O constitucionalista e poeta: Entrevista de Michel Temer para revista Fórum Jurídico

Reconhecido nacional e internacionalmente como um dos maiores constitucionalistas do País, Michel Temer é autor de “Elementos de Direito Constitucional”, já na 24ª edição, servindo como norte para diversos estudantes de graduação e pós-graduação. Também escreveu “Território Federal nas Constituições Brasileiras”, “Seus direitos na Constituinte”, “Constituição e Política”, “Democracia e Cidadania” e “Anônima Intimidade”, além de diversos artigos em publicações especializadas.
Comemorados os 25 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, qual é a sua avaliação? O Senhor acredita que ela tem sido respeitada?
Minha avaliação é muito positiva, por uma razão singela: nós conseguimos colocar na Constituição de 1988 princípios do liberalismo e princípios do socialismo, ou seja, amalgamamos os direitos liberais com os direitos sociais. E tudo isto permitiu que nós, logo depois da Constituinte, tivéssemos um verdadeiro banho de democracia. Nós desfrutamos das teses liberais, entre elas, evidentemente, além da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, da liberdade de informação, de reunião, estão direitos tais como o direito à propriedade, que é um direito catalogado como um direito individual no artigo 5º. O prestígio da iniciativa privada também é tese do liberalismo. E ao lado disso, nós conseguimos aplicar parte referente aos direitos sociais. Eu dou exemplo: A Constituição garante o direito à alimentação e o direito à moradia. Quando estes direitos foram encartados na Constituição, as pessoas me perguntavam: “Temer, como você, que é da área jurídica, permite uma coisa desta?”. Eu digo que estas são normas programáticas, mas como toda norma programática, ela tem um efeito impositivo. Ela exige que as políticas públicas não sejam contrárias a esses preceitos. Ao lado dos direitos liberais, nós aplicamos os direitos sociais. E isto fez acontecer uma coisa que não acontecia no passado, antes de 1988. Ou seja, uma coincidência entre a Constituição formal, quer dizer, aquilo que está escrito, e a Constituição real, ou seja, aquilo que acontece na vida do Estado. Isso é que tem dado muita segurança jurídica e institucional. Vocês percebem que nós estamos há 25, 26 anos na nova Constituição e não temos uma crise institucional no horizonte? Nós estamos elegendo Presidentes. Elegemos um intelectual, depois um operário, de- pois uma mulher e não temos nenhuma crise institucional pela frente. E com isso eu quero dizer o seguinte: do instante em que você obedece a ordem jurídica, especialmente aquela que é nascente do Estado, que é a Constituição, você garante estabilidade nas relações sociais, que é o que nós temos vivido.
O Senhor acredita que é necessária uma Reforma Política no Brasil? Como Deputa- do da Assembleia Nacional Constituinte, reputa possível uma nova Constituinte para realizá-la?
Eu acho que não é preciso Constituinte. E até a Constituinte é perigosa. Porque a ideia de Constituinte é uma ideia de ruptura com a ordem jurídica. Toda vez que você fala numa Assembleia Constituinte é porque houve tais e tantos problemas institucionais que você precisa criar um novo Estado. Então dizer que você vai fazer uma Constituinte limitada é muito difícil, porque o pressuposto de uma Constituinte é que ela seja incondicionada, ilimitada. Então, quando você tem instituições sólidas, instituir uma Constituinte exclusiva é um perigo para as próprias instituições. Quem tem que fazer isso é o Congresso Nacional. Agora, você tem duas vias para fazer isso: ou você faz um plebiscito prévio, uma consulta popular, convocada pelo Congresso Nacional, com perguntas para dizer qual a Reforma Política que o povo quer; ou você elabora um projeto no Congresso e submete esse projeto a referendo popular. Ou- vir o povo na questão da Re- forma Política é fundamental, porque quem decide sobre os destinos políticos no país fundamentalmente é o povo. Não é sem razão que a Constituição se abre dizendo que o povo é o dono do poder. Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Então é fundamental reforma política, mas poderíamos fazer longo discurso sobre o que é importante nessa reforma.
O que o levou a escrever “Anônima Intimidade”? Falta estímulo à produção literária no âmbito jurídico?
Você sabe que quando eu era criança, menino, com 15 anos, eu sempre achei que seria escritor, pois lia bastante. E depois quando entrei na faculdade a vida me encaminhou para outros setores. Encaminhou-me primeiro para a política universitária, depois para o aspecto profissional: advogado, procurador do Estado, universidade. E eu escrevi livros técnicos, como vocês sabem, especialmente na área do Direito Constitucional. Mas eu fiquei com aquilo na minha cabeça, de escrever um dia alguma coisa na área literária. E quando eu ia à Brasília e voltava de Brasília, eu pegava um guardanapo de avião, e assim que me surgia uma ideia escrevia alguma coisa. E fui guardando esse material. E num dado momento eu tinha uns 120, 130 escritos. Um dia o José Yunes viu sobre minha mesa e falou: “me deixe ver isso”. Ele leu, e achou que eu deveria publicar. Até então eu escrevia para mim. Depois o Gaudêncio Torquato, um analista político, também viu, insistiu em ler, e me sugeriu: “olhe, você tem um jeito muito metálico, muito cerimonioso, e isso aqui dará um lado humano seu”. Depois o Carlos Ayres Britto, que é poeta. Um dia eu falei: “Carlinhos, você é meu amigo e vai me dizer o que acha disso daqui, porque tem pessoas me sugerindo que eu publique”. Daí ele leu, voltou-se a mim e disse: “Olhe, Michel, eu gostei tanto que se você não tiver quem faça o prefácio eu gostaria de prefaciar”. Então eu resolvi publicar. São pensamentos, ideias, poemas que recordam um pouco meu passado. Eu confesso que, se puder, continuarei escrevendo. Agora na área literária.
O vice-presidente
Atualmente, qual o espaço do jovem na política? Ela encontra-se distanciada da universidade? Eu acho que se recuperou o espaço para a juventude na política brasileira. Eu mesmo fiz parte de um período em que o jovem participava muito do cenário político do País, que foi um cenário anterior a 1964. De 1964 em diante, em face da instalação de um sistema autoritário no País, houve uma redução muito grande da possibilidade de participação do jovem na política brasileira. A partir de 1988 estabeleceu-se uma abertura muito grande para a participação da juventude na Política. Você percebe que no Congresso mesmo, atualmente, há líderes da atividade universitária. Eu creio que hoje existe um espaço muito grande para o ingresso dos jovens na Política. O que eu digo sempre em palestras: nós, da classe jurídica, temos muitas condições para participar de um sistema democrático, porque nós estamos acostumados à contestação. A primeira peça que um advogado recebe quando inicia a carreira é uma contestação. O recurso tenta destruir a sentença, portanto, contesta as razões do juiz, do promotor, do inquérito policial. Então estamos muito acostumados à contestação. E a democracia é o regime da contrariedade, da contestação. Assim, nós, da área jurídica, embora sejamos técnicos de uma ciência determinada, que é o Direito, estamos muito acostumados à contestação, e, portanto, seremos muito úteis se participarmos da vida democrática do País
O que o levou a trilhar o caminho da política? Eu tenho uma história da academia. Fiz a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. E lá fui, logo no primeiro ano da faculdade, segundo tesoureiro do Centro Acadêmico XI de Agosto, que era o cargo que cabia aos calouros. E depois, no quarto ano, eu fui candidato à presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto, em 1962. Eu já tinha uma atuação política, que foi cortada precisamente em 1964, quando eu me formei (sou da turma de 1963). E daí não havia condições de fazer Política. Eu me afastei, fui para o aspecto profissional, para a área universitária. Daí que eu comecei a ingressar na PUC, fiz lá a minha tese de doutoramento, e dava aulas na Faculdade de Itu. Enfim, entrei no ensino universitário fortemente. Posteriormente, quando o André Franco Montoro, professor da PUC, foi eleito governador, ele me nomeou Procurador Geral do Estado. E um dia o governador Montoro me ligou e disse: “olhe, Temer, você será Secretário da Segurança Pública”. Fiquei dois anos e meio lá, aproximada- mente. Equacionei um pouco a questão da Segurança Pública no Estado de São Paulo. E um dia ele mesmo me chamou e disse: “olhe, você, professor de Direito Constitucional – eu já era professor de Direito Constitucional da PUC – vem aí a Constituinte, e acho que você deveria se candidatar”. E foi assim que, em 1986, eu me candidatei pensando que iria fazer só a Constituinte, e que voltaria para a minha atividade. Mas eu fui para lá, tive uma atuação muito grande na Constituinte, porque eu era da área de Direito Constitucional, e depois cumpri a legislatura ordinária. Daí, curiosamente, eu não saí mais. Foi assim que eu ingressei na vida pública.
Como o direito influiu nessa decisão?
Pelo seguinte: o Direito é uma ciência, especialmente o Direito Constitucional, que vocaciona de alguma maneira as pessoas para a vida pública. Então eu tinha muita participação na vida pública, e, embora estando na universidade, dando aulas, eu tentava, mesmo com aqueles atos institucionais autoritários, mostrar que o estudante, o jurista, pode dar uma interpretação democrática se fizer uma interpretação sistêmica do Direito, e não somente uma interpretação literal.
Qual seu maior desafio como vice-presidente da República?
É retirar pessoas da extrema pobreza para levá-los à classe média. E, ao mesmo tempo, manter os padrões democráticos no País. Nós vivemos sob o império de uma Constituição, a Constituição de 1988, que vem sendo aplicada na vida real, e por isso nós temos uma estabilidade institucional muito grande no País. E é claro que quando eu falo desse desafio outros desafios surgem – que são os problemas da infraestrutura do Estado, da Saúde, da Segurança Pública, da educação. São todos desafios instantes e presentes em todos os momentos da nossa vida pública.
O parlamentar
Como autor do projeto original da Lei nº 9.099/95, como o senhor avalia o desempenho dos Juizados Especiais?
Muito positivamente. Aliás, eu, durante a Constituinte, trabalhei muito pelos Juizados Especiais. Tanto os criminais, das causas de menor potencial ofensivo, como os cíveis, ou seja, aquelas causas de menor complexidade. Ajudei a inserir esse tema na Constituição Federal e, sub- sequentemente, trabalhei no projeto da Lei nº 9.099, que tem dado grandes resultados. Uma das maneiras de desafogar o Poder Judiciário é exatamente tentar resolver várias questões na área desses Juizados.
Sendo o idealizador da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, o senhor acredita que a mentalidade brasileira acerca da questão mudou?
Eu acho que vem mudando. É interessante notar que nós sempre tivemos um preconceito no Brasil, só que não era um preconceito raivoso, mas um preconceito disfarçado. Mas mesmo esse preconceito disfarçado, eu acho que vem sendo eliminado precisamente em função das políticas integradoras de todas as classes sociais, especialmente dos negros. A criação da delegacia de apuração de crimes raciais data da segunda vez que eu fui Secretário de Segurança Pública, que foi em 1994. Eu a criei precisamente porque estavam havendo atentados raciais na região do ABC, e quando instalada havia um delegado, um escrivão e cinco ou seis investigadores. Bastou criá-la para diminuírem expressivamente os atentados raciais. Então eu acho que o Brasil vem evoluindo muito nessa direção, e saudavelmente.
Em 1985, como Secretário de Segurança Pública de São Paulo, o Senhor criou a Delegacia de Defesa da Mulher. Quais os desafios necessários no enfrentamento da violência doméstica? Em qual aspecto as coordenadorias da mulher dos Tribunais de Justiça do Brasil podem auxiliar?
Em 1985 eu criei a primeira Delegacia da Mulher. Na ocasião, eu recebi um grupo de mulheres que vinham reclamar do atendimento nas Delegacias de Polícia, em que as mulheres que foram agredidas pelo marido ou que sofreram uma violência sexual qualquer iam lá falar com o delegado ou com o escrivão e, no geral, quando um homem as atendia, o atendimento era do tipo: “bom, você certa- mente é culpada”. E quando elas me contavam os vários episódios, eu pensava comigo: porque eu não crio uma Delegacia, com uma delegada mulher, com quatro ou cinco escrivãs mulheres e dez ou quinze investigadoras mulheres para atender exatamente elas? Depois que saíram de lá, eu pedi pra estudar esse assunto, redigi um Decreto, levei ao governador – que imediatamente aceitou – e eu criei a primeira Delegacia da Mulher, instalada na região central de São Paulo. E com grande resultado, porque logo depois o interior de São Paulo, por exemplo, e os bairros da Capital, começaram a pedir unidades. E eu mesmo inaugurei várias naquela época. Quando eu voltei a ser Secretário de Segurança Pública em 1993/1994, havia mais de 80 Delegacias da Mulher criadas em todo o Estado de São Paulo. Eu me lembro de que quando se discutiu a Lei Maria da Penha era invocada muitas vezes a questão da Delegacia da Mulher. Estas Coordenadorias da Mulher dos Tribunais de Justiça também ajudam muito na defesa dessa causa. Acho que ainda há um grande espaço a percorrer, mas o avanço foi inegável.
O professor e ex-aluno
Como professor e ex-aluno, qual a sua visão sobre a Faculdade de Direito da PUCSP? Eu acho que é uma grande Faculdade. É uma Faculdade que forma muito adequadamente os estudantes. Eu tive a honra de dar aula nela durante muito tempo, tanto no bacharelado como no mestrado, e os professores levam muito a sério o que fazem, tal qual os alunos. Eu sempre tive essa impressão, muito solidificada, de que os alunos que vão lá tem a ideia de que devem aproveitar as aulas para aprender. Até quando dava aulas eu chegava ao primeiro dia de aula e dizia o seguinte: “vocês estão todos aprova- dos, não tenham a menor sensação de que serão reprovados – primeiro ponto”. Segundo ponto: “eu só quero aqui dentro da sala quem tiver interesse em aprender. Quem for ler jornal aqui dentro, ficar conversando, pode ficar lá fora, que é porque não se interessa”. E por uma razão evidente, que se vocês levarem aos seus pais eles entenderão. Vocês pagam para a eu dar aula. Eu sou pago para dar aula. Então quem tem obrigação de dar aula sou eu, vocês que tem que exigir que eu esteja na sala dando aula. Não sou eu que devo exigir que vocês estejam presentes. Então vamos combinar o seguinte: não tem lista de presença, vocês estão aprovados. Quem quiser frequenta a aula. Até se vocês não vierem, vocês facilitam minha vida, porque eu vou ao escritório mais cedo, e vou trabalhar na advocacia. Mas o fato é que eu nunca consegui sair cedo. Eles compareciam. E é por isso que eu digo que os alunos tem uma seriedade muito grande. Se eles quisessem aproveitar eles diriam: “já estou aprovado, não vou mais”. Comecei na PUC como assistente do professor Geral- do Ataliba. Até vou contar um episódio curioso: eu era assistente – que naquela época era aprovado pela congregação – e frequentava as aulas com ele. Passados quinze dias da minha aprovação pela congregação ele me liga e diz: “olhe, eu vou passar um mês na Argentina dando um curso, e você vai dar as aulas no noturno, de Direito Constitucional”. E eu tremi, porque nunca tinha dado uma aula. Ele me deu alguns pontos e fui me preparar para a primeira aula, mas trêmulo. Por que naquele tempo, no noturno – eu tinha uns 27 anos – o pessoal era mais velho. Hoje não, os jovens também fazem o noturno. Então eu entrei e era o mais moço da turma. Quando eu cheguei, entrei na sala dos professores e encontrei o Montoro. Ele falou comi- go, e eu não ouvia nada do que ele dizia. Eu estava tão nervoso. Simplesmente não ouvia nada. Fui para a sala. Lembro que eu transpirava. Comecei a dar a aula com aquela conversa, mas depois o pessoal foi ficando quieto. Eu tinha treinado bastante. E dei a aula de 45 minutos. Quando terminei o pessoal aplaudiu. Fiquei num entusiasmo. Daí na quinta-feira eu tinha que voltar e me preparei para valer, e de vez em quando eu digo: eu devo a esse aplauso a minha carreira universitária. Porque se tivesse sido um fracasso eu não teria prosseguido.
Que mensagem o senhor gostaria de deixar aos alunos da PUC?
A primeira delas é o seguinte: leiam bastante. Tudo que lhes cair à mão. Não só os livros técnicos, evidentemente, fundamentais; como qualquer romance, qualquer coisa. Porque o advogado, diferentemente de qualquer outra profissão, trabalha com a palavra: ou é a palavra escrita ou é a oral. Então a leitura é algo que faz com que a imaginação vá solidificando certos conceitos. E o advogado precisa trabalhar exatamente com esses dados. E a segunda mensagem é: tenham orgulho da Faculdade que frequentam, porque é a Faculdade que vai formá-los muito bem para a profissão, para ser juiz, advogado, pro- curador, delegado, promotor, o que seja.
Perfil do Jurista
Michel Miguel Elias Temer Lulia nasceu em 23 de setembro de 1940, na cidade de Tietê, in- terior do Estado de São Paulo. Formado em direito pela universidade de São Paulo (1963), é doutor em direito constitucional pela Faculdade de direito da Pontifícia universidade católica de São Paulo, da qual foi professor na graduação e no mestrado. Também lecionou na Faculda- de de direito de itu, foi diretor do instituto Brasileiro de direito constitucional (iBdc) e é mem- bro do instituto ibero Americano de direito constitucional. Foi Procurador Geral do Estado de São Paulo (1983), Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo por duas vezes (1984-1986 e 1992-1993) e deputado federal na Assembleia Nacional constituinte, entre 1987 e 1991, além de outros seis mandatos. Foi eleito três vezes para a Presidência da câ- mara dos deputados (1997, 1999 e 2009). Entre seus projetos aprovados como parlamentar constam o código de defesa do consumidor (Lei nº 8.078/90), a Lei dos juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), a Lei de combate ao crime organizado (Lei nº 90341/95), entre outros. É o 24º vice-presidente da república.
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