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Contexto e problemática Até a década de 1970, na região do Sapê do Norte, como era conhecida a região nordeste do estado do Espírito Santo – municípios de Conceição da Barra e São Mateus – existiam cerca de 10 mil famílias negras rurais, reunidas em aproximadamente 100 comunidades. Hoje, restam apenas cerca de 1.500 famílias negras rurais, reunidas em 20 comunidades, que vêm resistindo a todo tipo de pressão para manterem suas minúsculas propriedades e sua cultura. A região do Sapê do norte foi historicamente habitada por negros. Para lá acorreram negros libertos e fugidos ainda durante o regime de escravidão, formando núcleos de resistência que se assemelhavam ou, de fato, eram considerados como “quilombos” pelas autoridades locais. Mesmo depois da abolição, em 1888, tais núcleos continuaram significando uma viva resistência à ordem vigente. Rico em recursos naturais, esse trecho da Mata Atlântica é recortado por centenas de córregos e rios que o tornam um terreno de difícil acesso, permanecendo, por isso, à margem do desenvolvimento econômico do estado e mesmo dos municípios. Este estado de coisas permitiu que aqueles agrupamentos de camponeses-pescadores negros, formados no processo de libertação, mantivessem uma autonomia relativa quanto à sociedade dominante, tanto na sua forma de exploração do meio ambiente, no comércio e escambo dos gêneros produzidos, nos seus cultos religiosos, quanto na sua organização social. A memória desse passado, expressa em narrativas sobre personagens heróicos, como o líder quilombola Benedito Meia Légua, ou nas formas e cantos rituais de manifestações como o Ticumbi e o Reis de Boi marcam profundamente toda a região. Além disso, no plano da religiosidade popular, ainda que a Cabula e a Mesa de Santa Maria – cultos afro-brasileiros especificamente ligados ao passado escravo daquela região – tenham sofrido forte oposição da Igreja Católica, o culto a São Benedito, santo negro, mantém-se central no calendário festivo oficial, abrigado pela própria Igreja. O ponto fundamental aqui, porém, é que essa organização social e essa memória dos negros do Sapê do Norte encontram um claro ponto de convergência e tradução material nas suas formas de organização e regulação do acesso à terra. Até meados dos anos de 1960, as posses de cada família e o território de cada comunidade nunca foram formalmente repartidos, nem mercantilizados. Por isso também, não eram regularizados, do ponto de vista da lei. Predominava a posse da terra e não a propriedade, assim como o território era demarcado mais como uma rede de sociabilidades do que como uma sucessão de fronteiras excludentes, segmentando o espaço físico. Essa marca da organização social e fundiária ainda pode ser percebida entre as comunidades remanescentes deste período, assim como por meio dos relatos dos mais velhos. A expansão da exploração madeireira pela região em fins dos anos 60, representou, porém, uma drástica ruptura com este estado de coisas. Beneficiando-se dos incentivos fiscais que o regime militar prontamente criou para o “setor florestal” (Lei Federal nº 5.106 de 1967) e da vulnerabilidade daquele campesinato negro, que não possuía registros de suas posses, uma empresa em especial – a Aracruz Celulose S/A – tornou-se dona de uma enorme extensão das terras do Sapê do Norte. Há uma clara memória da população regional sobre alguns dos meios utilizados desde então para adquirir – por compra ou por grilagem – tais terras. Alguns deles implicando constrangimentos morais e mesmo violências físicas. O resultado desse processo foi à expulsão de milhares de famílias para as periferias das cidades vizinhas e para a capital do estado, que levou à extinção de comunidades inteiras. Algumas dessas comunidades, porém, como dissemos, mesmo tendo suas terras reduzidas a minúsculas propriedades isoladas entre si pelos “talhões” de eucalipto, resistiram ao processo de expropriação. A situação dessas 20 comunidades e cerca de 1.500 famílias é de grave risco social. Além de continuarem sem a devida regularização de suas posses, o que mantém vivo o risco de expropriação, elas sofrem um brutal impacto social e ambiental, por terem sido encerradas no interior do eucaliptal. A produtividade do solo vem sendo reduzida, os lençóis freáticos estão se esgotando, muitos córregos e rios já secaram inteiramente, a exposição ao agrotóxico tem levado à morte, à cegueira e a uma série de problemas de saúde que, por serem crônicos, são de difícil diagnose. Além disso, esses moradores vivem sob o constrangimento diário das milícias particulares da empresa, que regulam seu acesso aos recursos naturais que restam. A convergência de três iniciativas Diante dessa situação, começou a ser negociado entre entidades do movimento negro de Conceição da Barra e São Mateus, FASE-ES e KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, um projeto de mapeamento e diagnóstico participativo que produzisse, pela primeira vez, um perfil histórico e socioeconômico das comunidades negras rurais do Sapê do Norte. O projeto de parceria entre esses atores sociais se deu em função de três iniciativas simultâneas, que ajudam a justificar e qualificar cada uma dessas partes. O movimento negro da região começou a ser organizado em meados dos anos de 1970, principalmente com o apoio da Igreja Católica. Desde então, foram realizadas muitas conquistas sociais, ainda que quase sempre no meio urbano, como o reconhecimento da importância do “folclore negro”, a realização de festas religiosas e leigas que incentivaram o “orgulho racial”, a organização de uma série de entidades representativas da causa e a eleição de um grande número de vereadores negros. Desde o início dos anos de 1990, porém, com o recuo da Igreja diante das lutas sociais e políticas, o movimento perdeu sua força, levando a uma reavaliação de suas estratégias. É justamente a partir de então, em especial a partir de 1995, que algumas lideranças formadas no período anterior começaram a se inteirar das discussões nacionais sobre “remanescentes de quilombos”. Rapidamente ficou claro que o seu meio rural, de onde a maioria daquelas lideranças vinha, encaixava-se no perfil dessa nova categoria jurídica. Nasce daí a idéia d e realizar um cadastramento das comunidades negras rurais de Conceição da Barra e São Mateus. Paralelo a isso, a FASE-ES vinha desenvolvendo projetos com a população rural dessa região. Interessada inicialmente em acompanhar e promover a população trabalhadora no carvão, de forma a melhorar suas condições de trabalho e qualidade de vida, esse trabalho rapidamente evoluiu na direção de uma análise ampla e sistêmica dos impactos socioambientais da indústria de celulose sobre as populações rurais daqueles dois municípios. Na realização dessa tarefa, ficou claro que, ao lado de categorias sociais mais usuais, como carvoeiros, pescadores e índios, a realidade da região impunha delimitar as “comunidades negras” como uma categoria específica a ser abordada. Finalmente, a partir de 2000, essas iniciativas convergiram com as do Projeto Egbé – Territórios Negros, de KOINONIA. Entre os objetivos desse projeto estão os estudos sobre comunidades negras rurais que sirvam de argumento à sua regularização fundiária, o monitoramento dos processos já iniciados em comunidades oficialmente reconhecidas como remanescentes de quilombos e o fomento a uma rede regional de esclarecimentos, trocas e apoio a estas comunidades. Depois de já ter iniciado seus trabalhos no estado do Rio de Janeiro, com a produção deste informativo e de relatórios pontuais, que já haviam dado origem ações na justiça comum e no Ministério Público Federal, o projeto somou-se à FASE e à Associação Benedito Meia-Légua para pensar o trabalho que deveria ser desenvolvido junto às comunidades do Espírito Santo. Mais tarde, outras entidades do movimento negro e o Sindicato de Trabalhadores Rurais de São Mateus (STR-SM) incorporaram-se a essas discussão, este último por ter uma larga experiência na área de interesse e por ter entre seus associados diversos trabalhadores dessas mesmas comunidades, ainda que, até então, eles não tivessem uma atenção diferenciada. Marcos gerais Surge, assim, a iniciativa interinstitucional batizada como Territórios Negros do Sapê do Norte, cujos objetivos são: • Dar capacitação para o público local (jovens dos movimentos negros dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus e das comunidades abordadas) na temática dos Remanescentes de Quilombos e na atividade de pesquisa de campo; • Levantar e organizar dados históricos, socioeconômicos e culturais sobre as cerca de 20 comunidades negras rurais já identificadas; • Consolidar e difundir tais dados entre a sociedade civil, de forma a sensibilizar a militância, as autoridades municipais, estadual e federal, o campo judiciário e a universidade para a situação das comunidades do Sapê do Norte, como forma de fomentar ações visando a garantia dos seus direitos econômicos, sociais e ambientais. Entre janeiro e abril de 2002 foi oferecido um curso de qualificação para cerca de 20 pessoas convocadas e selecionadas pela militância do movimento negro daqueles municípios. Nesse curso, foram oferecidas noções básicas sobre o tema dos “remanescentes de quilombos”, sobre a situação fundiária e ambiental da região e sobre a metodologia de surveys baseados em aplicação de questionários. Em seguida iniciamos um trabalho de leitura e adaptação dos instrumentos de pesquisa elaborados pela equipe de KOINONIA a partir de suas experiências anteriores no estado do Rio de Janeiro. Esse processo de discussão, que foi acompanhado por uma sistematização coletiva das informações disponíveis sobre as comunidades existentes, permitiu que fossem elaboradas sucessivas versões dos instrumentos de pesquisa que seriam aplicados na região, além de um quadro das comunidades que seriam abordadas, incluindo o número aproximado de casas e as distâncias e dificuldades de abordagem que seriam encontradas em cada uma delas. Por fim, encerrando o curso, um conjunto de 13 pessoas foi a campo, na comunidade de São Domingos (Conceição da Barra) para fazer o exercício de uma primeira “aplicação-piloto”. Depois dela, foi feita uma longa discussão coletiva sobre a experiência, baseada em uma leitura dos questionários preenchidos e das dificuldades encontradas. Como resultado de todo esse processo, foi criado um grupo de pesquisa constituído de dois supervisores e oito pesquisadores de campo, que iniciaram seus trabalhos no mês de junho. Até outubro, essa equipe cobriu 13 comunidades e quase 800 famílias, ou seja, aproximadamente 65% do universo previsto. Depois de ter iniciadoo os seus dois primeiros objetivos ao longo do ano de 2002, o seminário Territórios Negros do Sapê do Norte vem justamente começar a viabilizar o seu terceiro objetivo, de dar publicidade aos dados parciais dessa pesquisa ainda em curso. http://www.koinonia.org.br/tn/9/txt1.htm |
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