21 de fev. de 2018

MPF dá aula de Constituição ao "expert" Temer

MPF dá aula de Constituição ao “expert” Temer

MPF dá aula de Constituição ao "expert" Temer

Marcelo Auler

Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos.
A advertência acima partiu da cúpula do Ministério Público Federal encarregada de zelar pelos Direitos do Cidadão e ainda da coordenadora da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (Ccr) do MPF, responsável pela área criminal. Mais do que um alerta, a Nota Técnica Conjunta Nº 01/2018, a respeito do Decreto nº 9.2388 que instituiu a intervenção federal no Rio de Janeiro é uma advertência de que as falas das autoridades nos últimos dias levaram o MPF a acender o sinal de alerta. Vigiarão o que for feito no Rio, tal como consta da Nota:
As autoridades, todas de alto escalão, que assim se manifestam em relação à execução da intervenção colocam sob suspeita os propósitos democráticos do ato e demandam dos órgãos públicos comprometidos com os direitos fundamentais e a defesa da Constituição uma postura de vigilância e controle sobre o desenvolvimento de sua implementação“.
Mas, o mais curioso de tudo é que Deborah Duprat, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, coordenadora da 2ª Ccr, Domingos Sávio Drescher da Silveira e Marlon Alberto Weichert, respectivamente, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Substituto e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto, acabaram dando uma aula de Constituição a um governo presidido por um dito “professor de Direito Constitucional”. Ao que parece, na cadeira que passou a ocupar após o Golpe de 2016, Temer esqueceu o que escreveu e o que ensinou na PUC-SP. A começar pelo preceito – desrespeitado pelos golpistas – de que “quem decide sobre os destinos políticos no país fundamentalmente é o povo”.

Deborah Duprat (alto à esq.) ,Luiza Frischeisen, Marlon Weichert (embaixo à esq.) e Domingos Drescher deram aula de Constituição ao presidente/professor de Direito Constitucional. (Fotos: reproduções da internet)
O recado dos quatro procuradores também é dirigido ao ministro da Defesa Raul Jungmann e ao comandante do Exército, general Ênio Vilas Boas, que defendem direitos especiais para combater o crime.
Aliás, enquanto o governo, em todos os pronunciamentos oficiais, refere-se apenas aos traficantes, os procuradores lembraram da existência também das milícias.
Ao advertir que o combate a criminosos se faz dentro da lei – rechaçando de pronto a ideia de que se trata de inimigos –, a Nota cita os milicianos, esquecidos pelas autoridades:
organizações criminosas, incluindo milícias, devem ser investigadas com técnicas modernas que atinjam o seu financiamento e o lucro auferido com suas atividades ilegais“.
A Nota Técnica atinge diretamente o presidente da República Michel Temer, sempre apontado como um expert em Constituição – ele é professor da PUC-SP em Direito Constitucional e tem um famoso livro sobre a matéria.
A manifestação dos procuradores aponta os seguintes erros na decisão assinada por Temer e aprovada, sem vacilo, por um Congresso Nacional submisso:
O “decreto ressente-se de vícios que, se não sanados, podem representar graves violações à ordem constitucional e, sobretudo, aos direitos humanos”.
Falta indicar “quais as providências específicas que serão adotadas na execução da intervenção”, como o texto constitucional determina que seja explicitado.
O § 1º do art. 36 da Constituição, que define como deve ser o decreto interventivo, determina que se especifique “a amplitude, o prazo e as condições de execução” (da intervenção). Isto não consta do Decreto nº. 9.2388.
O prazo traçado pelo governo – 21 de dezembro de 2018 – é, no mínimo, atípico:
A excepcionalidade da intervenção também vai demandar justificativa quanto ao prazo de sua duração. Ou seja, a medida é, em princípio, de curta duração, para fazer face a uma situação que se supõe seja uma disfuncionalidade ocasional e episódica no exercício autônomo dos entes federativos. A previsão de um prazo alargado, que vai até 31 de dezembro de 2018, de forma peremptória e sem considerar eventual evolução da situação, parece atentar contra a exigência constitucional“, dizem os procuradores.
O decreto – e, logo, o presidente – erra ao pretender desconhecer toda a legislação estadual vigente, inclusive a Constituição do Rio de Janeiro, determinando que o interventor ficará “subordinado à Presidência da República e não estará sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”. Os procuradores, a respeito, destacam:
Não parece razoável supor que o decreto em questão esteja a pretender suspender vigência e eficácia de legislação estadual. Não só pela sua inaptidão formal para tanto, mas porque não há, na Constituição, dispositivo que dê ao decreto interventivo tamanha possibilidade”.
Lembram ainda que a intervenção não permite tudo. Ou seja, em nome dela não se pode suspender direitos individuais:
“A intervenção federal é uma medida extrema, porém menos grave do que o Estado de Defesa (art. 136) e o Estado de Sítio (art. 137). Na intervenção federal não pode haver restrições a direitos fundamentais, diferentemente das duas outras situações, para as quais a Constituição admite a temporária limitação de alguns direitos”.
Lembram ainda que a intervenção não permite tudo. Ou seja, em nome dela não se pode suspender direitos individuais:
Em realidade, a intervenção federal tem uma aproximação com a finalidade de preservar os direitos fundamentais e a democracia (…) Nesse sentido, não se concebe que uma intervenção federal no Poder Executivo de um Estado da Federação possa ser fonte de desrespeito à autonomia dos poderes Legislativo, Judiciário, ou mesmo às atribuição do Ministério Público. Essa leitura parece bastante evidente, pois, como referido, a restrição de direitos humanos ou fundamentais, assim como o atentado à separação de poderes, são também causas de intervenção e, portanto, jamais podem ser consequência desses atos.estadual”.

Advertência a Jungmann, Braga e Vilas Bôas: “no âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos”. (Fotos reprodução da internet e Agência Brasil)
De nada adianta o decreto estipular que o papel do interventor é de natureza militar. Não é, no entendimento dos procuradores. O interventor, embora seja um general, exercerá uma atividade civil e como tal responderá, como destaca a Nota:
Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da função de interventor com o desempenho de função estritamente militar será inconstitucional. A intervenção federal no Poder Executivo estadual é, por definição constitucional, de natureza civil e não pode um decreto instituir uma intervenção militar, sob pena de responsabilidade do próprio Presidente da República que o emitiu“.
Nesse ponto, a Nota Técnica suscita um debate interessante sobre a Justiça competente para apreciar os atos do general Walter Souza Braga Netto, na função de interventor. Os militares defendem que seus atos estarão sujeitos à Justiça Militar. A Nota, porém, levanta dúvidas sobre este entendimento e considera que sendo a Intervenção em um Estado um ato de natureza civil, a jurisdição não será militar:
“(…) a par da natureza civil da intervenção, os atos do interventor, ainda que um militar, não poderiam atrair a competência da jurisdição militar. A interpretação restritiva à competência da jurisdição militar já foi enfrentada pela Conselho de Direitos Humanos da ONU, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, todos de acordo em que deve vigorar, na matéria, o “princípio da especialidade”, que é aquele que atribui “jurisdição militar aos crimes cometidos em relação com a função militar, o que a limita a crimes militares cometidos por elementos das forças armadas”. Segundo os sistemas internacionais de direitos humanos, essa jurisdição deve ser restrita, excepcional e de competência funcional“.
Mas não fica claro se a apreciação dos seus atos será pela Justiça Estadual ou Federal. Da mesma forma, não esclarece plenamente se o cargo com natureza civil – “o interventor, tal como prevê inclusive o decreto, assume as competências do Governador na área de segurança pública e deve agir de conformidade com a legislação que regula a matéria. O interventor é, portanto, uma autoridade federal, com poderes civis, no que diz respeito à origem de seu poder; porém é uma autoridade estadual no que concerne ao exercício das competências estaduais!” – pode ser acumulado com o cargo de Comandante Militar do Leste. A dúvida surge no seguinte texto:
O decreto interventivo estipulou no art. 2º, parágrafo único, que o cargo de interventor é de “natureza militar”. Trata-se de preceito que deve ser interpretado no estrito âmbito das relações militares, que definem a existência de “cargos de natureza militar” para fins de agregação (Lei nº 6.880/80 e Decreto nº 9.088/17), ou seja, afastamento (temporário ou permanente, a depender do cargo civil) do militar de sua função ordinária, para plena assunção do cargo de natureza civil“.
Por fim a Nota afasta de vez a possibilidade de mandados de busca e apreensões coletivos, como defende o ministro da Defesa, Raul Jungmann, bem como a tese levantada pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, de os militares receberem uma espécie de salvo conduto para não terem preocupações com possíveis cobranças judiciais:
Na sequência da decretação da intervenção, a imprensa vem divulgando, além daquela atribuída ao Ministro da Defesa, declarações de autoridades federais civis e militares que direta ou indiretamente defendem a violação de direitos humanos por parte do interventor e das Forças Armadas que estão sendo mobilizadas para participar do esforço interventivo, ou pelo menos, a impunidade para eventuais abusos. Essas declarações são de extrema gravidade, pois podem produzir o efeito de estimular subordinados a praticarem abusos e violações aos direitos humanos, atingindo de modo severo a população do Rio de Janeiro, que historicamente suporta a violência em geral e a violência estatal em particular. A intervenção não pode ser realizada à margem dos direitos fundamentais. Ao contrário, somente será constitucional se for implementada para a garantia dos direitos fundamentais, inclusive à segurança pública, ao devido processo legal,à ampla defesa, à inafastabilidade da jurisdição, etc.”

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