30 de ago. de 2017

Os títulos da dívida russa após o repúdio

Parte 6 da série: Centenário da Revolução russa e do repúdio das dívidas

Os títulos da dívida russa após o repúdio

16 de Agosto por Eric Toussaint

Embora em Fevereiro de 1918 os títulos russos tenham sido repudiados pelo governo soviético, continuaram a ser transaccionados até à década de 1990.
A política do governo francês e doutros governos teve interferiu directamente nesta vida após a morte.
Os empréstimos nunca morrem
Em 1919 o Governo francês elaborou uma lista dos detentores de títulos russos em França: 1.600.000 pessoas declararam possuí-los. Tudo leva a crer que os títulos russos representavam 33 % das obrigações estrangeiras detidas por residentes em França. Isto equivalia a 4,5 % do património dos Franceses. 40 a 45 % da dívida russa estava nas mãos de franceses. Um dos principais títulos russos transaccionados na Bolsa de Paris era o famoso empréstimo de 1906, que tinha sido previamente denunciado pelo Soviete de Petrogrado em Dezembro de 1905. Este empréstimo massivo foi emitido em Paris em Junho de 1906, no montante de 2,25 mil milhões de francos. Destinava-se a permitir ao governo czarista a continuação do pagamento das dívidas antigas e a restabelecer as finanças após o descalabro da guerra russo-japonesa. O Crédit Lyonnais |1|, banco francês especializado na emissão da dívida russa, obtinha desses empréstimos 30 % dos seus lucros totais, antes de 1914.
Durante o período precedente e posterior ao repúdio das dívidas pelo governo soviético, 72 % dos títulos de empréstimo de 1906 encontravam-se em França e eram transaccionados na Bolsa de Paris.
Havia um elevado nível de cumplicidade entre o regime czarista, o Governo francês, os banqueiros franceses que emitiam os títulos russos (com o Crédit Lyonnais à cabeça, mas também a Société Générale e o Banque de l’Union Parisienne |2|), os grandes corretores e a imprensa francesa, que foi comprada pelo emissário do czar.
Os banqueiros recebiam gordos lucros graças às comissões recebidas no momento da emissão e às operações especulativas de compra e venda dos títulos russos. Isto acontecia sem perigo de riscos graves, pois quem ficava com os títulos eram os pequenos investidores. Os proprietários dos jornais embolsavam as luvas pagas pelo emissário do czar. Também havia membros do Governo com as mãos untadas. No plano político e diplomático, o czar era um aliado de primeira água com o Governo francês e com os grandes capitalistas franceses que investiam na Rússia (tal como os capitalistas belgas).
Durante a guerra, o governo francês pagou os juros a que cada portador dos títulos tinha direito. Os juros eram de 5 %. O montante pago pelo Governo francês em substituição do império russo foi acrescentado à dívida da Rússia à França. O derrube do czar pelo povo russo em 1917 resultou num mau negócio para o Governo francês, que mantinha as esperanças no governo provisório, uma vez que este afirmara que honraria as dívidas contraídas pelo czar. As coisas azedaram a sério quando os bolcheviques e seus aliados socialistas de esquerda foram postos no governo pelos sovietes, em Novembro de 1917. Quando o governo soviético suspendeu o pagamento da dívida, em Janeiro de 1918, o Governo francês voltou a pagar aos detentores dos títulos russos os respectivos juros. Quando o governo soviético repudiou todas as dívidas do czar e as do governo provisório, a França decidiu recorrer a meios de força e preparou-se para enviar tropas contra a Rússia. A partir de Julho de 1918, quatro meses antes do armistício assinado com o império alemão, o governo francês enviou tropas para se juntarem às britânicas que tinham tomado Murmansk, no Norte da Rússia. A seguir, outros militares foram enviados para ocuparem Arcangel. Após a assinatura do armistício com Berlim, a França enviou tropas para o mar Negro, para bombardear com navios de guerra as posições do exército vermelho. Isto provocou um motim entre os marinheiros franceses. É claro que a agressão contra a Rússia soviética não foi motivada apenas pelo repúdio da dívida: as potências que nela participaram pretendiam pôr fim a um foco de contágio revolucionário. Mas os interesses financeiros da França e dos seus capitalistas constituíram um poderoso motivo. As autoridades francesas apoiavam financeiramente os generais brancos na sua luta para derrubarem os bolcheviques, que tinham proclamado o reconhecimento das dívidas do czar. Paris apoiava igualmente os políticos e os militares polacos, os ucranianos e os das repúblicas bálticas, que obtiveram a independência ou lutavam por ela, na esperança de que as autoridades dos novos Estados independentes tomassem a seu cargo uma parte das dívidas czaristas. Quando os soviéticos assinaram a partir de 1920 tratados com as repúblicas bálticas e com a Polónia, nos termos dos quais esses países não deveriam tomar a seu cargo nenhuma das dívidas czaristas, Paris não levou a coisa a bem.
Que aconteceu aos detentores de títulos russos após o repúdio das dívidas, tornado público em Fevereiro de 1918 ?
Em França, em Setembro de 1918, o Governo propôs uma troca dos títulos russos por títulos da dívida francesa. Os detentores de títulos russos podiam adquirir os títulos do novo empréstimo contraído pelo Governo francês, em troca dos títulos russos. Em Julho de 1919, o Governo francês renovou a operação. As autoridades de Roma, de Londres e de Washington fizeram o mesmo: trocaram títulos russos respectivamente por títulos de dívida italiana ou britânica ou norte-americana. Quanto ao Governo japonês, indemnizou a 100 % os portadores de títulos russos. |3|
É claro que ao procederem assim, os governos desses países corriam em auxílio dos banqueiros, que eram responsáveis pelo financiamento do regime czarista, pagando as consequências do repúdio das dívidas odiosas. No caso francês, o Governo tinha sido activamente co-responsável com os banqueiros pelo apoio ao regime do czar. O Governo francês tinha sistematicamente incentivado uma parte da sua base social – os investidores da classe média – a adquirir títulos russos.
Uma nota importante: em França, uma grande parte dos títulos russos não foi trocada por títulos franceses. Os títulos russos tinham juros superiores aos títulos franceses. A taxa de juro dos títulos russos em 1906 chegou aos 5 %, enquanto a taxa média dos títulos do Estado francês era de 3 %.
Entre 1918 e 1922, correram rumores, lançados pela imprensa financeira e pelo Governo, de que o governo soviético iria cair e o seu sucessor assumiria a dívida czarista. Ainda por cima, aquando da conferência de Génova e noutros momentos, a mesma imprensa dava a entender que Moscovo ia finalmente aceitar reconhecer a dívida. Assistiu-se então a uma situação surrealista: os títulos repudiados, emitidos por um governo que já não existia, continuavam a ser comprados e vendidos na Bolsa de Paris. É um exemplo perfeito de capital fictício.
Entre 1918 e 1919, o preço de revenda dos títulos russos oscilou entre 56,5 % e 66,25 % do seu valor facial (à partida tinham sido vendidos por 88 % do seu valor facial). O preço dos títulos soberanos franceses oscilava nessa época entre 61 % e 65 %. A diferença entre o preço dos títulos repudiados e os títulos franceses era portanto ligeira. É certo que o especulador (com os banqueiros à cabeça) faziam bom negócio ao comprarem a 56 quando os pequenos detentores da dívida, com medo deste ou daquele rumor lançado pela imprensa (a mando dos banqueiros), se desembaraçavam dela e revendiam a 66.
Tradução: Rui Viana Pereira
http://www.cadtm.org/Os-titulos-da-divida-russa-apos-o

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