Parceria estratégica é novo codinome da privatização
22 MarçoEscrito por Gilberto Bercovici e Felipe CoutinhoLido 2469 vezes

(Folha de S.Paulo, 2018) Talvez por isso a atual direção da Petrobras evite usar a palavra “privatização”. Sob o eufemismo “parcerias e desinvestimentos”, o plano estratégico tem a meta de privatizar US$ 34,7 bilhões de ativos da estatal entre 2015 e 2018. (Petrobras, PNG 2017-2021, 2016) (Petrobras, PNG 2018-2022, 2018)
As privatizações têm sofrido questionamentos na Justiça e no Tribunal de Contas da União (TCU). Em março de 2017, a Petrobras divulgou que “adaptou o seu programa de desinvestimentos à sistemática aprovada pelo TCU”. A adaptação teve resultado sobre as vendas em andamento e não surtiu efeito sobre os projetos cujos contratos de compra e venda já haviam sido assinados.
As privatizações têm sofrido questionamentos na Justiça e no Tribunal de Contas da União (TCU). Em março de 2017, a Petrobras divulgou que “adaptou o seu programa de desinvestimentos à sistemática aprovada pelo TCU”. A adaptação teve resultado sobre as vendas em andamento e não surtiu efeito sobre os projetos cujos contratos de compra e venda já haviam sido assinados.
A posição do TCU é contraditória, apesar de apontar os desvios dos processos de privatização em curso permitiu que aqueles em fase avançada fossem concluídos sem nenhum reparo. Do mesmo modo, o TCU e os vários órgãos de controle se omitem em relação à política de substituição do monopólio estatal da Petrobras por monopólios privados, o que é absolutamente vedado pela Constituição, em seus artigos 170 e 173, §4º. E, na medida em que a Petrobras vem sendo fatiada, os agentes econômicos privados tendem a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao consumidor, o que restringe ainda mais o já pífio crescimento do mercado interno.
Dos projetos que puderam ser concluídos, destacamos a venda de 90% da participação acionária na Nova Transportadora do Sudeste (NTS), da Petroquímica Suape e Citepe e da Liquigás, esta última recentemente impedida pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
Dos projetos de privatização encerrados e que foram destinados a reavaliação para compor a nova carteira, destacamos a cessão dos direitos de campos terrestres, de concessões em águas rasas nos Estados de Sergipe e Ceará, nos campos de Baúna e Tartaruga Verde e a alienação de participação acionária da BR Distribuidora que recentemente foi concluída por meio de oferta pública de ações.
O comunicado da Petrobras sobre a adequação a sistemática exigida pelo TCU registra, em nota, que “não inclui parcerias estratégicas”. (Petrobras, Adaptamos nosso Programa de Desinvestimentos à Sistemática aprovada pelo TCU, 2017)
“Parcerias estratégicas”
Diante das restrições para aceleração das privatizações decorrentes da sistemática exigida pelo TCU a alta direção da Petrobras passou a formar estratégicas parcerias.
Diante das restrições para aceleração das privatizações decorrentes da sistemática exigida pelo TCU a alta direção da Petrobras passou a formar estratégicas parcerias.
Por meio da parceria com a francesa Total vendeu 22,5% (do total de 65% que possui) da concessão de Iara e outra de 35% (dos 45% que possui) no campo de Lapa. Em fato relevante a Petrobras informa que o acordo envolve US$ 2,2 bilhões. Em entrevista coletiva Pedro Parente explica “Conversamos com a área técnica do TCU e trata-se de parceria estratégica e não desinvestimento”. (Valor, 2016)
Então ficamos assim, desinvestimento não é privatização e parceria estratégica não é desinvestimento? É evidente que o resultado da parceria é a privatização sem respeitar as regras estabelecidas com o TCU.
Para o Chairman e CEO da Total, Patrick Pouyanné, “com a concretização da Aliança Estratégica com a Petrobras, que acontece após a recente decisão de investimento para o desenvolvimento em larga escala do campo gigante de Libra, operado pela Petrobras e no qual a Total é parceira, a Total consolida sua presença no Brasil, em uma das bacias mais prolíferas do mundo, tendo como diferencial a sua expertise em águas profundas. Estamos particularmente satisfeitos por sermos a primeira major a operar um campo em produção no pré-sal brasileiro. ” Pouyanné declarou também: “pretendemos continuar fortalecendo a nossa Aliança Estratégica com a Petrobras através do compromisso de intensificar a nossa cooperação técnica em operações, pesquisa e tecnologia, e desenvolver novas sinergias entre as duas empresas”. (Petrobras, Petrobras e Total concluem a cessão de direitos das concessões de Lapa e Iara, como parte de sua Aliança Estratégica, 2018)
Em setembro de 2017, a Petrobras e a chinesa CNPC firmaram Memorando de Entendimento para iniciar tratativas referentes a uma parceria estratégica. (Petrobras, Petrobras e CNPC formam Aliança Estratégica abrangente, 2017)
Em outubro de 2017, a Petrobras assinou uma carta de intenções com a inglesa BP para identificar e avaliar conjuntamente oportunidades de negócio, envolvendo ativos ou empreendimentos no Brasil e no exterior. O documento prevê cooperação nas áreas de exploração & produção, refino, transporte e comercialização de gás, GNL, trading de petróleo, lubrificantes, combustível de aviação, geração e distribuição de energia, renováveis, tecnologia e iniciativas de baixa emissão de carbono, visando o desenvolvimento de uma potencial aliança estratégica entre as companhias. (Petrobras, Petrobras inicia negociação com a BP para aliança estratégica, 2017)
Em dezembro foi a vez da norte americana ExxonMobil, com o qual a Petrobras firmou consórcio para exploração de seis blocos offshore na Bacia de Campos. (Petrobras, Petrobras e ExxonMobil formam Aliança Estratégica, 2017)
Ainda em dezembro de 2017, Petrobras e Statoil assinam contratos relacionados à parceria estratégica. Acordo envolve cessão de 25% da participação da Petrobras no campo de Roncador, pelo valor total de US$ 2,9 bilhões. (Petrobras, Acordo envolve cessão de 25% da participação da Petrobras no campo de Roncador, pelo valor total de US$ 2,9 bilhões, 2017)
Até o momento foram firmados memorandos, acordos e contratos sob a bandeira das “parcerias estratégicas” com cinco multinacionais, a francesa Total, a chinesa CNPC, a inglesa BP, a estadunidense ExxonMobil e a norueguesa Statoil. As parcerias permitem a privatização dos ativos industriais e das concessões de petróleo e gás da Petrobras, sem seguir o regramento acordado com o TCU e descumprindo a legislação brasileira.
Conclusão
Estamos diante de uma política deliberada da atual direção da Petrobras de violar a legislação existente sobre venda de ativos de empresas estatais. Essas “parcerias estratégicas” com alienação de ativos da Petrobras são juridicamente nulas, dada a ausência de licitação pública, como determina o Plano Nacional de Desestatização e o artigo 29 da Lei 13.303/2016, que não inclui venda de ativos de sociedade de economia mista como caso para dispensa de licitação pública.
Estamos diante de uma política deliberada da atual direção da Petrobras de violar a legislação existente sobre venda de ativos de empresas estatais. Essas “parcerias estratégicas” com alienação de ativos da Petrobras são juridicamente nulas, dada a ausência de licitação pública, como determina o Plano Nacional de Desestatização e o artigo 29 da Lei 13.303/2016, que não inclui venda de ativos de sociedade de economia mista como caso para dispensa de licitação pública.
A legalidade, a isonomia e a impessoalidade são os princípios estruturantes de qualquer licitação pública. Não apenas a Constituição (artigo 37), mas a legislação específica reitera estes princípios, como a Lei nº 8.666/1993, dentre outras. A impessoalidade determina, entre outros deveres, o de que a Administração Pública esteja proibida expressamente de discriminar quem quer que seja sem fundamento legal, ou seja, todos devem ser tratados igualmente perante a Administração. Do mesmo modo, a legislação é explícita ao vedar qualquer tipo de preferência ou distinção sem fundamento no ordenamento jurídico, visando frustrar justamente o caráter competitivo do procedimento licitatório. Afinal, o fundamento da ideia de licitação é o da competição, sem privilégios entre os concorrentes. No sistema constitucional brasileiro, a licitação é a regra e a dispensa de licitação é a exceção.
O pressuposto da licitação é justamente a competição, como possibilidade de acesso de todos e quaisquer agentes econômicos capacitados. E isto vem sendo reiteradamente violado com a atuação da Petrobras nas “parcerias estratégicas”, nas quais a direção da estatal simplesmente escolhe diretamente com quem vai estabelecer a parceria, portanto dirige a venda de seus ativos para um comprador já previamente determinado.
Sob a Constituição de 1988, as empresas estatais, como a sociedade de economia mista Petrobras, estão subordinadas às finalidades do Estado. A legitimação constitucional, no caso brasileiro, desta iniciativa econômica pública, da qual as sociedades de economia mista constituem exemplos, se dá pelo cumprimento dos requisitos constitucionais e legais fixados para a sua atuação. Os objetivos das empresas estatais estão fixados por lei, não podendo furtar-se a estes objetivos. Devem cumpri-los, sob pena de desvio de finalidade. Para isto foram criadas e são mantidas pelo Poder Público.
A sociedade de economia mista é um instrumento de atuação do Estado, devendo estar acima, portanto, dos interesses privados. A Lei das S.A. (Lei nº 6.404/1976), se aplica às sociedades de economia mista, desde que seja preservado o interesse público que justifica sua criação e atuação (artigo 235). O seu artigo 238 também determina que a finalidade da sociedade de economia mista é atender ao interesse público, que motivou sua criação. A sociedade de economia mista está vinculada aos fins da lei que autoriza a sua instituição, que determina o seu objeto social e destina uma parcela do patrimônio público para aquele fim. Não pode, portanto, a sociedade de economia mista, por sua própria vontade, utilizar o patrimônio público para atender finalidade diversa da prevista em lei, conforme expressa o artigo 237 da Lei das S.A.
O objetivo essencial das sociedades de economia mista não é a obtenção de lucro, mas a implementação de políticas públicas. A esfera de atuação das sociedades de economia mista é a dos objetivos da política econômica, de estruturação de finalidades maiores, cuja instituição e funcionamento ultrapassam a racionalidade de um único ator individual (como a própria sociedade ou seus acionistas). A empresa estatal em geral, e a sociedade de economia mista em particular, não tem apenas finalidades microeconômicas, ou seja, estritamente “empresariais”, mas tem essencialmente objetivos macroeconômicos a atingir, como instrumento da atuação econômica do Estado.
Portanto, fica evidente que as sociedades de economia mista, como a Petrobras, estão constitucional e legalmente vinculadas aos fins definidos nas suas leis instituidoras, não havendo possibilidade jurídica de utilizarem o seu patrimônio, por sua própria vontade ou do governante de plantão, para atender a outras finalidades, comprometendo, inclusive, a sua própria continuidade e atuação como ente da Administração Pública Indireta do Estado. As chamadas “parcerias estratégicas” não passam de uma forma de burlar as condicionantes constitucionais e legais de atuação da Petrobras, privilegiando determinados agentes econômicos privados, geralmente estrangeiros, escolhidos a dedo, sem nenhuma forma de concorrência pública, em clara violação às determinações impostas pelos órgãos de controle da Administração, como o TCU.
A partir de 1º de janeiro de 2019, o novo presidente eleito precisa revogar todas as medidas privatistas e antinacionais que estão sendo tomadas por Michel Temer e a atual direção da Petrobras. As multinacionais estrangeiras que se beneficiam desta alienação devem ser tratadas como receptadoras de bens vendidos de forma ilegal e o patrimônio estatal devidamente recuperado para o bem de todos os brasileiros.
* Gilberto Bercovici é Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
** Felipe Coutinho é Engenheiro Químico e Presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET)
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