13 de ago. de 2018

A retórica indígena e a narrativa da Constituição.

A retórica indígena e a narrativa da Constituição

Por Pedro Mandagará*, em Suplemento Pernambuco
Em outubro, a Constituição Federal do Brasil faz trinta anos. É um dos textos que mais duram em nossa história. As Constituições mais perenes foram as primeiras: a do Império, de 1824, que foi substituída pela primeira da República, em 1891. Esta durou até 1934, fechando 43 anos. As três décadas da brasileira são pouco perto da que rege os Estados Unidos, em vigor desde 1789, ou da longa história do constitucionalismo inglês, que remonta à Magna Carta (1215), mas ainda assim representam um período precioso em nossa história.
A duração da Constituição de 1988, no entanto, não necessariamente representa sua estabilidade. Há um constante ataque, intensificado nos últimos anos, contra as diversas garantias de direitos nela estabelecidas. Sobre a gratuidade do ensino, por exemplo, costuma cair parte da culpa pelas crises fiscais do Governo Federal, ao menos na leitura de economistas ortodoxos. Outros princípios, como a função social da propriedade, sofrem ataques de setores sociais ligados ao agronegócio e de filósofos neoconservadores, como Denis Rosenfield. Como forma de ataque indireto, a diminuição brutal de financiamento torna praticamente letra morta os direitos à cultura e ao desporto.
Parte dessa instabilidade parece vir do processo político de construção do texto constitucional, negociado sob forte pressão social. Foi somente o acúmulo de anos de pressão política dos povos indígenas e seus colaboradores que permitiram que os artigos 231 e 232 da Constituição fossem dos mais avançados, até hoje, no que diz respeito aos direitos dessa população. Naquele momento, os povos indígenas vinham de duas décadas de ataques incessantes, que pareciam acelerar o processo genocida que acompanhou toda a formação do Brasil. Os projetos de desenvolvimento dos governos militares para a Amazônia atingiram diversos povos de recente contato ou ainda isolados, completamente despreparados para a introdução de novas doenças, para o mundo do dinheiro e da mercadoria, ou para o confronto com armas de fogo [nota 1]. O caso dos yanomami, visados por conta dos minérios presentes em suas terras, foi bastante emblemático. A irresponsabilidade governamental entre o final dos anos 1970 e o início dos 1990 gerou uma corrida do ouro no que é hoje a Terra Indígena Yanomami, com a presença de dezenas de milhares de garimpeiros que levaram doenças e armas à região, causando a morte de cerca de 20% da população yanomami (segundo dados da ONG Survival International).
No processo de luta e resistência a partir dos anos 1970 forjou-se o atual movimento indígena brasileiro. Um dos seus maiores líderes é Ailton Krenak. Nascido em 1953, Ailton vem de uma história de violência secular contra os “botocudos”, como eram chamados os povos indígenas da região do Rio Doce e proximidades, em Minas Gerais, Espírito Santo e sul da Bahia. Os botocudos do leste acabaram por se denominar Krenak, nome de um de seus líderes no início do século XX, a partir da autodenominação krén, gente (Paraíso, 2018). O povo sofreu um processo contínuo de ataques e deslocamentos ao longo do século XX, incluindo deslocamentos forçados e a internação de membros da etnia no Reformatório Krenak e na Fazenda Guarani, instituições prisionais para indígenas na ditadura militar que funcionavam como campos de concentração e trabalhos forçados. Somente em 1997 os Krenak tiveram uma parte mínima de suas terras originárias demarcadas. E menos de 20 anos depois, em novembro de 2015, seu território foi afetado pela maior catástrofe ambiental da história brasileira: a destruição do rio Doce pela lama vinda de uma barragem da mineradora Samarco.
No meio da catástrofe contínua que afetava seu povo, Ailton Krenak agiu como um dos principais nomes das organizações de direitos indígenas surgidas nos anos 1980, como a União das Nações Indígenas. Durante a Assembleia Nacional Constituinte, duas emendas populares referentes aos direitos indígenas foram protocoladas. A emenda 39, defendida pela Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e outras instituições, definia o Brasil como uma “República Federativa e plurinacional” (Emendas populares, p. 36), o que, mesmo sendo a verdade dos fatos, revelou-se inaceitável para muitos constituintes nacionalistas. O resultado mais imediato foi uma campanha difamatória contra o Cimi levada a cabo pela imprensa, notadamente pelo jornal O Estado de S. Paulo (Brand, 2008; Ricardo et alii, 1991, p. 48-50). Embora rapidamente se tenha demonstrado que os documentos contra o Cimi eram forjados, houve o risco de retrocesso a uma visão integracionista dos povos indígenas. Foi nesse contexto que Ailton Krenak discursou na Constituinte a favor de outra proposta, a emenda 40, defendida pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), pela Coordenação Nacional dos Geólogos (Conage) e pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A emenda 40 definia a sociedade brasileira como pluriétnica (Emendas, p. 37), o que não chegou ao texto constitucional, e defendia o direito à organização social e à ocupação tradicional de terras, o que efetivamente entrou na Constituição. Naquele momento a emenda 40 e os direitos propostos para os povos indígenas estavam sob ataque midiático e político, e o discurso de Ailton Krenak interveio nessa discussão de forma contundente (Ricardo et alii, 1991, p. 23).
AILTON KRENAK E A RETÓRICA
Os antigos gregos e latinos definiam quatro partes da retórica, isto é, da arte de argumentar e convencer [nota 2]. A primeira parte era a invenção, a atividade de descobrir argumentos para a defesa ou acusação num processo judicial (gênero judiciário), para a defesa de determinada decisão política (gênero deliberativo) ou para o elogio ou censura de alguém ou de algo (gênero epidítico). Com esses fins em mente – defender ou acusar, aconselhar, elogiar ou censurar – o orador podia escolher argumentos dentro de uma técnica bastante elaborada. Seria necessário utilizar argumentos dentro de três tipos, definidos já por Aristóteles em sua retórica: ethos, ou o caráter que o orador assume, pathos, ou os sentimentos que se quer ter como resposta da plateia, e logos, ou os argumentos que tentam provar ou refutar determinadas teses.
disposição, segunda parte da retórica, trata da ordenação do discurso. Há diversas versões dessa ordem. A mais clássica, segundo Reboul (2004, p. 55) tem quatro segmentos: o exórdio ou o proêmio, que inicia o discurso e deve captar a atenção e benevolência da audiência; a narração, que conta uma versão dos fatos de que se está tratando; a confirmação, que traz provas, argumentos e contra-argumentos; e a peroração, que encerra o discurso.
elocução, terceira parte da retórica, trata do estilo que se utiliza – é aí que se dá o estudo das figuras de linguagem, a que às vezes se reduz toda a retórica. Por fim, a ação trata da performance do discurso, do corpo e da voz do orador como parte do processo argumentativo.
A partir desse breve resumo de alguns elementos da arte milenar da retórica, mostro agora como Ailton Krenak mobiliza essa arte em seu discurso. Proferido em 4 de setembro de 1987, o discurso responde de maneira mais imediata ao substitutivo do relator Bernardo Cabral (PMDB-AM) ao anteprojeto de Constituição, que, ao sistematizar as propostas de oito diferentes comissões temáticas, modificou e desfigurou as propostas relativas aos direitos indígenas (Ricardo et alii, p. 18-19). Enquanto orador, Ailton Krenak encarna a postura de um defensor. Mesmo que o discurso fosse do gênero deliberativo, pois se tratava de uma discussão política, pode-se ver elementos do gênero judiciário, pois Ailton defendia os povos indígenas e seus aliados de ataques e acusações. O exórdio do discurso é exemplar. Reproduzo:
Sr. presidente, srs. constituintes, eu, com a responsabilidade de, nesta ocasião, fazer a defesa de uma proposta das populações indígenas à Assembleia Nacional Constituinte, havia decidido, inicialmente, não fazer uso da palavra, mas de utilizar parte do tempo que me é garantido para defesa de nossa proposta numa manifestação de cultura com o significado de indignação – e que pode expressar também luto – pelas insistentes agressões que o povo indígena tem indiretamente sofrido pela falsa polêmica que se estabeleceu em torno dos direitos fundamentais do povo indígena e que, embora não estejam sendo colocados diretamente contra o povo indígena, visam atingir gravemente os direitos fundamentais de nosso povo. (Krenak, p. 32) [nota 3]
Nesta primeira frase do discurso, vemos ethos ou caráter e pathos ou sentimento sendo definidos de maneira muito clara e efetiva pelo orador. O caráter do orador se define como representante legítimo dos povos indígenas. Se o orador é um “eu” que tem certa responsabilidade, também é parte de um “nosso povo”, com que se encerra o parágrafo – e a passagem de um a outro, de começar com um eu e terminar com um nós, constrói a confiabilidade do orador enquanto representante. O caráter do orador também se define pelo sentimento, por estar indignado ou em luto. É este o pathos– a indignação – que se pretende transmitir à audiência.
Em seguida ao exórdio, o orador narra a participação indígena nos debates da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte. Ele elogia a “reciprocidade de muitos dos srs. constituintes” à seriedade com que indígenas e aliados trabalharam, permitindo “a construção, a elaboração de um texto que provavelmente tenha sido o mais avançado que este país já produziu com relação aos direitos do povo indígena” (p. 33). E elenca, e discute, os direitos essenciais garantidos pelo texto – os direitos originários às terras e o reconhecimento da cultura e da tradição.
Ao discutir os direitos essenciais, traz argumentos pela justiça de sua inclusão no texto constitucional (confirmação):
Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus direitos originários às terras em que habitam – e atentem bem para o que digo: não estamos reivindicando nem reclamando qualquer parte de nada que não nos cabe legitimamente e de que não esteja sob os pés do povo indígena, sob o habitat, nas áreas de ocupação cultural, histórica e tradicional do povo indígena. Assegurar isto, reconhecer às populações indígenas as suas formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição, se colocam como condições fundamentais para que o povo indígena estabeleça relações harmoniosas com a sociedade nacional, para que haja realmente uma perspectiva de futuro de vida para o povo indígena, e não de uma ameaça permanente e incessante. (p. 33)
Ambos os elementos, território e cultura, haviam sido desfigurados e restritos pelo substitutivo de Bernardo Cabral. Na proposta deste, só haveria direito originário às “terras de posse imemorial onde [os indígenas] se acham permanentemente localizados” (Ricardo et alii, p. 18, Primeiro substitutivo, p. 47, acréscimo meu), o que restringe o alcance da definição e desconsidera o histórico de deslocamentos forçados de diversos povos. Contra esta definição, Krenak defende a complexidade do pertencimento ao território, que depende de elementos de cultura, história e tradição, e defende que o direito não é só relativo ao tradicional ou “imemorial”, mas ao efetivamente habitado por conta de circunstâncias históricas.
Também o reconhecimento da cultura indígena havia sido desfigurado no substitutivo de Cabral, que definia “níveis de aculturação” e a limitação de direitos para indígenas supostamente aculturados [nota 4]. Contra isso, Krenak diz que há formas, no plural, de se manifestar as culturas indígenas e que estas devem ser reconhecidas. As “relações harmoniosas com a sociedade nacional” são atingidas não com a assimilação ou “aculturação”, mas com o respeito às diversas culturas.
No que diz respeito à elocução, o discurso de Ailton Krenak utiliza diversas figuras de linguagem e de pensamento. Mais do que enumerá-las, proponho seguir duas dessas figuras, que amarram o texto – uma no exórdio, outra ao fim da peroração – e que dão sentido a sua performance, sua ação.
No início do texto, o orador utiliza uma figura de pensamento que a tradição retórica chama de preterição (Reboul, p. 134). Esta figura consiste em dizer que não se vai falar de algo, de que imediatamente já se fala. Assim, Ailton Krenak diz que havia decidido não usar seu tempo com a fala, mas com uma manifestação cultural de indignação e luto – apesar disso, mesmo assim, fala. Seu argumento posterior em prol da diversidade de manifestações culturais indígenas e do valor dessa diversidade para a “sociedade nacional” faz ver que o efeito desta preterição não se encerra no exórdio e que sua temática continua ao longo do discurso.
A parte verdadeiramente genial, que tornou o discurso de Ailton Krenak um dos momentos mais memoráveis da Constituinte, é quando a figura de pensamento se torna ação. Para refletir sobre este momento vou fazer referência à gravação em vídeo de parte do discurso. [nota 5]
O vídeo mostra Ailton Krenak discursando de pé, com uma voz pausada e firme, sem ler de qualquer papel visível. A complexidade do discurso afasta a probabilidade de improviso, o que nos deixa diante do uso de uma excelente memória, faculdade primordial da ação segundo os antigos retóricos. Ailton tem cabelos um tanto compridos e usa um terno impecavelmente branco:
Os srs. sabem, V. Exas. sabem que o povo indígena está muito distante de poder influenciar a maneira que estão sugerindo os destinos do Brasil. Pelo contrário. Somos talvez a parcela mais frágil nesse processo de luta de interesse que se tem manifestado extremamente brutal, extremamente desrespeitosa, extremamente aética.
Espero não agredir, com a minha manifestação, o protocolo desta Casa. Mas acredito que os srs. não poderão ficar omissos. Os srs. não terão como ficar alheios a mais esta agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena. (O sr. Krenak inicia processo de caracterização – pintura facial.) (Krenak, p. 34)
Enquanto continua o discurso, no mesmo tom firme e pausado, Ailton Krenak passa a pintar seu rosto de preto, retirando, com os dedos, de uma pequena lata, a tinta pastosa que passa em todo o rosto, sem deixar sequer uma gota cair em seu terno branco e sem nunca interromper o discurso. A manifestação de indignação e luto, anunciada no início, acontece ao mesmo tempo da fala – apesar da preterição, nada foi preterido e ambas ocorrem, potencializando-se mutuamente. Além da função emotiva evidente, de catalisar ethos (caráter) e pathos (sentimento) numa única ação ritual, a pintura serve uma função argumentativa, demonstrando, pelo exemplo, o tipo de relação com a sociedade nacional que as culturas indígenas podem trazer.
O processo de pintura termina junto com o discurso. Numa das últimas frases, há uma figura de linguagem, uma metáfora, que amplifica o alcance da argumentação anterior e da manifestação concomitante:
Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança. Ainda existe dignidade, ainda é possível construir uma sociedade que saiba respeitar os mais fracos, que saiba respeitar aqueles que não têm dinheiro, mas mesmo assim, mantêm uma campanha incessante de difamação. Um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser de forma nenhuma contra os interesses do Brasil ou que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. V. Exas. são testemunhas disso (p. 35).
Neste trecho final da peroração, o orador constrói uma imagem do povo indígena: são os mais fracos, são pobres, vivem em condições precárias, e por isso mesmo não representam perigo aos interesses nacionais e ao desenvolvimento. Pelo contrário, foi sobre este povo que se construiu a Nação. O sangue dos povos indígenas acompanhou cada momento do incessante processo de expansão territorial que forjou o Brasil. O sangue, o que quer dizer, o sangue que se derramou, a morte dos indígenas, ainda fomenta – tem regado – a expansão territorial e econômica – “regar” e “hectare” são termos utilizados na agricultura. A metáfora, “regar com sangue”, sintetiza a indignação e o luto propostos como pathos para o discurso.
CORPO E ORATÓRIA
O corpo fazia parte da retórica antiga. A parte da ação sempre estava presente e era, afinal, essencial para o sucesso dos discursos, especialmente dos judiciários e deliberativos.
No entanto, foram justamente esses gêneros que perderam importância depois de certo momento. Com a passagem da República para o Império Romano, o discurso deliberativo foi perdendo aos poucos a importância, pois, cada vez mais, a deliberação era centralizada em torno do Imperador. Com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d. C.), foi a vez do discurso judiciário se extinguir, pois não havia mais o sistema jurídico romano. A retórica sobreviveu no gênero epidítico (de elogio, principalmente dos governantes) e em exercícios escolares. Neste processo, a retórica se tornou cada vez mais texto e menos performance. A parte da ação foi perdendo espaço nos manuais e a retórica perdeu corpo. Em certo momento, acabou se tornando mais um instrumento analítico, de identificação de argumentos e figuras, do que uma arte.
Em outros povos fora da Europa, no entanto, as artes do falar continuavam, e continuam, sendo artes corporais. O antropólogo Pierre Clastres, em texto clássico publicado no seu A sociedade contra o Estado, define assim o papel da oratória na chefia indígena: “[…] o talento oratório é uma condição e também um meio do poder político. Numerosas são as tribos onde o chefe deve todos os dias, na aurora ou no crepúsculo, recompensar com um discurso edificante as pessoas do seu grupo […]” (2003, p. 49). Para os grandes homens yanomami, geralmente os sogros de uma unidade familiar, são os discursos hereamuu que têm esta função. Proferidos antes do amanhecer ou no início da noite, são “longos discursos” em que se incentiva a gente a “caçar e trabalhar em suas roças” e se evocam “o primeiro tempo dos ancestrais tornados animais” (Kopenawa e Albert, 2015: p. 376).
A competência em um discurso hereamuu é definida pelo xamã yanomami Davi Kopenawa em termos corporais. É a imagem do gavião kãokãoma que se instala no peito dos oradores e indica à garganta destes como falar bem. Faz, ainda, sua língua ficar firme. (p. 381) A boa oratória, dentro do discurso hereamuu, é falar bem, função da garganta, e ter a língua firme. São funções corporais, que fazem a voz voltar ao seu momento, físico, de execução.
Para Pierre Clastres, a lei nas sociedades ameríndias se inscreve no corpo e não no papel (2003, p. 203-204). Os diálogos hereamuu dos yanomami, voz que vem do corpo transformado por um espírito, são uma parte da lei da comunidade. Eles dependem de se ter a língua firme e uma boa garganta, e de se ter um espírito por dentro.
HERMENÊUTICA E RETÓRICA
Se a Idade Média não teve retórica digna de nome, ela nos legou a hermenêutica, a partir da prática de interpretar o texto bíblico. A técnica hermenêutica medieval buscava ampliar o texto bíblico para além de sua literalidade, englobando o movimento histórico como prefigurado pelo plano do criador. A interpretação alegórica ou alegoria dos teólogos (Hansen, 2006) se tornou uma forma de expandir o texto bíblico para novos domínios. No Renascimento e em séculos posteriores a técnica interpretativa se uniu às antigas técnicas da retórica. Um momento particularmente exemplar dessa união é a obra do padre Antonio Vieira, que, ao fazer oratória epidítica (ou proselitista), interpretava o mundo a partir de trechos da Bíblia e interpretava a Bíblia a partir do que acontecia no mundo.
Mesmo ao utilizar as técnicas da retórica, a hermenêutica ou interpretação depende de um ponto fixo, muito mais fixo que a oratória viva, corporal, é capaz de dar. A interpretação depende de um texto, que servirá de referência ao jogo de analogias e associações próprias da hermenêutica. É nas lacunas e sobras do texto, nas elipses, ambiguidades e sobreposições que a interpretação encontra sua maior potencialidade. É também aí que a interpretação se encontra com a política ou com o que se costuma chamar de ideologia.
O lugar maior da hermenêutica, nas culturas nacionais contemporâneas, é ocupado pelas cortes constitucionais dos sistemas judiciários. No momento em que escrevo, em julho de 2018, o mundo inteiro aguarda em suspenso a indicação pelo presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, do novo juiz da Suprema Corte norte-americana, que, possivelmente, selará um novo entendimento conservador sobre a Constituição norte-americana, com a possibilidade de durar décadas. A rigor, este futuro juiz e seus oito pares decidirão sobre a interpretação de um documento de sete artigos e vinte e sete emendas – pouquíssimas páginas. No entanto, a interpretação, o que quer dizer, a atividade de preencher as lacunas desse documento, decide grande parte da política dos Estados Unidos e do mundo.
Embora a Constituição de 1988 seja muito mais analítica e mais longa que a norte-americana, ainda assim há muito o que ser decidido em nosso Supremo Tribunal Federal, como podemos ver todos os dias em tempos de protagonismo judiciário. Muito longe da atividade corporal e vocálica da retórica antiga e da oratória indígena, as decisões da suprema corte brasileira se dão em julgamentos em que os ministros trazem votos escritos previamente, que usualmente não são modificados pela atuação oratória de advogados e promotores, e que são lidos ou resumidos em plenário. Nesta lógica, a oratória perde sua função de convencimento – todos já têm sua convicção pronta e escrita – e se torna parte acessória do rito. É a atividade hermenêutica, a interpretação dos autos e da Constituição, que ocupa o lugar central.
Tenho como tese que isso cobra seu preço, algumas vezes caro. Creio ser o caso no julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que teve parecer favorável do relator, ministro Carlos Ayres Britto, em 2008. Neste voto, Ayres Britto introduziu a seguinte interpretação dos dispositivos constitucionais sobre as terras indígenas. Reproduzo parcialmente o texto:
I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígene. (Ayres Britto, p. 55-56)
Nesse argumento, Ayres Britto trabalha a partir das lacunas do texto constitucional. Não há, de fato, referências temporais no texto constitucional, exceto o prazo de cinco anos para a demarcação das terras indígenas, constante das Disposições Transitórias, e que não foi cumprido. Todo o argumento de Ayres Britto se sustenta no tempo verbal utilizado no artigo 231 da Constituição: são reconhecidos “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Deste uso do presente, o ministro conclui que os direitos valem para o presente da assinatura do documento, em 5 de outubro de 1988. A partir da utilização do verbo, o ministro conclui que há um “decidido propósito constitucional” de encerrar as discussões sobre a referência temporal para a ocupação de terra indígena. Sem ser jurista – mas entendendo um pouquinho de linguagem e um pouquinho de ideologia – me parece que, se esse fosse o “decidido propósito” dos constituintes de uma Constituição tão detalhada, ele estaria expresso por mais que um tempo verbal.
Mesmo se aceitando o tempo verbal, porém, o argumento do ministro é frágil. Nos parágrafos do artigo 231 fala-se em “terras tradicionalmente ocupadas”, o que fragiliza enormemente ao menos parte de sua tese – de que terras ocupadas anteriormente por indígenas, mas não ocupadas quando da “chapa radiográfica” de 5 de outubro de 1988, não seriam cobertas pela Constituição.
Além disso, a menção ao mito da “fraude da subitânea proliferação de aldeias” soa como crueldade para qualquer pessoa familiarizada com o assunto. Recomendo, como vacina, estudar um pouco a situação dos Guarani-Kaiowá, que estão desde o século XIX sendo expulsos de terra após terra. [nota 6]
Este argumento frágil, mas plausível porque ancorado na gramática, teve efeitos deletérios nos dez anos subsequentes. Uma parte dos ministros passou a ancorar suas decisões na tese do “marco temporal”, o que resultou na anulação de algumas demarcações – o que quer dizer, na continuidade da opressão das populações que vivem nestes territórios. Resultou, ainda, em uma série de decisões anti-indígenas em outras instâncias do Judiciário. E continua em discussão, projetando sua sombra sobre todas as terras indígenas que os interessados econômicos não querem que sejam demarcadas.
Como na Constituinte, são os corpos que se interpõem à realização dos desejos etnocidas. Os corpos de milhares de indígenas que se reúnem todo ano no Acampamento Terra Livre em Brasília, que bloqueiam estradas em protesto, que retomam terras das quais haviam sido expulsos, que ocupam espaços na universidade mesmo sem financiamento adequado, que produzem arte, que fazem literatura, que projetam suas vozes via redes sociais. Como na Constituinte, esses corpos organizam retóricas de resistência que fazem frente ao avanço constante de forças anti-indígenas.
REFERÊNCIAS
Ayres Britto, Carlos. Relatório (voto sobre a demarcação da TI Raposa Serra do Sol). 2008. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/pet3388CB.pdf
Brand, Antônio. Os direitos indígenas 20 anos após a Constituição de 1988. In: Seminário Constituição 20 Anos: Estado, democracia e participação popular, 27 e 28 nov. 2008, Brasília. Caderno de textos. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, Comissão de Legislação Participativa. 2008.
Clastres, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
Emendas populares. Assembleia Nacional Constituinte, v. 258. Centro Gráfico do Senado Federal, 1988. Disponível em http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-258.pdf
Hansen, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. Hedra, 2006.
Kopenawa, David, e Albert, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Krenak, Ailton; Cohn, Sergio (org). Encontros Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
Paraiso, Maria Hilda Baqueiro. Krenak (verbete). Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental. Disponível em https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak:Krenak
Primeiro substitutivo do relator (Projeto de Constituição). Centro Gráfico do Senado Federal, 1987. Disponível em http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-235.pdf
Reboul, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
Ricardo, Carlos A. (coord. e ed.) et alii. Povos indígenas no Brasil 1987 / 88 / 89 / 90. São Paulo: Centro Ecumênico de Divulgação e Informação, 1991. Disponível em https://pib.socioambiental.org/pt/Downloads
Survival International. Os Yanomami. Disponível em  https://www.survivalbrasil.org/povos/yanomami/invasores
NOTAS
[nota 1]. O livro Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígenas na ditadura, de Rubens Valente (2017), narra esse processo incluindo as histórias de vários povos de todo o país.
[nota 2]. Há diversas boas apresentações da retórica clássica. Aqui utilizo a Introdução à retórica, de Olivier Reboul (2004), bastante acessível. Dos textos originais, a Retórica, de Aristóteles, foi o primeiro a sistematizar o campo. As Instituições Oratórias, do latino Quintiliano, são particularmente importantes por apresentarem a versão mais detalhada que conheço da retórica antiga.
[nota 3]. As citações do discurso de Ailton Krenak são do volume Encontros Ailton Krenak (2015). O discurso também pode ser acessado online, no fac-símile do Diário da Assembleia Nacional Constituinte: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/comissao-de-sistematizacao/COMSist23ext27011988.pdf (p. 572-573). Há, ainda, gravações em vídeo disponíveis no YouTube.
[nota 4]. “Art. 305 – Os direitos previstos neste capítulo não se aplicam aos índios com elevado estágio de aculturação, que mantenham uma convivência constante com a sociedade nacional e que não habitem terras indígenas.” (Primeiro substitutivo, p. 47) O Segundo substitutivo do relator manteve este artigo.
[nota 5]. Disponível em https://youtu.be/TYICwl6HAKQ
[nota 6]. O documentário Martírio, de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida (2016), é particularmente interessante para essa discussão.
* Pedro Mandagará é professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB).
https://racismoambiental.net.br/2018/08/13/a-retorica-indigena-e-a-narrativa-da-constituicao/
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