Bethânia, Caetano, Boulos, Lula: “Fevereiros” em Abril ou as tantas formas de resistir
13 abr 2018 19:18
Tudo é político, corpo é resistência, pele é resistência, beleza é resistência, amor é resistência. E, como no filme “Fevereiros”, tudo se costura, tudo se liga.
1. Acabei a falar de amor na semana passada, recomeço a falar de amor.
Terça-feira à noite, o mais-que-lotado cinema Arlequin em Paris chorou, cantou e celebrou “Fevereiros”, filme de Marcio Debellian com Maria Bethânia/Caetano Veloso, Carnaval da Mangueira/Festas de Santo Amaro, Nossa Senhora/candomblé, Rio de Janeiro/Bahia e o mais que se verá. Menos de 48 horas depois, quinta-feira ao fim da tarde, o Teatro Capitólio em Lisboa ficou de tal modo apinhado para a sessão “Em defesa da democracia brasileira” que era difícil passar nos corredores laterais, com tanta gente em pé e sentada no chão.
Estive nas duas plateias, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa mas o que há em comum entre elas nunca foi tão urgente. Um amor que não dá para ficar quieto, esse amor pelo Brasil, resiste de muitas formas.
Terça-feira à noite, o mais-que-lotado cinema Arlequin em Paris chorou, cantou e celebrou “Fevereiros”, filme de Marcio Debellian com Maria Bethânia/Caetano Veloso, Carnaval da Mangueira/Festas de Santo Amaro, Nossa Senhora/candomblé, Rio de Janeiro/Bahia e o mais que se verá. Menos de 48 horas depois, quinta-feira ao fim da tarde, o Teatro Capitólio em Lisboa ficou de tal modo apinhado para a sessão “Em defesa da democracia brasileira” que era difícil passar nos corredores laterais, com tanta gente em pé e sentada no chão.
Estive nas duas plateias, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa mas o que há em comum entre elas nunca foi tão urgente. Um amor que não dá para ficar quieto, esse amor pelo Brasil, resiste de muitas formas.
2. Espero que “Fevereiros” chegue em breve a Portugal. Somando os brasileiros que estão a mil por aqui (na rua, quero dizer, não no investimento imobiliário) com os portugueses que amam o Brasil desde que se conhecem, “Fevereiros” dá para esgotar plateias.
A nascente deste filme vem de Junho de 2015, vai fazer três anos: nada na história de um país, tudo na história actual do Brasil. Ou seja, quando aconteceu aquilo que levou Marcio Debellian a pensar o filme, Dilma Rousseff era presidente e ninguém acreditaria (por mais que uma franja o desejasse) que Lula fosse preso. Apenas meses depois, porém, iniciou-se a avalanche do impeachment, com a tal franja cada vez mais poderosa, até ao que sabemos, Lula fechado numa cela sem provas contra ele. Não sendo sobre nada disso, o filme foi sendo afectado por isso, e visto agora fala de muito mais do que aparentemente fala. Tem essa potência de o presente se projectar nele, ao mesmo tempo que se projecta para além do presente.
O que aconteceu em Junho de 2015 foi a Mangueira anunciar que Maria Bethânia seria o seu tema no enredo do Carnaval seguinte. A Mangueira é provavelmente a mais famosa escola de samba do Rio de Janeiro, ou seja do mundo. Maria Bethânia é provavelmente a cantora mais cultuada do Brasil, como entidade mística, mesmo. A Mangueira não ganhava um Carnaval havia 14 anos, mas ganhara sempre que escolhera artistas como tema. Tudo apontava para um grande enredo, sob o título “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá” (referência ao orixá — santo — do candomblé, tambémconhecido como Oiá ou Iansã, de que Bethânia é devota). E Marcio Debellian não só era torcedor da verde-e-rosa (as cores da Mangueira) como era amador de Bethânia desde que se sabia gente, do género de ir ver todos os shows de uma série, noite a noite. Sou amiga de Marcio há sete anos e há sete anos que testemunho este amor incondicional. Foi Marcio quem republicou “Maria Bethânia Guerreira Guerrilha”, livro-poema de Reynaldo Jardim, apreendido e queimado pela ditadura militar em 1968, inspirado na aparição de Bethânia. Em 1968, ela acabava de pisar o palco do Teatro Opinião do Rio de Janeiro para substituir Nara Leão, assombrando todos ao cantar “Carcará”, aquela voz largada, aquele cabelão num corpo de menina, delgada, desconhecida, recém-chegada da Bahia, de onde só pudera sair autorizada pela mãe porque o irmão a acompanhava. Esse irmão chamado Caetano Veloso.
Então o anúncio do enredo da Mangueira desencadeou a ideia do filme, que depois se foi desdobrando. Porque o Rio puxou a Bahia, Bethânia puxou Caetano, Carnaval puxou as Festas de Santo Amaro da Purificação, cidadezinha do Recôncavo baiano onde até hoje está a casa dos Veloso, e o tema de Oyá puxou Nossa Senhora, a outra devoção de Bethânia, filha de candomblé e do catolicismo mestiço da Bahia. Até hoje, há celebrações de candomblé que começam na casa dos Veloso, como há celebrações católicas que aí começam.
Tudo isso é costurado em “Fevereiros” com a arte, o ritmo, a fluidez daqueles homens e mulheres no barracão da Mangueira costurando o milagre que é o Carnaval. O amor, a resistência de a cada ano preparar aquela festa, aquelas roupas, aqueles carros, a beleza àquela altura que fura a noite, rumo à aurora, quando o sol vem vindo, colorindo, colorindo, cantou Cartola. Beleza erguida do lixo, da violência, do descaso do estado, de periferias hoje tomadas sobretudo pelas milícias, mais que pelo tráfico. Acima de tudo isso se levanta a menina dos olhos de Oyá, Bethânia dançando, com uma afilhada de cada lado, e com ela cada carro, cada ala, cada roda, incluindo a das baianas, até à primeira ou derradeira maravilha do mundo que é a bateria, baque puro no coração do mundo. Essa é a beleza que todos esperam em Fevereiro, pino do Verão, mês do Carnaval, mas que para Bethânia é também mês da festa da sua outra devoção, Nossa Senhora, em Santo Amaro. Daí o filme chamar-se “Fevereiros”, Bethânia explica comoas coisas mais importantes para ela acontecem em Fevereiro, e se organiza o ano inteiro para passar Fevereiro em Santo Amaro.
Há outros membros da família Veloso no filme, sobretudo a doce Mabel, essa irmã que nunca foi anjo de procissão como Bethânia (porque a acharam escura demais!), e sempre parece estar tão perto de o ser em carne-e-osso. Mas Caetano tem um espaço natural de protagonista a par de Bethânia porque como Julio Cortázar bem adivinhou, e a lendária mãe-de-santo Mãe Menininha disse, Bethânia e Caetano são a mesma pessoa. Tanto que quando Bethânia foi fazer a sua iniciação no candomblé, Mãe Meninha disse que Caetano tinha de fazer junto, ele que era ateu.
Para mim, essa é mais uma costura do filme, talvez a maior, ou a mais difícil, a de ateus, pagãos e crentes tradicionais. Ateia cheguei ao Rio de Janeiro, e o Brasil ensinou-me a ver os milagres de todos os dias, o milagre da noite para o dia, milagre humano, para mim. Quando uma vez o Marcio me levou a um terreiro de umbanda (outra religião afro-brasileira, como o candomblé), eu disse no fim, ateia empedernida: não vejo deuses, vejo gente. Até hoje é assim: gente que são deuses, milagres. Mas não apenas, também algo que vem da conjugação de animal, vegetal, mineral com o sistema solar e além. Algo para o qual não tenho nome, e portanto é da ordem do mistério, da magia. De todas essas costuras se faz “Fevereiros”.
Em jeito não de spoiler mas para picar quem possa trazer o filme a Portugal, Chico Buarque também entra, e há uma sequência de arquivo antológica que pôs o Arlequin a rir à gargalhada, na sessão de terça-feira. É a sequência em que a jovem mística Bethânia explica ao jovem ateu Chico os feitos da orixá Iansã. Chico não diz uma palavra, só o vemos de perfil, mas o que vemos basta. Se Bethânia estivesse a desembarcar de uma nave espacial a cara dele não podia ser mais engraçada.
Nunca fui ouvinte por aí além de Maria Bethânia. O mais perto que estou dela é pelo amor a Caetano, aos amigos e, com o tempo, pela sua ligação extraordinária à poesia. Aí, vejo as imagens dela no show Opinião e fico como a plateia lá, assombrada. Bethânia, de facto, é meio não deste mundo. Mas se em algum lugar vi Bethânia mais próxima de ser gente como a gente, sendo tambémtodo o mistério que é, foi neste filme.
De resto, há uma última história de resistência pelo amor em “Fevereiros”, a da própria concretização do filme, que Marcio foi fazendo como podia, juntando dinheiro daqui, depois dali, esperando nos buracos que a crise abriu, e ainda não tendo feito o lançamento no Brasil.
A nascente deste filme vem de Junho de 2015, vai fazer três anos: nada na história de um país, tudo na história actual do Brasil. Ou seja, quando aconteceu aquilo que levou Marcio Debellian a pensar o filme, Dilma Rousseff era presidente e ninguém acreditaria (por mais que uma franja o desejasse) que Lula fosse preso. Apenas meses depois, porém, iniciou-se a avalanche do impeachment, com a tal franja cada vez mais poderosa, até ao que sabemos, Lula fechado numa cela sem provas contra ele. Não sendo sobre nada disso, o filme foi sendo afectado por isso, e visto agora fala de muito mais do que aparentemente fala. Tem essa potência de o presente se projectar nele, ao mesmo tempo que se projecta para além do presente.
O que aconteceu em Junho de 2015 foi a Mangueira anunciar que Maria Bethânia seria o seu tema no enredo do Carnaval seguinte. A Mangueira é provavelmente a mais famosa escola de samba do Rio de Janeiro, ou seja do mundo. Maria Bethânia é provavelmente a cantora mais cultuada do Brasil, como entidade mística, mesmo. A Mangueira não ganhava um Carnaval havia 14 anos, mas ganhara sempre que escolhera artistas como tema. Tudo apontava para um grande enredo, sob o título “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá” (referência ao orixá — santo — do candomblé, também
Então o anúncio do enredo da Mangueira desencadeou a ideia do filme, que depois se foi desdobrando. Porque o Rio puxou a Bahia, Bethânia puxou Caetano, Carnaval puxou as Festas de Santo Amaro da Purificação, cidadezinha do Recôncavo baiano onde até hoje está a casa dos Veloso, e o tema de Oyá puxou Nossa Senhora, a outra devoção de Bethânia, filha de candomblé e do catolicismo mestiço da Bahia. Até hoje, há celebrações de candomblé que começam na casa dos Veloso, como há celebrações católicas que aí começam.
Tudo isso é costurado em “Fevereiros” com a arte, o ritmo, a fluidez daqueles homens e mulheres no barracão da Mangueira costurando o milagre que é o Carnaval. O amor, a resistência de a cada ano preparar aquela festa, aquelas roupas, aqueles carros, a beleza àquela altura que fura a noite, rumo à aurora, quando o sol vem vindo, colorindo, colorindo, cantou Cartola. Beleza erguida do lixo, da violência, do descaso do estado, de periferias hoje tomadas sobretudo pelas milícias, mais que pelo tráfico. Acima de tudo isso se levanta a menina dos olhos de Oyá, Bethânia dançando, com uma afilhada de cada lado, e com ela cada carro, cada ala, cada roda, incluindo a das baianas, até à primeira ou derradeira maravilha do mundo que é a bateria, baque puro no coração do mundo. Essa é a beleza que todos esperam em Fevereiro, pino do Verão, mês do Carnaval, mas que para Bethânia é também mês da festa da sua outra devoção, Nossa Senhora, em Santo Amaro. Daí o filme chamar-se “Fevereiros”, Bethânia explica como
Há outros membros da família Veloso no filme, sobretudo a doce Mabel, essa irmã que nunca foi anjo de procissão como Bethânia (porque a acharam escura demais!), e sempre parece estar tão perto de o ser em carne-e-osso. Mas Caetano tem um espaço natural de protagonista a par de Bethânia porque como Julio Cortázar bem adivinhou, e a lendária mãe-de-santo Mãe Menininha disse, Bethânia e Caetano são a mesma pessoa. Tanto que quando Bethânia foi fazer a sua iniciação no candomblé, Mãe Meninha disse que Caetano tinha de fazer junto, ele que era ateu.
Para mim, essa é mais uma costura do filme, talvez a maior, ou a mais difícil, a de ateus, pagãos e crentes tradicionais. Ateia cheguei ao Rio de Janeiro, e o Brasil ensinou-me a ver os milagres de todos os dias, o milagre da noite para o dia, milagre humano, para mim. Quando uma vez o Marcio me levou a um terreiro de umbanda (outra religião afro-brasileira, como o candomblé), eu disse no fim, ateia empedernida: não vejo deuses, vejo gente. Até hoje é assim: gente que são deuses, milagres. Mas não apenas, também algo que vem da conjugação de animal, vegetal, mineral com o sistema solar e além. Algo para o qual não tenho nome, e portanto é da ordem do mistério, da magia. De todas essas costuras se faz “Fevereiros”.
Em jeito não de spoiler mas para picar quem possa trazer o filme a Portugal, Chico Buarque também entra, e há uma sequência de arquivo antológica que pôs o Arlequin a rir à gargalhada, na sessão de terça-feira. É a sequência em que a jovem mística Bethânia explica ao jovem ateu Chico os feitos da orixá Iansã. Chico não diz uma palavra, só o vemos de perfil, mas o que vemos basta. Se Bethânia estivesse a desembarcar de uma nave espacial a cara dele não podia ser mais engraçada.
Nunca fui ouvinte por aí além de Maria Bethânia. O mais perto que estou dela é pelo amor a Caetano, aos amigos e, com o tempo, pela sua ligação extraordinária à poesia. Aí, vejo as imagens dela no show Opinião e fico como a plateia lá, assombrada. Bethânia, de facto, é meio não deste mundo. Mas se em algum lugar vi Bethânia mais próxima de ser gente como a gente, sendo também
De resto, há uma última história de resistência pelo amor em “Fevereiros”, a da própria concretização do filme, que Marcio foi fazendo como podia, juntando dinheiro daqui, depois dali, esperando nos buracos que a crise abriu, e ainda não tendo feito o lançamento no Brasil.
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