O discurso da defesa animal é um forte aliado na eliminação das tradições religiosas de matriz africana

Sexta-feira, 6 de janeiro de 2017
O discurso da defesa animal é um forte aliado na eliminação das tradições religiosas de matriz africana
Constantemente eu me deparo com notícias, campanhas, debates que primam pela defesa animal. Uma pauta extremamente relevante vide o cenário de degradação ambiental e social que a indústria de carne fomenta. Contudo, a responsabilidade de construir um debate que apresente o mínimo de esforço teórico no que diz respeito a construção da sociedade brasileira e as consequências da anti-negritude na vida das populações negras fica subjugado a um segundo plano. É em virtude dessa ausência de elementos robustos no que diz respeito a trajetória das tradições de matriz africana no Brasil que com alguma frequência o discurso da defesa da vida animal cede espaço a replicação de conteúdos que apresentam contornos muito semelhantes àqueles produzidos pelas bancadas políticas neopentecostais conservadoras.
A criminalização das tradições religiosas de matriz africana é uma permanência das consequências do processo de colonialismo e escravização que originou a conformação que hoje conhecemos do Estado brasileiro. Parte desse diagnóstico é de conhecimento geral, a fração que diz respeito ao período histórico em que o Brasil foi colônia de Portugal, portanto administrado conforme as normas da Coroa Portuguesa, uma nação confessional. Após a independência, o Império Brasileiro, segue sendo um monarquia católica, sendo essa a única religiosidade reconhecida na esfera pública. Até aqui, pouco há de novidade aos leitores.
As inquietações, para as mentes que pensam “Direito”, se dão a partir do estabelecimento da República que formaliza um estado laico, mas desde que essa laicidade seja branca, eurocêntrica e coadunada com os valores morais e éticos designados pelo poder branco ocidental. Uma laicidade que é questionada por todos os tipos de movimentos sociais, nas mais variadas pautas, com comprometimento intelectual da esquerda e de setores progressistas. Porém, os questionamentos são quase inexistentes quando se trata da maneira com que as bancadas políticas neopentecostais, com o apoio dos movimentos de defesa da vida animal, tem atuado na formulação de leis e regramentos que criam dificuldades para a manutenção dos pressupostos civilizatórios de matriz africana.
Vou me deter especificamente na questão da alimentação sagrada, mas existem outras leis que possuem um conteúdo proselitista, racista e intolerante, como as normas que visam regular o espaço público e destinar locais específicos para as oferendas e a lei do silêncio, que autoriza as autoridades policiais a suspender os atabaques e tambores sagrados através dos quais os Orixás dançam e as comunidades se comunicam com a sua ancestralidade.
Trato aqui de uma concepção de mundo que é distinta da vigente na sociedade brasileira capitalista. Logo, a alimentação é compreendida de forma distinta no interior das comunidades de terreiro e entre seus integrantes. No terreiro, comer é um ato sagrado. E não um sacrifício. A complexidade da compreensão desses valores para pessoas que não compartilham uma vivência de matriz africana é compreensível. Mas, apesar de entender que pode “embaralhar” o cérebro os significados dessa alimentação sagrada, é bastante simples sintetizar que os espaços sagrados de matriz africana são espaços territoriais onde se verificam práticas que são oriundas do processo de resistência dos negros e negras escravizados. O terreiro é um local de permanência e continuidade das práticas ancestrais que permitiram a sobrevivência das populações negras. E a alimentação também é uma prática que se integra a toda uma lógica que é diversa daquelas exercidas na sociedade de consumo.
Para muitas concepções de matriz africana animais, vegetais e minerais integram um todo, são forças vivas que se conectam e não estão hierarquizadas. O valor de um erva é o mesmo de um bode, o valor da água que corre nos rios é o mesmo das pedras que o circundam, todos esses elementos são vivos e valorizados. Apresentam funções relevantes no cotidiano desses povos e são sagrados. Logo, a alimentação que é oriunda destes elementos é também sagrada. Principalmente porque ela implica na “suspensão da vida de uns para a continuidade da vida de outros”, conforme o elucidado pelo Dr. Wanderson Flor Nascimento, professor da Unb.
Sendo assim, aqueles que se alimentam exclusivamente de folhas, frutos e grãos, também suspendem uma vida para que a sua continue. A diferença é que os discursos que emanam da defesa vida animal defendem uma alimentação em que aqueles seres que integram o que as ciências denominam como “reino animal” não tenham a sua vida suspensa para a alimentação. Contudo, não refletem sobre a suspensão de outras vidas para que possam se alimentar exclusivamente de alimentos oriundos do que a ciência designa como “reino vegetal”.
A alimentação sagrada compreendida na vivência de matriz africana pressupõe uma responsabilidade coletiva com todo o procedimento que levará a alimentação. Inclusive com a morte. Comer é um ato sagrado e a morte não é vista como um sacrifício. Ocorre, através da maneira com que se estabelece o discurso da defesa animal, que emprega uma significação distinta da que se dá dentro dos terreiros de forma simplista e pouco comprometida, o reestabelecimento de uma bioética criminalizadora, que atualiza os mesmos discursos utilizados no século XIX para imprimir nas tradições de matriz africana traços de aculturamento, ignorância, inferiorização e ausência de possibilidade de civilidade. A mesma estratégia utilizada pelos eugenistas de outrora é resignificada na intelectualidade brasileira através de uma pretensa defesa dos direitos dos animais. Basta observar qualquer debate sobre esse tema nas redes sociais para se deparar com esse diagnóstico.
Tendo em vista esse cenário, o qual tentei resumir de forma sintética e o mais didática possível, alguns pontos merecem uma maior apreciação para que se possa construir o mínimo de diálogo no que diz respeito às polêmicas que são criadas pelas contradições oriundas do tal de capitalismo.
A industria alimentícia como um todo degrada o ambiente, a vida animal e visa exclusivamente o lucro. Não há intencionalidade sagrada e nem ao menos de promover o direito constitucional à alimentação. O leite de soja produzido pela Unilever com absoluta certeza é mais nocivo a vida animal do que as práticas de matriz africana. A monocultura de soja, sem a menor dúvida, degrada mais o meio ambiente e causa danos e sofrimentos aos animais de forma cruel. Ainda assim, ainda cientes desse diagnóstico, são as tradições religiosas de matriz africana que têm suas práticas criminalizadas, ridicularizadas e violentadas. Não é raro ver em momentos de acirramento de tensões entre os adeptos dos pressupostos civilizatórios de matriz africana e as organizações de defesa animal, como o que ocorre quando há alguma proposição de lei que pretenda criminalizar as práticas dessas tradições, um discurso de ódio que tem o mesmo conteúdo do proselitismo religioso neopentecostal. A diferença, nesse caso, é que ele se camufla em nuances de intelectualidade e superioridade.
Por outro lado, os abates sagrados kosher e hallal, que também são lidos a partir de uma significação religiosa, jamais são afetados por proposições legislativas. E aí reside uma nuance classista e racista da defesa da causa animal. O que difere, na lógica desses defensores, as práticas das tradições religiosas de matriz africana dessas outras, se não o poderio econômico e financeiro daqueles que as comungam? Se não a origem das práticas? Se todas as formas de consumo de carne são repugnantes e merecem ser combatidas, porque apenas os terreiros e seus praticantes que são taxados de criminosos? Bestas? Ignorantes? Qual a razão para que frigoríficos não sejam parados e sacerdotes dessas tradições não sejam enfrentados quando se dá um abate nos modelos outrora citado? Seria porque nesses modelos a carne é exportada para o mercado internacional, com o selo de qualidade que indica que a mesma foi manipulada conforme os significados sacros dessas religiões, enquanto a carne que é consumida nos terreiros o é em periferias do Brasil, compartilhada em comunidades suburbanas e obtida através de pequenos produtores rurais ou através de criadouros próprios dentro dos terreiros?
Deixo o questionamento para os nossos leitores responderem. De minha parte a conclusão é que oBrasil apresenta uma anti-negritude tão elaborada que até o óbvio se torna complexo.
Winnie de Campos Bueno é Iyaloríxa do Ile Aiye Orisha Yemanja (Pelotas/RS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas.
DO NASCIMENTO, Wanderson Flor. Alimentação socializante: notas acerca da experiência do pensamento tradicional africano. Das Questões, v. 1, n. 2, 2015. http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/06/o-discurso-da-defesa-animal-e-um-forte-aliado-na-eliminacao-das-tradicoes-religiosas-de-matriz-africana/
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