos bailes de forró, onde é conhecido como o "Cãozinho dos Teclados", Aguiar analisa que estar em projeção na mídia faz, sim, diferença na hora da eleição. "Óbvio que a arte possibilita meios de se comunicar com a população muito mais diretamente. Na mídia, como parlamentar, você tem um espaço mínimo, que tem de disputar com outros 512. Como artista, você fala diretamente com a população". Na comissão, Frank Aguiar é suplente de outro comunicador, o deputado Carlos Massa Júnior (PSC-PR), conhecido também como Ratinho Júnior.
E assim como aguiar, outro parlamentar que se beneficiou dos meios de comunicação para alcançar uma vaga na Câmara dos Deputados é Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO). Radialista de origem, Leréia tinha um programa em sua cidade natal, Minaçu, na divisa de Goiânia com Tocantins. "Abordava jornalismo em geral, não só política, como também polícia e esporte", conta. Admite que o "rádio tem uma interação imediata com o cidadão, de divulgar idéias". Mas não considera que foi favorecido politicamente pelo fato de ser proprietário de uma emissora, a Rádio FM Serra da Mesa, em Minaçu, em que tinha um programa. "Não atuo desde 1996", defende-se. Na época, já havia exercido o mandato de deputado estadual em Goiás e era suplente de sua segunda legislatura. Leréia também se defende dizendo que conseguiu a concessão antes de se tornar político. Por "direito adquirido", não poderia ter sua concessão retirada. "Eu sou profissional da área." Leréia transfere as denúncias para outra faixa do dial. "O que acontece muito hoje são rádios comunitárias que conseguem concessão, mas que, na verdade, por trás das associações têm políticos que interferem e usam a rádio", acusa.
Em seu livro Mídia, Teoria e Política, Venício de Lima conta que "expressões como 'coronelismo eletrônico' ou 'cartórios eletrônicos' têm sido freqüentemente utilizadas para caracterizar a tentativa de políticos de exercer, por meio da mídia que possuem, o controle sobre parte do eleitorado. O resultado é que o vínculo entre as comunicações e as elites políticas, sobretudo regionais e locais, deixou raízes profundas no país - e essa é uma característica que certamente vai existir ainda por muitos anos".
Um levantamento de 1994, divulgado no ano seguinte, indicava que 31,12% de todas as emissoras de rádio e televisão no Brasil eram controladas por políticos. "Existem estados onde é notória a presença de políticos no controle das comunicações. São freqüentemente mencionados: nos estados da Bahia (grupo de Antonio Carlos Magalhães); Maranhão (José Sarney); Rio Grande do Norte (Aluízio Alves); Sergipe (Albano Franco e João Alves); Pará (Jader Barbalho); Roraima (Inocêncio Oliveira); São Paulo (Orestes Quércia) e Paraná (Paulo Pimentel e José Carlos Martinez)", conta Venício. "Aqui em Brasília, há casos em que a mãe do deputado distrital é a dona da rádio - o Brunelli. O senador brasiliense Paulo Octavio [que renunciou ao Congresso para assumir a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo do Distrito Federal] é o latifundiário local de concessão", diz.
Antonio Carlos Magalhães, hoje senador (PFL-BA), era ministro das Comunicações do governo Sarney durante os debates da nova Constituição e um dos grandes interessados em manter o poder da comunicação. "Representado na Constituinte pelo seu irmão, deputado Ângelo Magalhães (PFL-BA), por seu filho, deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), e também pelo então secretário-geral do Ministério das Comunicações, Rômulo Vilar Furtado, que acompanhou a votação das novas leis ao lado de sua esposa, a então deputada Rita Furtado, principal articuladora do chamado 'grupo das comunicações'", conforme lembra o livro Vozes da Democracia.
Segundo o estudo A Legislação Sobre as Concessões na Radiodifusão, da pesquisadora Anita Simis, publicado em julho de 2006, "não causou espanto, portanto, o fato de a comissão criada pelo Ministro Antonio Carlos Magalhães, no início de outubro de 1985, para examinar possíveis irregularidades nas concessões feitas no último período do regime militar, ter concluído pela absoluta regularidade de todos os processos. Igualmente, não causou surpresa a continuação e mesmo o aumento do uso de critérios políticos e político-eleitorais nas concessões de rádio e TV. Por exemplo, em setembro de 1988, um mês antes da promulgação da nova Constituição, embora um só canal de TV tivesse sido anunciado para concessão em determinada área geográfica, o presidente (José Sarney) concedeu quatro canais. A razão foi que, em vez de apenas um, quatro amigos do presidente estavam concorrendo pela concessão. O assessor de imprensa do Ministério das Comunicações disse publicamente que, na opinião do governo, aqueles que mereciam a confiança do ministro e do presidente deveriam ganhar a concorrência. O próprio presidente, quando interpelado por repórteres para explicar porque tinha autorizado quatro concessões, em vez de uma, como previsto, disse que tinha sido difícil para ele deixar de atender às solicitações dos amigos".
Entre idas e vindas, desafinos e chiados, o fato é que até hoje há espaço para utilizar as concessões como moeda política para a compra de apoios. Em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o mesmo decreto que estendeu a licitação para concessões de rádios comerciais excluiu a necessidade de licitações para concessões de rádios educativas. Ainda assim, são obrigadas a passar pelos processos do Congresso. "Na melhor das hipóteses, o parlamento tem sido conivente", avalia Venício de Lima. Na época, o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), um dos mais atuantes nas questões de comunicações no Congresso, afirmou: "Esse decreto transforma novamente a concessão de televisão em balcão de negócios políticos, como foi praxe no governo Sarney. Essas concessões ferem os princípios constitucionais".
Em entrevista à Agência Brasil, o presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais (Abepec), Jorge da Cunha Lima, considerou que a outorga e a renovação de concessões de emissoras públicas ainda são atos políticos e "de simpatia". Não levam em consideração parâmetros científicos e sociais que requerem uma "observação profunda" de elementos jurídicos, políticos, técnicos e de conteúdo.
Mesmo o Poder Executivo andou dando jeitinhos para conceder emissoras sem passar pelo Congresso. Um decreto de 1998 abriu a possibilidade de que retransmissoras virassem geradoras, por um processo interno do Ministério das Comunicações. Venício diz que "só agora saiu uma regulação que impede isso. Antes, muitos se beneficiaram com isso: existem no Brasil mais de 10 mil retransmissoras".
Presidente da subcomissão especial da CCTCI, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) defende a discussão aberta das concessões, sob pena "de a Câmara aprovar concessões que serão posteriormente criticadas pela sociedade". Ela disse acreditar que uma legislação específica, criada em parceria com a população e entidades do setor, dará mais segurança para os deputados aprovarem ou negarem a outorga e renovação de concessões às emissoras educativas. Para Venício, é um começo: "Na subcomissão, de 14 membros, pelo menos a Erundina está conseguindo levantar o problema. Esse é o primeiro passo".
METODOLOGIA: Com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral, 2002 e 2006 (deputados e senadores eleitos para o quadriênio 2007-2010), dados levantados pelo professor Venício de Lima, da UnB, conforme dados do Ministério das Comunicações, em 2005, e não declarados em 2006 aos TREs, dados levantados pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom), em 2005, com base na lista do Ministério das Comunicações, e não declarados em 2006 aos TREs. Fonte: Repórter Social, Epcom, Venício de Lima (Dez/2006)
André Deak e Daniel Merli são editores da Agência Brasil, membros do Coletivo Intervozes de Comunicação Social e dois dos autores do livro reportagem Vozes da Democracia - A História da Comunicação na Redemocratização do Brasil
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