15 de ago. de 2017

Jacobinos, bolcheviques e o sonho da revolução. - Editor - A REVOLUÇÃO QUE LEVARÁ O POVO AO PODER ESTÁ EM MARCHA, MESMO COM TODA A REPRESSÃO E GOLPES DAS ELITES E SUAS FORÇAS ECONOMICAS. A HISTÓRIA OFICIAL DO BRASIL, ESTÁ TOTALMENTE DETURPADA E ENALTECENDO OS MAL FEITOS DAS ELITES DOMINANTES DO PODER NESSES 500 ANOS. AS URNAS LIBERTARÃO O POVO DA OPRESSÃO NEFASTA DE QUEM USURPA O PODER, QUE É O 1% DA POPULAÇÃO, QUE MOSTROU E SE POS A NÚ PERANTE A NAÇÃO, MOSTRANDO SEUS MÉTODOS ANTI-DEMOCRÁTICOS E TOTALMENTE CONTRA O POVO E A NAÇÃO E SUA SOBERANIA. DIRETAS JÁ

Jacobinos, bolcheviques e o sonho da revolução

Neste ensaio exclusivo para o Nocaute, os professores John D. French e Alexandre Fortes (*) relatam a influência da Revolução Russa, que em outubro completa cem anos, na trajetória de Eloy Martins, um metalúrgico brasileiro de ascendência africana.

* Por John D. French e Alexandre Fortes

Massacres sangrentos, assassinatos cruéis e sofrimentos profundos estão inextricavelmente ligados às revoluções históricas mundiais que definiram a trajetória da modernidade global: a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917. A imagem de jacobinos e bolcheviques, revolucionários com corações duros em tempos sombrios, simbolizava as ideologias subversivas dos dois movimentos: o liberalismo dos “direitos do homem” radicalmente antifeudal do primeiro e o anticapitalismo e anti-imperialismo do comunismo internacional. No centro da Era das Revoluções, os acontecimentos dramáticos na França e no Haiti foram, acima de tudo, um fenômeno dos mundos Atlântico e Mediterrâneo abrangendo a porção ocidental do território euro-asiático e sua periferia (as Américas).
Depois de 1917, o colonialismo europeu, um mercado global cada vez mais integrado e a revolução na comunicação permitiram que a Revolução Russa atraísse, em uma escala planetária, centenas de milhares de simpatizantes e seguidores – bem como opositores raivosos –, originando, ao mesmo tempo, o movimento político internacional organizado mais ambicioso da história mundial.
O que podemos aprender com os brasileiros que abraçaram uma vocação revolucionária na esteira da Revolução de Outubro na Rússia czarista? Para responder a tal pergunta, este artigo reflete sobre a trajetória de Eloy Martins, um habilidoso metalúrgico do sul do Brasil, que já foi estudado em trabalhos anteriores por um dos autores. Nascido em 1911, no estado de Santa Catarina, Martins era neto de um cidadão africano escravizado que cresceu na cidade portuária de Laguna, proclamada por Anita Garibaldi e seu marido Giuseppe a capital de sua “República Juliana”, que teve vida breve. Filho de um carpinteiro e de uma costureira sem condições financeiras para sustentar seus quatro filhos vivos (de sete partos), Martins partiu em 1925 com sua família para a cidade de Porto Alegre, no estado vizinho do Rio Grande do Sul. O Rio Grande do Sul foi a base a partir da qual ele construiu uma carreira de sessenta anos como líder sindical, político comunista e revolucionário profissional.
Aos 17 anos, Martins foi empregado no estaleiro Alcaraz e Cia., realizando um trabalho que ele descreveu como “terrível, pesado e bruto”, ao mesmo tempo que era um membro ativo, junto com seus irmãos, do Grupo de Trabalhadores Apolíticos, de caráter anarquista. As “boas novas” da Revolução de Outubro chegaram até ele por meio do caldeireiro Ramão, seu superior imediato, que fazia parte do pequeno e ilegal Partido Comunista do Brasil (PCB), fundado em 1922.
Na época, o Brasil era uma sociedade majoritariamente agrária e autoritária, o primeiro país a ter estabelecido uma economia de plantation baseada na escravidão, no século XVI, e o último no Novo Mundo a abolir a escravidão, em 1888. Não surpreende que os anarquistas fossem a tendência ideológica mais influente dentro do pequeno movimento trabalhista urbano que se desenvolveu depois de 1906. Em uma nação oligárquica profundamente desigual, o reformismo de estilo socialista encontrou pouco espaço para prosperar porque as formas parlamentares existentes, a retórica política liberal e as eleições eram desfiguradas pelo governo autoritário, pelo exercício arbitrário do poder e pela ausência tanto do voto secreto quanto da votação em massa.
O meio anarquista em que o comunismo brasileiro emergiu havia ganhado visibilidade nacional entre 1917 e 1919, com greves gerais em várias cidades importantes que vivenciavam a expansão da produção industrial e o crescimento do custo de vida por causa da Primeira Guerra Mundial. Enquanto os círculos anarquistas internacionais criticavam cada vez mais a direção da Revolução Russa, seus pares no Brasil, sofrendo intensa perseguição, fundavam entidades comunistas efêmeras, até a criação do PCB em 1922, que acabou por ser aceito como a seção brasileira da Internacional Comunista. A composição social de seus fundadores – sete trabalhadores manuais de setores artesanais e dois intelectuais – não incluía trabalhadores das florescentes indústrias têxtil, metalúrgica, alimentícia e de móveis. Foi o esforço bem-sucedido para recrutar jovens trabalhadores de tais setores – por meio de agitações de massa durante o sectário Terceiro Período da Comintern – que lançou o PCB em seu caminho para se tornar a principal organização da e a influência hegemônica sobre a esquerda pelos cinquenta anos seguintes.
O recrutamento de Martins para o PCB foi o resultado do proselitismo do imigrante judeu ucraniano Jacob Koutzii, vendedor de sapatos e eventual comerciante neste setor. Ativo no legalizado Bloco Operário e Camponês, Koutzii era o líder da Federação de Esportes Proletários, iniciativa que rivalizava com os times de futebol organizados pelas principais fábricas de Porto Alegre. Atuando como treinador, Koutzii estabelecia relações com jovens trabalhadores como Martins, que assinou um cartão de associação em 1929, depois de passar por um treinamento rudimentar em autodefesa e manuseio de armas.
A retórica de classe contra classe do PCB de então pode ser constatada na convocação feita pela Federação para a celebração do 12º aniversário da Revolução Russa. Proclamando-se o “órgão centralizador do movimento esportivo proletário”, a instituição afirmava liderar a luta “contra a influência do esporte burguês, que é um dos meios utilizados pela burguesia para desviar os trabalhadores do terreno da luta de classes”.
Sessenta anos depois, Martins ainda se sentia confortável em se expressar com tal retórica de classe ao descrever o partido ao qual se filiou quando jovem: “O partido tinha uma posição proletário e revolucionária. Não escondia sua qualidade de partido de classe, aparecia abertamente como organização de luta pelo socialismo. A solidariedade à Revolução de Outubro na Rússia tzarista era dever de honra, nenhum de nós escondia nosso sentimento internacionalista”.
A clareza de tal retórica comunista fornecia uma coerência satisfatória para os militantes, especialmente, talvez, para alguns operários como Martins. Mas ela era limitada para orientar o PCB em meio às complexidades da política brasileira, à medida que o país se movia em direção à derrubada da oligárquica Primeira República (1889-1930). Enquanto o PCB pregava a guerra de classes, o ex-governador do estado Getúlio Vargas trabalhava pela mudança de regime com o apoio de um pequeno grupo de jovens militares radicalizados que haviam liderado revoltas nos quartéis contra o governo desde 1922 (conhecidas como “tenentismo”).
Após uma eleição presidencial que Vargas denunciou como fraudulenta, o líder do Rio Grande do Sul conspirou com os tenentes sobreviventes, incluindo Luís Carlos Prestes, um tenente do Rio Grande do Sul (gaúcho) bastante celebrado por liderar uma coluna rebelde que percorreu o interior do país entre 1925 e 1927.8 Embora fosse parte da conspiração de Vargas em 1930, o radicalizado Prestes havia aderido ao marxismo, se não ainda ao PCB, enquanto estava no exílio por meio do contato com a divisão sul-americana da Comintern.
Exigindo libertação nacional e revolução social, Prestes não aceitou apoiar a Revolução de 19309 e se exilou na União Soviética, em 1931, antes de ser alçado à liderança do PCB pelo Comintern, em 1934. Ele manteria essa posição até 1979, seja como prisioneiro após uma revolta malsucedida com base nos quartéis (1936-1945), como senador eleito (1946-1947) ou vivendo na clandestinidade (1947-1958, 1964-1971) e no exílio (1971-1979). Apelidado de “o cavaleiro da esperança”, seu apelo nacional sempre foi além do apelo de seu partido, o que se reflete na ambivalência do julgamento feito mais tarde por Martins, em 1992: “Com a entrada de Prestes, o partido passou a ter duas tendências. Uma tendência operária e a outra… [que era] não reformista, mas pequeno-burguesa”. Ainda assim, ele admitiu que a entrada de Prestes ajudou a transformar o PCB “em uma força política de primeira grandeza no país”, mesmo que ao custo de “diminuir sua potência ideológica e a firmeza de sua posição baseada em princípios de classe”.
A proeminência do lendário Prestes, objeto de uma campanha comunista internacional de solidariedade após sua prisão em 1936, nos lembra que a Revolução Russa não dizia respeito a um partido de trabalhadores radicais tomando o poder. Tratava-se da tomada do poder por um partido de vanguarda composto por revolucionários profissionais de diversas origens, incluindo os trabalhadores e camponeses mais conscientes, mas com um papel de destaque para intelectuais radicais e militares rebeldes. Além disso, o comprovado ascetismo e o marxismo-leninismo militante de Prestes, até o dia de sua morte, aliaram-se aos seus anos na prisão e na clandestinidade para torná-lo o epítome do revolucionário profissional, o “homem de aço” masculinizado, capaz de tudo sacrificar. O fato de Prestes, a austera “máquina” revolucionária, possuir um apelo preexistente para além das fileiras do PCB era a verdadeira particularidade do comunismo brasileiro.
Demonstrando uma inabalável lealdade ao PCB, Martins vivenciou a repressão ao longo de todas as conjunturas, antes e depois de 1930, em um país em que a “questão social era uma questão de polícia”.
Quando os militares entregaram o poder a Vargas em 1930, o jovem de 19 anos havia se unido a outros membros das classes populares para comemorar a “revolução”, mesmo que não fosse um admirador do astuto ex-governador do estado. Mais do que imediatamente, o novo regime criou um conjunto de leis trabalhistas, incluindo sindicatos financiados e controlados pelo governo, que forneceram um veículo utilizado pelos comunistas – seguindo a orientação de Lenin em Left Wing Communism [Comunismo de esquerda] – para construir um movimento sindical de massa entre trabalhadores em Porto Alegre e no resto do Brasil. Na esteira da revolta liderada por Prestes em 1935, Martins vivenciou seu primeiro longo período na clandestinidade para reemergir, com a democratização de 1945, como um habilidoso construtor de maquinas que ajudou a retomar a liderança do sindicato, trabalhou como secretário do sindicato estadual do partido e até cumpriu um mandato como vereador preso diversas vezes (eleito por outro partido, já que sua organização foi novamente banida em 1947).
Embora virulentamente anticomunista e alérgico à democracia, Vargas ganhou grande apoio popular com a retórica governamental e programas que prometeram e, até certo ponto, atenderam, às necessidades e demandas populares, ao mesmo tempo que proporcionaram um nível de reconhecimento simbólico às camadas menos favorecidas da população. Em 1950, o autodeclarado populista voltou à presidência por meio de uma eleição válida com participação em massa, antes de dar fim à própria vida em um suicídio espetaculoso em 1954. Ele deixou uma carta-testamento, na qual denunciou seus opositores militares e civis por servirem aos interesses antinacionais e antipopulares dos trustes internacionais e dos opressores nacionais do povo brasileiro.
Na época da crise, o perseguido PCB estava sob o domínio de uma linha política semi-insurrecional – que havia convocado um boicote eleitoral em 1950 –, fazendo campanha pela derrubada de Vargas pela esquerda. Os massivos protestos e revoltas populares que tomaram o país depois da notícia de sua morte obrigaram os comunistas, incluindo Martins, a realizar uma profunda autocrítica. O retraído PCB, logo enfraquecido pelas revelações acerca de Stalin, adotaria uma política mais moderada ao longo da próxima década baseada na aceitação de uma via pacífica para o socialismo e uma aliança com forças nacionalistas e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), identificado com o legado de Vargas. “A carta-testamento de Vargas”, observou Martins, “mobilizava as massas getulistas, tornando mais fácil a unidade entre comunistas e trabalhistas [e] ao acusar as forças ocultas, incentivava o movimento nacionalista.”
Em 1961, o vice-presidente gaúcho do país, Jango Goulart, do PTB, chegou à presidência, o que contribuiu para um aprofundamento da agitação reformista que alguns entusiastas denominaram “Revolução brasileira”. No entanto, esse momento de influência máxima do PCB na política nacional chegaria a um fim abrupto com um golpe militar em 31 de março de 1964, que não encontrou resistência. O golpe mais uma vez mergulhou líderes comunistas como Prestes e Martins em uma estressante vida de gato e rato como revolucionários comunistas clandestinos. Em 1966, toda a cúpula do PCB – a maioria na clandestinidade – foi condenada a longas penas de prisão por violar a Lei de Segurança Nacional inicialmente aprovada sob o governo Vargas; os fugitivos Prestes e Martins foram condenados a catorze e cinco anos de prisão, respectivamente.
Em 1971, aos 60 anos, Martins foi enviado para São Paulo com a tarefa central de trabalhar na região industrial suburbana da grande São Paulo conhecida como ABC, há muito estudada por French. Nomeada a partir de três municípios da região (Santo André, São Bernardo e São Caetano), essa Detroit brasileira se tornaria famosa no fim dos anos 1970 por uma sequência de greves metalúrgicas massivas que lançaram o presidente do sindicato Luiz Inácio Lula da Silva no caminho da presidência brasileira (2002-2010). A missão de Martins era reconstruir a força do Partido Comunista nas indústrias metalúrgicas da região, com um foco particular em Santo André, cujo sindicato havia sido fundado e há muito dirigido por seu colega comunista Marcos Andreotti.
Provido de documentos falsos, Martins chegou à região durante um período de intensa repressão às organizações “revolucionárias” da nova esquerda – também baseadas no marxismo-leninismo, embora em suas variantes cubana, chinesa e trotskista – que fizeram uma escolha estratégica, ao contrário do PCB, pela luta armada contra o regime, a ser colocada em prática imediatamente ou no futuro próximo. Explosões de bombas, roubos e sequestros espetaculosos – incluindo um assalto em larga escala à Mercedes-Benz, no ABC – haviam se intensificado depois da radicalização do regime militar com o Ato Institucional #5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que deu início a um regime de exceção com o fechamento do Congresso brasileiro, o estabelecimento de censura prévia, a suspensão do habeas corpus e o uso sistemático e rotineiro da tortura contra opositores políticos.
Após encontrar moradia em Mauá, um pequeno município do ABC, Martins teve a má sorte de chegar à região na sequência de uma campanha sistemática contra a Ação Popular (AP), uma organização católica de ex-estudantes e padres que viraram revolucionários maoístas. Vinculada a padres locais, a AP vinha conduzindo uma agitação aberta em Mauá após o AI-5, ligada também ao seu compromisso ambicioso de “proletarizar” seus quadros de estudantes e ex-estudantes, enviando-os para aprender com camponeses e trabalhadores. Em Mauá, eles chamaram a atenção, e toda a operação – documentada em longos relatórios mimeografados – desmoronou entre dezembro de 1970 e janeiro de 1971. A vítima mais célebre dessa onda repressiva foi um torneiro mecânico negro de 18 anos que foi arrastado de seu quarto de hospital para as câmaras de tortura, onde faleceu.
No entanto, a má sorte que resultou na prisão de Martins se deveu menos ao radicalismo tolo dos jovens do que ao clássico problema de todos os revolucionários. Havia infiltração policial na célula dos metalúrgicos comunistas na fábrica local da Pirelli – o principal suspeito, Martins percebeu mais tarde, era um guarda comunista que trabalhava lá –, e Martins foi entregue à polícia.18 Assim começaram os julgamentos e atribulações que marcaram sua odisseia nas mãos dos militares, de uma operação de tortura interinstitucional especializada, da polícia política social e de uma variedade de prisões em São Paulo; dali, ele foi enviado de volta ao Rio Grande do Sul para interrogatório, depois novamente a São Paulo, e finalmente retornou ao seu estado natal, onde recebeu liberdade condicional em novembro de 1973, com a exigência de que se apresentasse semanalmente à polícia. As acusações judiciais militares feitas contra ele foram suspensas em 1974, e dois anos depois ele recuperou os direitos políticos que havia perdido com sua condenação em 1966. Em 1979, negociações feitas pela oposição com os militares levaram a uma lei de anistia que não só pôs fim a outro caso iniciado contra ele em 1976, mas permitiu o retorno de exilados ao país, incluindo Prestes. A mesma lei, porém, anistiou os agentes estatais que torturaram milhares de brasileiros e ocasionaram o desaparecimento de metade da liderança do comitê central interno do PCB em 1975.
Dois anos e dois meses após a anistia, Martins publicou um livro de memórias sobre sua saga entre 1971 e 1979.19 Tempo de cárcere tinha algumas das características do gênero clássico do testemunho comunista exemplificado por Notes from the Gallows [Notas da forca], de Julius Fučík, que se baseava em escritos contrabandeados de uma prisão nazista de autoria de um membro do Comitê Central do Partido Comunista tcheco que foi executado em 1943, aos 40 anos.
Ainda que o livro de Martins retrate um comportamento revolucionário exemplar, ele em grande parte escapou às fraquezas do gênero enquanto propaganda por meio de um tipo de narrativa rigorosamente empírico e humanístico. Sem explicar nada sobre seu passado, o livro foca em um relato detalhado de sua odisseia, em que ele relembra absurdos, crimes e horrores, sem nunca engajar-se em maiores explicitações da tortura, ao contrário de outros relatos. Trata-se também de uma história sobre seu próprio papel como um forasteiro – um revolucionário “ancião” com mais de 60 anos – em meio a uma maioria de jovens estudantes universitários, majoritariamente não pertencentes à classe trabalhadora, que eram seus colegas de sofrimento e parceiros solidários. Ele dedicou particular atenção a um companheiro de cela de um grupo de luta armada que fez a transição da racionalização para a traição pública abjeta, enquanto Martins, com orgulho, explicou como ele se esquivava das perguntas para evitar trazer problemas a seus contatos, mesmo quando confrontado com eles pessoalmente.
Seu livro também é incomum de outras formas. Por exemplo, é uma das poucas memórias da prisão desse período da história brasileira – sobre o qual há dezenas e dezenas – não escritas por uma pessoa com formação universitária em uma sociedade em que, em 1960, apenas 1% dos adultos tinha qualquer educação superior. Como a maioria dos trabalhadores em São Paulo em 1960, Martins completou apenas três séries e parte da 4ª série e, assim, não havia concluído o ensino primário. No entanto, sua militância política fez dele um autodidata com uma vasta amplitude de conhecimento escrito e uma capacidade para usar as palavras, mesmo em sua forma escrita mais sofisticada.
Trata-se de um livro muito pessoal, cheio de gírias, humor e observações irônicas sobre as forças e fraquezas humanas. Imparcial e não excessivamente crítico, Tempo de cárcere é, em grande medida, a expressão de um novo desejo – talvez refletindo um público imaginado ou a fase de vida de Martins – para fornecer um relato de si mesmo conforme ele vivenciou tais eventos. Em outras palavras, a obra se distancia do livro mais classicamente “comunista” que ele publicou em 1989, quatro anos depois do fim da ditadura. Um depoimento político (55 anos do PCB) é estranhamente impessoal, distante em tom e cheio de “análise” política comunista habitual. Em contraste, na sua memória da prisão, ele havia se afastado do explicitamente político, oferecendo reflexões excepcionalmente ricas e autoconscientes. A escrita de seu livro de memórias da prisão pode até ter sido uma pausa bem-vinda em uma agitada carreira de meio século como líder local e nacional de sindicatos metalúrgicos, político e comunista com uma bagagem internacional significativa – incluindo o bloco soviético – que havia enfrentado uma interminável barragem de perseguição policial, prisões e espancamentos.
Junto com alguns outros, o livro de Martins é um clássico brasileiro negligenciado em um gênero em que, ao que parece, todo intelectual radical de certa idade sente a necessidade de colocar sua experiência no papel. Além disso, costumam fazê-lo com um sentimento de indignação em relação ao que lhes foi feito – isso é especialmente verdadeiro para aqueles que pegaram em armas – que pode parecer tanto influenciado pela classe de origem quanto em desacordo com a política revolucionária que eles alegavam abraçar na época. Nesse sentido, é possível contrastar os revolucionários profissionais com os amadores da nova esquerda estudantil do fim dos anos 1960. Isso pode ser visto em uma entrevista de 2012 com um comunista da classe trabalhadora do ABC.
Derley José de Carvalho filiou-se ao PCB quando era um jovem torneiro mecânico antes de partir, junto com seus três irmãos, e voltar-se à luta armada depois de 1964 (ele é o único sobrevivente). Ao falar sobre suas dificuldades nas mãos da polícia, ele observou que “Eu não gosto muito de dizer ‘Eu fui torturado, isso ou aquilo aconteceu’. Para mim, isso é muito sacana. Eu não entrei no movimento de gaiato. Eu sabia o que eu queria. Eu queria uma revolução, e eu ainda quero, mesmo hoje”, e não a “democracia liberal do sistema capitalista”.
A consistência e a coerência dessa fé bolchevique ficavam claras mesmo em trabalhos excepcionalmente pessoais como Tempo de cárcere, em que a Revolução Russa é invocada na última das 208 páginas: “Apesar da violência, afrontas e torturas, eu agora estou mais convencido do que nunca da justiça das ideias nobres e majestosas do marxismo-leninismo” que emergiram do “maior evento revolucionário que abalou o mundo” no século XX: “a Grande Revolução Socialista de Outubro de 1917 na Rússia tzarista… [que foi] um gigantesco salto adiante para a humanidade”. Em outra referência à União Soviética, ele declarou que a Revolução Russa havia avançado o objetivo da “revolução proletária mundial”, apesar das afirmações do contrário que ele ouviu na prisão dos chamados revolucionários que eram visceralmente antissoviéticos.
Essa declaração de fé revela uma verdade que não deve ser ignorada. É impossível falar da Revolução Russa sem levar a sério o “marxismo-leninismo” e a “revolução proletária”. Estas palavras se tornaram o projeto de vida de dezenas de milhares de homens e mulheres que viviam em sociedades opressivas muito distantes do império russo (doze mil quilômetros separam Petrogrado de Porto Alegre). Sua fé revolucionária na utopia comunista parece inconcebível em nosso mundo do século XXI, mas a passagem do Centenário da Revolução de Outubro exige que nós contemplemos tanto a revolução – no sentido de reforma versus revolução – quanto o que significava ser um revolucionário. Está claro que revolucionários se fazem, e não nascem; eles escolhem agir radicalmente, em vez de simplesmente aderir ao que existe, e são sempre diferentes daquelas pessoas que eles aspiram a liderar ou em cujo nome falam. Mas o que eles fizeram e enfrentaram em suas vidas – com mais ou menos coragem (o grande drama do livro de memórias da prisão do revolucionário é sobre a traição) – exigiu uma fé poderosa em uma utopia futura na qual hoje poucos conseguem acreditar de maneira tão simples. A opção deles não foi por contemporizar, ponderar isto ou aquilo, limitar-se a um caminho de desaprovação do estado de coisas ou meramente desejar um mundo melhor e mais justo. Em sua determinação, eles abraçaram uma luta que eles sabiam que traria mais dor do que felicidade.
Poucos estão vivos hoje daqueles que experimentaram e conseguiam se lembrar do impacto visceral que a Revolução Russa teve sobre tantas pessoas, independentemente se ela as emocionou ou horrorizou. Mas devemos dar atenção às palavras do escritor alemão Goethe quando ele insistiu, em sua velhice, que ele era feliz por ter vivido “quando o mundo foi agitado por grandes movimentos, que continuaram durante a minha vida; dessa forma, eu sou uma testemunha viva da Guerra dos Sete Anos, da separação da América da Inglaterra, da Revolução Francesa, de toda a era napoleônica com a queda deste herói, e dos eventos que se seguiram”. Assim, ele escreve, ele tinha “atingido resultados e reflexões impossíveis para quem terá de aprender sobre todas essas coisas a partir dos livros”.
Como muitos que comemoraram a queda do czar, Goethe havia simpatizado, quando jovem, com a França de 1789, rechaçando com horror a violência revolucionária e a guinada, com Napoleão, para a conquista de outros reinos e povos. Em sua velhice, ele diria: “É verdade que eu não poderia ser amigo da Revolução Francesa; pois seus horrores estavam muito próximos de mim, me chocavam a cada dia e hora, enquanto seus resultados benéficos ainda não haviam sido descobertos”.
Isto também é verdadeiro para 1917, embora saibamos que o colonialismo da era imperialista clássica – que em 1938 controlava 42% do território mundial e 32% de sua população – não teria chegado ao fim se Lenin não tivesse acrescentado três palavras a um slogan eurocêntrico do século XIX, transformando seu sentido: “Trabalhadores e povos oprimidos do mundo, uni-vos”. Nem o fascismo teria sido derrotado sem a contribuição decisiva da União Soviética e dos comunistas em todo o mundo. E, por fim, é extremamente improvável que o Brasil, ainda hoje uma das sociedades mais desiguais do mundo em termos socioeconômicos e raciais, viesse a respeitar mais ou menos as formas da democracia eleitoral, oferecendo ao mesmo tempo um mínimo de respeito aos direitos da classe trabalhadora, se não fosse pela militância obstinada e o autossacrifício de comunistas como Martins e Prestes.
Um poema de 1938 escrito pelo comunista alemão exilado Bertolt Brecht lança luz àquilo que Martins aprendeu com a vida, e não com livros, na esteira da Revolução Russa. Parafraseando o poema “To Posterity” [Para a posteridade], de Brecht, revolucionários emergem em tempos de fome, massacres e matança, onde “havia apenas injustiça e nenhuma resistência”. Eles são de uma era sombria onde “uma fronte suave é presságio de um coração duro” e “aquele que ri ainda não ouviu as terríveis notícias”. Eles chegaram a um mundo “de desordem quando a fome imperava”, “chegaram entre os homens em um momento de revolta” e “se revoltaram com eles. Assim passou-se o tempo que lhes foi dado na terra”. Eles são homens e mulheres que, quando amaram, “amaram com indiferença” e “observaram a natureza com impaciência”, porque eles “comeram seu alimento entre massacres”, assombrados pelo “vulto de assassinato” enquanto dormiam. E o revolucionário sabia, continua Brecht, que “havia pouco que eu pudesse fazer. Mas sem mim, os governantes teriam mais segurança. Esta era a minha esperança”, apesar de “o objetivo estar longe”, dificilmente alcançável.
Reconhecer suas contribuições não significa dizer que é preciso aceitar suas ilusões ou ignorar as deficiências de um movimento que teve mais do que seu quinhão de arrogância, sectarismo e autoritarismo. Ao refletirmos sobre Tempo de cárcere, é possível recordar o livro Memórias do cárcere, do romancista brasileiro Graciliano Ramos. Publicado em 1953, esse mais célebre dos livros de memórias brasileiros sobre a prisão política foi escrito depois que Ramos foi levado pela repressão deslanchada por Vargas após as desastrosas revoltas nos quartéis lideradas por Prestes em 1935.
Na época um não comunista, o autor filiou-se ao PCB em 1945 porque ele odiava o capitalismo, mas o fez sem ilusões. “Ele estava inclinado a aceitar o Partido Comunista como ele era”, lembra Paulo Mercadante, porque “sua avaliação sobre os seres humanos não lhe permitia imaginar uma irmandade de super-homens de tipo nietzschiano (ou leninista). Mas eram eles, os comunistas – trapalhões limitados e ignorantes –, que estavam lutando contra o capitalismo, na maioria dos casos com um enorme sacrifício pessoal. Isto era suficiente”. Apesar de sua filiação, o grande escritor foi alvo de críticas agudas por comunistas no fim da década de 1940 porque “Graciliano era antirretórico por temperamento e formação”. Como seu jovem discípulo da época explicou, “ele era um homem da tragédia”, para quem não havia “nada de romântico ou aventureiro sobre a revolução, a luta de classes ou a ação política. Pelo contrário, isso era parte da tragédia humana,… processos cruéis e dolorosos, mesmo que necessários”.
Nesse aspecto, Ramos compartilhava uma reflexão com Goethe, mais conservador. Na mesma entrevista em sua velhice, Goethe explicou que ele sempre se opôs àqueles que “se esforçavam, de maneira artificial, para produzir tais cenas aqui [na Alemanha], enquanto na França elas foram consequência de uma necessidade urgente”. No entanto, a observação de Goethe não era contrarrevolucionária, porque ele reconhecia que uma grande revolução é sempre culpa daqueles que governam o povo. Essa sabedoria com frequência tem sido parafraseada em um simples aforismo: “Eu odeio a revolução, mas eu odeio ainda mais aqueles que tornam as revoluções necessárias”.
* John D. French é professor de história e de estudos africanos e afro-americanos na Duke University e autor de três livros e diversos artigos. Atualmente, acabou de finalizar o primeiro volume da biografia do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, The Unknown Lula: The Origins of a Brazilian President, 1945-1968 [O desconhecido Lula: as origens de um presidente brasileiro].
* Alexandre Fortes (PhD em história, Universidade Estadual de Campinas, 2001) leciona na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde atualmente atua como pró-reitor de pesquisa e pós-graduação. Autor e editor de diversos trabalhos publicados sobre história do trabalho no Brasil, Fortes é ex-coordenador do GT Mundos do Trabalho, da Associação Nacional de História. Também foi editor da publicação da Revista Brasileira de História, de 2013 a 2015. Em 2012, foi professor visitante do programa Mellon na Duke University.
(Tradução de Mariana Tavares)
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