A valorização de nossas culturas alimentares e o Direito ao Gosto
A Campanha Comida é Patrimônio busca dar visibilidade às culturas alimentares regionais, que são nossos tesouros culinários. Com a provocação #OcupeACulturaAlimentar, a proposta é pensar a cultura como constitutiva da organização social e sua dimensão política. O intuito é apontar os vínculos entre as práticas, os saberes e os direitos no campo da Soberania e da Segurança Alimentar e Nutricional. Assim, compartilhamos a reflexão da agronôma Francileia Paula de Castro e da antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco. Coma lentamente e saboreie com reflexão o artigo “A valorização de nossas culturas alimentares e o Direito ao Gosto”.
Quem já ouviu falar e já experimentou frutas como a uvaia, o biribá, o buriti, o umbu, o baru, o pinhão, o açaí,a cagaita? E os tubérculos e raízes, como a nossa conhecida mandioca, aipim ou macaxeira, o mangarito, o inhame roxo? Ou hortaliças como a bertalha, o jambu, o maxixe? Essa variedade de alimentos, originais dos biomas Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Caatinga, é expressão de nossa rica biodiversidade, historicamente preservada, manejada e cultivada pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e pelos agricultores e agricultoras familiares.
Conta a história que a humanidade já utilizou entre 3 a 10 mil espécies de plantas para atendimento de suas necessidades alimentares. Mas a produção de alimentos, hoje, depende de um número muito reduzido, talvez 150, e desse número, o fato é que, apenas 15 espécies são as mais recorrentes: duas que produzem o açúcar (beterraba e cana de açúcar); quatro que são produtoras de amido (batata, batata-doce, feijão e mandioca); cinco que são do grupo de cereais (arroz, centeio, milho, sorgo e trigo); duas que são frutíferas (banana e coco); e duas que são oleaginosas (amendoim e soja)¹. É importante perguntar:
O que (não) estamos comendo?
Vivemos tempos de muitas mudanças de nossos hábitos alimentares com a redução da variedade em nossa alimentação, com maior consumo dos produtos alimentícios industrializados e ultraprocessados como, por exemplo, os refrigerantes, as massas de preparo instantâneo, os biscoitos recheados e outros. Houve uma redução do consumo de frutas e hortaliças com impactos na mudança do perfil nutricional da população. Cresce o índice de sobrepeso e de obesidade. Priorizar o consumo de alimentos in natura, alimentos de estação, que correspondam ao ciclo da natureza, comercializados sobretudo nas feiras de alimentos agroecológicos e orgânicos, é um passo importante. Faz bem ao meio ambiente, faz bem à saúde e valoriza os agricultores familiares e agroextrativistas, grupos que realmente produzem nossos alimentos. Os alimentos tradicionais, as práticas e receitas, os saberes, os fazeres e os sabores simbolizam formas de resistência cultural contra a padronização de nossa alimentação.
“É urgente valorizar as diferentes tradições culinárias e ter em conta o valor cultural da comida, pois corremos o risco de perder a memória alimentar do país. Assegurar o direito humano à alimentação adequada e saudável também implica em garantir o direito ao gosto”².
É importante reconhecer que comer é um ato social, cultural e também político. Mas vamos falar um pouco do Bioma Cerrado. No Mato Grosso, área de trabalho de assessoria da organização não governamental FASE-Solidariedade e Educação, a Associação Regional das Produtoras Extrativistas do Pantanal (ARPEP), por exemplo, reúne mulheres agroextrativistas de três assentamentos rurais e uma comunidade tradicional nos municípios de Cáceres e Mirassol D’Oeste, localizados na região de transição do Cerrado Matogrossense com o Pantanal, no sudoeste do estado. Estas mulheres produzem uma diversidade de alimentos a partir do aproveitamento e do beneficiamento de vários frutos da região.
O pequi (Caryocar brasiliense), é usado para a fabricação de licor, farinhas, doces e polpa,que em geral é consumido com arroz e galinha. Do pequi também se extrai o óleo para cozimento de alimentos.
Do babaçu (Orbignyaphalerata) se extrai o mesocarpo na forma de farinha para fazer mingau, que é um costume muito popular de consumo, além do óleo e outros usos.
O cumbaru, baru ou cumaru (DipteryxalataVogel) oferece um fruto que traz uma amêndoa dura, comestível, rica em proteínas e muito saborosa, lembrando o amendoim. Além de produzir pães e biscoitos com os frutos do Cerrado, essa associação passou a elaborar farinhas, farofas, óleos, rapaduras, doces, castanhas, mesocarpos in natura e licores. Os produtos são comercializados para a alimentação escolar, e na rede socioassistencial dos municípios da região (creches, asilos e hospitais). Mas também são alimentos importantes para o autoconsumo das famílias.
Outro exemplo é o mangarito, mangará, tayaó (em guarani), malangay(Xhanthosomariedelianum Schott), um tubérculo muito apreciado no passado e pouco conhecido atualmente. Fazia parte da dieta dos indígenas. Tem origem nas regiões tropicais da América do Sul e Central do Brasil e do México. As folhas são comestíveis, mas suas pequenas raízes (rizomas) são as mais valorizadas.
A prática dos intercâmbios de sementes e mudas nas festas, nas reuniões, nas feiras agroecológicas faz circular alimentos que, muitas vezes, estavam desaparecendo. A história de uma agricultora do Mato Grosso, reflete isso. Ela que recebeu raízes do mangarito da família e ainda preserva o seu cultivo, levou muda para um intercâmbio de sementes durante um encontro de agroecologia em outro estado. Tempos depois, em outra feira, viu uma agricultora trocando muda do mangarito e contando a história da qual a sua interlocutora era a própria autora.
A mangaba, fruto da mangabeira (Hancorniaspeciosa), também permanece no hábito alimentar de povos e comunidades rurais. Da fruta, rica em vitamina C, são produzidos licores, geleias, sorvetes, além de ser consumida in natura. Nos meses de dezembro a abril exala-se nas áreas do Cerrado e nas planícies pantaneiras o aroma da canjiquinha ou canjiqueira, semaneira (Byrsonimaorbignyana A. Jussieu),de sabor agridoce e de polpa carnosa. Ela marca a saborosa e rica cultura alimentar da região, além de ter uma importância econômica para povos e comunidades que comercializam localmente a fruta e as polpas de suco. Sabores estes pouco conhecidos pela maioria da população brasileira.
O agroextrativismo “é uma das práticas promotoras do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável, na medida em que contribui com o resgate da cultura alimentar regional/local e vincula a produção de alimentos ao território e às relações sociais que nele se estabelecem”².
As experiências de resgate de culturas e hábitos alimentares têm permitido uma ampla participação das mulheres, o que vem estimulando a valorização e a intensificação do plantio, manejo e uso de alimentos tradicionalmente utilizados regionalmente, assim como de plantas medicinais. Os grupos de mulheres são guardiões dos sabores e nos convidam a compartilhar, valorizar, proteger, preservar essa riqueza e a reconhecer e respeitar sua identidade cultural. Esta é uma reflexão que interessa não apenas a quem produz, quem vive no campo e na floresta, mas também para quem mora nas cidades e consome os alimentos. E para assegurar essa diversidade é fundamental garantir os direitos de quem protege a natureza e produz os alimentos.
Estamos perdendo a nossa rica biodiversidade, e esses alimentos ou estão desaparecendo ou estão sob fortes ameaças em razão de problemas gerados pelo modelo agroindustrial de produção dos alimentos. O aumento dos desmatamentos, a expansão do gado e dos monocultivos de soja, milho, cana de açúcar, assim como a contaminação do solo, das águas e dos alimentos pelo uso intensivo dos agrotóxicos, ameaçam a nossa soberania e segurança alimentar e nutricional.
Por isso, também a FASE participa da Campanha em defesa do Cerrado, Berço das águas, um bioma ameaçado. Aí estão bacias hidrográficas importantes como, por exemplo, a do São Francisco e a do Paraguai e o grande Aquífero Guarani. O Cerrado abriga milhares de espécies de plantas nativas, dentre elas inúmeras comestíveis. Aí vivem também centenas de milhares de agricultores e agricultoras familiares, quebradeiras de coco babaçu, comunidades quilombolas, povos indígenas e pescadores que cuidam da rica biodiversidade ameaçada.
Nossa proposta é a defesa da comida como patrimônio, com os seus vários sentidos para as diferentes culturas alimentares. Reafirmamos que a nossa biodiversidade é protegida pela diversidade cultural, ou nossa sociobiodiversidade, com os vários segmentos do campesinato, povos e comunidades tradicionais que fazem a história, e que precisam ter seu direito à terra e ao território e seus modos de vida protegidos.
Francileia Paula de Castro é Agrônoma, integrante da equipe da FASE no Mato Grosso
Maria Emília Lisboa Pacheco, antropóloga, integrante do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.
Maria Emília Lisboa Pacheco, antropóloga, integrante do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.
¹ CORADIN, L; SIMNSKY, A;REIS,A –Espécies Nativas da flora brasileira de valor econômico atual ou potencial,: plantas para o futuro – Região Sul, Brasília:MMA, 2011.
² CASTRO, Francileia Paula – “Cultura alimentar e agroextrativismo: saúde na mesa e renda no campo”. In: Rio de Janeiro: Revista Agriculturas, v. 11 – n. 4 • dezembro de 2014 p 11.
http://fbssan.org.br/2017/05/a-valorizacao-de-nossas-culturas-alimentares-e-o-direito-ao-gosto/
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